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A revolução do bode
No sertão paraibano, cooperativa reúne produtores de caprinos
e artesãos e muda a realidade local
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Cabaceiras é um município do interior paraibano, com cerca de 4 mil habitantes, a maioria deles na zona rural. Distante 186 quilômetros da capital, João Pessoa, a cidade ficou conhecida quando serviu de cenário para o filme O Auto da Compadecida, dirigido por Guel Arraes e baseado em peça escrita por Ariano Suassuna, nascido no estado. É famosa também pela tradicional Festa do Bode Rei, que a cada ano chega a reunir 50 mil pessoas em um único fim de semana. É uma espécie de homenagem ao gado caprino, responsável por boa parte da subsistência do sertanejo que vive na região, castigada pela seca nordestina.
Os animais são criados na área rural do município, alimentados no tempo da seca pela palma, espécie de cacto resistente ao calor e à falta de água. Leite e carne fazem parte da dieta dos habitantes, mas o item mais valorizado pelos moradores da região é o couro, principal fonte de renda da cidade.
A alguns quilômetros do centro de Cabaceiras, o distrito de Ribeira é um exemplo dessa atividade econômica. Curtir o couro é tradição secular, ensinada de pai para filho, de avô para neto. Antigamente, as peles, tratadas de forma caseira, eram vendidas para intermediários. Mais tarde surgiram também alguns artesãos, que começaram a produzir roupas rudimentares para vaqueiros, cintos, calçados, pequenas malas e utensílios diversos.
Os intermediários, porém, ficavam com todo o lucro do negócio, e a economia local não foi capaz de impedir o êxodo rural, visto como única saída para boa parte da população.
Essa história começou a mudar recentemente, com a adoção de um programa governamental que viabilizou a instalação de uma cooperativa. Entre os parceiros convocados estavam o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), a Universidade Federal da Paraíba, a prefeitura da cidade, o governo do estado, o Banco do Nordeste, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e uma agência do governo alemão, o GTZ, que doou equipamentos e colabora na capacitação dos trabalhadores. O objetivo era um projeto de produção que permitisse a sustentação econômica do local. Foi assim que surgiu, em 1998, a Cooperativa dos Curtidores e Artesãos em Couro do Distrito de Ribeira (Arteza), destinada a dominar e explorar economicamente o processo de curtimento do couro, tingimento das peles e artesanato.
Segundo José Itamar Maracajá Ramos, mais conhecido como Renato, presidente da Arteza, antes de 1998 artesãos e curtidores de couro passavam por grandes dificuldades. Havia problemas para vender, cada um oferecendo o produto a preço mais baixo. Os conflitos se acentuavam dentro da cadeia produtiva, com prejuízos para todos.
"Convidamos o prefeito a nos ajudar", explica Renato, "e ele disse que pessoalmente não poderia fazer nada." Sugeriu, entretanto, que as pessoas se organizassem em uma associação ou cooperativa - a prefeitura poderia não somente oferecer parceria como atrair outros parceiros. E foi o que aconteceu. Hoje a Arteza conta com um comitê gestor composto pela diretoria da cooperativa e pelos representantes do Sebrae da Paraíba, do GTZ, do Senai e do governo do estado. Nas reuniões mensais são discutidos os problemas referentes aos gargalos da produção e as soluções para o aprimoramento da cooperativa.
Abate clandestino
Em Ribeira, como no restante do município de Cabaceiras, não existe abatedouro. "Há produtores em quase todas as chácaras, e os moradores criam de dez a centenas de cabras", explica o presidente da Arteza. Isso significa que o abate é feito "em casa", clandestinamente.
O couro é tratado em um curtume coletivo, construído com recursos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), em convênio com o governo do estado. O maquinário pertence à Arteza. Um ponto fraco é a falta de tratamento da água utilizada, o que resultou em uma pesada multa (R$ 30 mil) aplicada pela Superintendência de Administração do Meio Ambiente da Paraíba (Sudema). Um acordo, porém, transformou o órgão em parceiro, e a multa baixou para R$ 6 mil. E se iniciou a construção da estação de tratamento e o processo para obtenção da licença ambiental.
Segundo Renato, a grande vantagem da Arteza é que o curtume não utiliza produtos químicos, somente o tanino, substância encontrada na casca do angico (ver texto abaixo). É um produto natural, utilizado há muito tempo pelos curtidores artesanais, e não causa danos à natureza como o cromo, seu substituto moderno, que prejudica sensivelmente o meio ambiente.
O processo de curtimento leva em média 20 dias. A primeira fase é o mergulho da pele no caleiro, depósito de cal e cinza, que retém o pêlo. Carne e gordura são retirados pela máquina de descarnar, que funciona com uma lâmina cortante que raspa o couro. Em seguida acontece o segundo curtimento no fulão, um grande barril de carvalho dotado de tornos internos. O equipamento gira, e o curtimento se dá pelo movimento das peles na água com tanino de angico. Cada fulão tem capacidade para 200 a 300 peles, que depois são deixadas para secar à sombra, antes de passar pela máquina de estirar.
Além do curtume, a produção necessita de uma salgadeira (há um projeto em estudo). As peles precisam ser salgadas para que se conservem de forma correta, sem perder qualidade e valor de mercado, pois a salga tardia favorece a proliferação de fungos.
