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Biólogos brasileiros estudam substâncias químicas das esponjas

EVANILDO DA SILVEIRA


Amphimedon Compressa / Foto: Eduardo Hajdu

Elas são bem antigas - estão na Terra há mais de 500 milhões de anos -, mas podem ser empregadas em pesquisas de ponta, como as de células-tronco, fibras óticas ou novos medicamentos. São as esponjas marinhas, que, apesar da aparência de planta, são animais, chamados cientificamente de poríferos. Existem cerca de 10 mil espécies conhecidas no mundo, das quais pelo menos 500 no Brasil, das mais variadas formas, cores, texturas e tamanhos. Mas não é por isso que elas chamam a atenção dos pesquisadores e sim por seu potencial científico e econômico.

Para estudar as espécies já conhecidas da costa do Brasil e descobrir novas, especialistas de vários estados montaram uma rede de colaboração, que já está em ação. Um dos coordenadores da rede é o biólogo Eduardo Hajdu, do Laboratório de Poríferos (Labpor) do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "Fornecemos subsídios à coleta, identificação e interpretação de resultados a grupos do Ceará, Bahia, Rio Grande do Sul e São Paulo", diz ele.

O trabalho tem como grande objetivo conhecer a fauna de poríferos das costas do Brasil, da Patagônia, parte da Antártida e do Chile e do Peru. "Vamos estudar a composição dessa fauna (as espécies), sua distribuição aos níveis de microhabitat ou regional (onde ocorrem), e abundância (quanto há de cada espécie)", explica Hajdu. Um dos resultados mais importantes até agora é a publicação (em vias de concretização) do "Guia de Identificação das Principais Esponjas de Águas Rasas da Região Sudeste do Brasil".

A pesquisa também vai mapear as esponjas dulciaqüícolas (de água doce) do Brasil, que possui aproximadamente 30% das espécies conhecidas no mundo - 44 de um total de cerca de 150. Além disso, serão realizados estudos de bioprospecção, com o objetivo de identificar nas esponjas substâncias que tenham atividade farmacológica.

Como vivem fixas no fundo do mar, as esponjas tiveram de desenvolver, ao longo de milhões de anos de evolução, um sofisticado sistema de defesa contra predadores. Ele é composto de um enorme arsenal de substâncias químicas, que os poríferos empregam contra os inimigos. Muitas delas podem ter propriedades de interesse para a farmacologia, e ser empregadas na produção de medicamentos.

Para levar a cabo esse grande levantamento dos poríferos existentes no mar em volta do Cone Sul, os pesquisadores vão realizar visitas a várias localidades, no Brasil e no exterior, com o objetivo de descrever novas espécies para a ciência e, por vezes, redescrever as que ainda são pouco conhecidas. Esse trabalho, na verdade, começou em 1995, quando Hajdu retornou ao país, depois de ter feito seu doutorado na Universidade de Amsterdã, na Holanda.

Desde então, ele e sua equipe já realizaram levantamentos mais ou menos detalhados da fauna de poríferos no litoral norte do estado de São Paulo, na região da baía de Todos os Santos (BA), em Maceió e Marechal Deodoro (AL), no atol das Rocas (RN) e no litoral chileno. Disso resultou a descoberta de 30 novas espécies de esponjas já descritas e dezenas de outras ainda por descrever. As pesquisas também propiciaram a formação no Museu Nacional daquela que provavelmente é a maior coleção de esponjas da América Latina, hoje com mais de 14 mil amostras. "Em 1997 eram apenas 92", diz Hajdu. Esse crescimento vertiginoso é reflexo da presença de dois especialistas, o próprio Hajdu e o biólogo Guilherme Muricy, e suas equipes nessa instituição a partir de 1997 e 1998, respectivamente.

Para este mês, está previsto o início do levantamento no litoral argentino. "A cada localidade visitada, não apenas descobrem-se espécies ainda não identificadas, o que é corriqueiro em se tratando de esponjas, mas também se amplia a malha de distribuição conhecida de inúmeras outras", explica Hajdu. "Isso facilita o planejamento de novas coletas para fins de bioprospecção ou análise de variabilidade genética ao longo de um determinado espaço geográfico", acrescenta.

Depois do mapeamento e da coleta das esponjas vem o trabalho de classificação e de estudos para estabelecer hipóteses de parentesco evolutivo (filogenéticas). Isso é muito importante para o trabalho de bioprospecção, pois, por exemplo, é mais provável encontrar novas substâncias de interesse médico-farmacológico em espécies evolutiva e filogeneticamente próximas a algumas em que já se haviam identificado substâncias desse tipo do que em outras apenas remotamente relacionadas.

Estudos farmacológicos

Para complementar esse trabalho que vem sendo feito há pelo menos dez anos, Hajdu e Muricy estão dando início a um projeto de pesquisas, com prazo de dois anos, financiado pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), com objetivos bem concretos. "Pretendemos descrever cientificamente pelo menos 50 espécies de esponjas marinhas brasileiras e publicar os resultados em revistas científicas de primeira linha", diz Hajdu. "Vamos dar prioridade às espécies que possam ser alvo de estudos químicos e farmacológicos."