Artesanato
Entre produtores e artesãos (de mestres a aprendizes), a Arteza conta com a participação de 35 famílias, num total de 200 pessoas envolvidas. São produzidas por mês cerca de 12 mil peças - calçados, vestuário, bijuterias e adornos de couro -, a maioria em oficinas caseiras. Além delas, a cooperativa mantém uma central, de uso comum, onde fica o maquinário adquirido com as doações. Os custos são controlados, e há departamentos de venda, design e financeiro, formados pelos próprios cooperados.
As peles produzidas pelos associados da Arteza não são suficientes para a cooperativa. A maior parte é adquirida fora, inclusive de cidades vizinhas. A dificuldade é livrar-se dos atravessadores, nas várias fases do processo. Há os que compram o animal vivo, pagando somente pela pele (cerca de R$ 27 por cabeça) e ficam com o lucro da carne (R$ 3 o quilo). Apenas as vísceras, para a tradicional buchada de bode, podem render de R$ 10 a R$ 15, um valor que os produtores deixam de receber. Outros compram somente a pele, pela qual pagam R$ 5 quando vale R$ 12, como informa Renato. A solução, diz ele, é o associativismo, onde todos saem ganhando.
Volta ao lar
Os moradores de Ribeira têm muitas histórias para contar. Geralmente são casos de retirantes arrependidos que retornaram à terra natal. Ou de gente que ainda procura um lugar ao sol mesmo longe do lar, como Ana Paula de Castro Sousa, que tem um tio e um irmão artesãos. Esforçada, decidiu estudar e formou-se na Universidade Federal da Paraíba, à custa de muita dificuldade. Passava a semana com R$ 5 reais, viajava de carona, deixava de comer para poder pagar o ônibus e sofreu dois acidentes na estrada. No curso de Tecnologia Química - Modalidade Couros e Tanantes, aprendeu técnicas para tratamento e tingimento de peles, controle e proteção ambiental. Sem emprego em sua terra, e cansada de esperar pelos equipamentos na Arteza, encontrou ocupação em um curtume espanhol na cidade de Parnaíba, no Piauí, onde comanda uma equipe de 50 trabalhadores. E sonha em voltar para Ribeira, para continuar a tradição familiar.
José Marcos Henrique de Farias é o diretor financeiro da Arteza. Desistiu de um trabalho de frentista em Campina Grande, e voltou para Cabaceiras. "No início das atividades da cooperativa, foi difícil, porque não tínhamos parcerias." Hoje, a cooperativa consegue a proeza de produzir e vender 3 mil pares de sandálias em apenas oito dias.
Especialista em beneficiamento de peles, Antônio Francelmo Farias de Sousa, de 30 anos, pai de dois filhos, também sentiu as dificuldades nos primeiros tempos da cooperativa. Trabalhou por dois anos e meio no Rio de Janeiro, como porteiro de um edifício. Salário: R$ 800, mas pagava aluguel, colégio dos filhos e no final do mês sobravam R$ 200 para o resto das despesas. Abandonou tudo e, de volta para Cabaceiras, ganha por mês R$ 500 na Arteza, mais outro tanto quando curte as peles. Não gasta com aluguel e, além da casa, tem uma moto, um roçado, cria gado e produz leite.
Renato também tem uma história de retirante. Trabalhou dois anos no Rio de Janeiro, como operário da construção civil. Voltou para a Paraíba como aprendiz em artesanato de couro - uma fase de grandes dificuldades, somente superada com a criação da cooperativa.
Claudiene Farias Ramos é outra artesã que mudou de vida com a instalação da Arteza. Mantém uma oficina em casa, mas o acabamento é feito na cooperativa. Seu bisavô já confeccionava roupas de vaqueiro e arreios, acessórios fora de moda numa cidade em que as motos já são comuns. Ela produz bolsas e, com a sobra do couro, faz bijuterias. "A cooperativa melhorou minhas condições financeiras em 80%", afirma.
As peças são vendidas para lojas nas principais capitais do país, além das oportunidades proporcionadas por feiras e eventos. A cooperativa tem 20 clientes fixos e quatro revendedores. E vende para turistas, principalmente alemães e escandinavos. Um hotel de luxo na cidade costuma recebê-los, e a visita à Arteza já virou programa obrigatório. Quando vêem as peças de couro, compram tudo, para alegria dos artesãos.
Produto natural
O angico-vermelho (Anadenanthera columbrina) é uma leguminosa cuja casca é rica em tanino, substância natural utilizada nos curtumes tradicionais.
A Arteza compra por mês 3 mil quilos de casca de angico, a R$ 0,40 o quilo. Para cada pele são utilizados 2 quilos do produto. A planta leva quatro anos para começar a produzir, e tem bom rendimento, desde que irrigada.
Há um projeto que aguarda aprovação federal para o plantio de 20 mil mudas, ao custo de R$ 50 mil reais. A cultura seria consorciada com palma, milho e pimenta. "As mudas se destinavam a pequenos proprietários curtumeiros", informa Francisco Sales Meira Freitas, agente comunitário de saúde de Ribeira. "Mas os recursos não chegaram", completa. Para ele, comunidade precisa ser conscientizada para aprender a preservar a natureza. O angico é muito escasso em Cabaceiras e exige manejo adequado. O extrativismo, sem reflorestamento, provoca danos ao ambiente. Para complicar a situação, quando as plantas são pequenas, o bode come suas folhas e atrasa seu crescimento.