Outra meta do trabalho é coletar no mínimo 200 amostras de novas espécies de esponjas para prospecção de compostos bioativos, que possam eventualmente resultar em medicamentos. Com esse material serão realizados bioensaios para verificar sua ação contra câncer, tuberculose e cepas de bactérias resistentes a antibióticos. O objetivo é testar ao menos 300 extratos. Essa etapa conta com a colaboração do químico Roberto Berlinck, do Departamento de Físico-Química do Instituto de Química do campus de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP).

Não deverá faltar material para ser testado, e, se forem considerados os antecedentes das esponjas na área farmacológica, há grande possibilidade de obter bons resultados. "Já existem alguns medicamentos à venda que foram inspirados em moléculas extraídas de esponjas", explica Berlinck. "Um exemplo é o antiviral Vira-A, produzido a partir da esponja Cryptotethya crypta, que combate o vírus da herpes." Esse antiviral é mais conhecido como Acyclovir, vendido sob o nome comercial de Zovirax. O AZT, usado no tratamento da Aids, é outro exemplo de droga que teve origem em substâncias provenientes desses estranhos seres coloridos.

É importante que fique claro que esses medicamentos não são diretamente extraídos de esponjas, mas foram substâncias retiradas delas que inspiraram sua síntese. Além desses dois, há outros em teste. Dentre as novas drogas mais promissoras no tratamento contra tumores estão a discodermolida, da esponja Discodermia dissoluta, recentemente encontrada no Brasil por Fernando Moraes, aluno de doutoramento de Muricy. "Essa substância já está em testes clínicos e deverá chegar ao mercado em poucos anos", diz Hajdu.

No caso de Berlinck, o objetivo de suas pesquisas é descobrir elementos produzidos pelas esponjas que possam servir de modelo para o desenvolvimento de novos fármacos para o tratamento da tuberculose, infecções hospitalares, câncer e doenças tropicais, como leishmaniose, malária e mal de Chagas. Os primeiros resultados já começam a aparecer. "Descobrimos várias substâncias cuja atuação inibe a ação de bactérias resistentes a antibióticos que causam infecções hospitalares, como o estafilococo (Staphylococcus aureus)", diz Berlinck. "Encontramos também outras que inibem enzimas do protozoário que causa a leishmaniose (Leishmania tarentolae) e o agente causador da tuberculose (Mycobacterium tuberculosis)."

Essas descobertas foram feitas entre 2002 e 2005. O pesquisador não revela, no entanto, de quais espécies de esponjas foram extraídas essas substâncias que poderão vir a dar origem a novos medicamentos. "Essas informações são sigilosas, pois são objeto de patentes ainda sem número de protocolo. O que posso dizer é que várias tiveram suas atividades confirmadas, e por isso estamos solicitando seu registro."

Os resultados obtidos pelo biólogo Guilherme Muricy são mais uma mostra do que pode vir a ser descoberto na costa brasileira em relação às esponjas. Em pouco mais de três anos de pesquisas nas águas em volta das ilhas Cagarras (Comprida, Palmas e Cagarra), em frente à praia de Ipanema, no Rio de Janeiro, a 5 quilômetros da costa, ele encontrou 40 espécies de poríferos, cinco das quais novas para a ciência.

Muito a descobrir

O achado surpreendeu o próprio pesquisador. "É impressionante encontrar tanta diversidade de poríferos nas Cagarras", diz Muricy. "As águas costeiras do Rio de Janeiro estão poluídas e degradadas, mas mesmo assim há muitas espécies vivendo lá. Calculamos que existam pelo menos 70. Temos muito a descobrir ainda."

Junto com Hajdu, Muricy coordena ainda o projeto Taxonomia de Esponjas da Plataforma Central do Brasil - Projeto Revizee (Avaliação do Potencial Sustentável de Recursos Vivos da Zona Econômica Exclusiva). A finalidade é atender as disposições da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), de modo a garantir ao Brasil o uso exclusivo de seu espaço marítimo até 200 milhas da costa.

O laboratório de Muricy é responsável pela identificação das esponjas, coletadas por dragagem a bordo do navio oceanográfico Astro Garoupa nos estados da Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro, de 40 a 1,7 mil metros de profundidade. "Já identificamos 172 espécies nesse projeto, das quais ao menos 14 são novas para a ciência e 20 são novas ocorrências para o Brasil", conta.

Outro projeto liderado por Muricy e tocado por Fernando Moraes é o que trata da taxonomia e biogeografia de esponjas nas ilhas oceânicas brasileiras. "O objetivo é identificar e descrever as espécies de esponjas presentes nas principais ilhas oceânicas do Brasil: arquipélago de São Pedro e São Paulo, atol das Rocas, Fernando de Noronha e ilha da Trindade", explica o pesquisador. "Uma vez identificadas as espécies, serão feitas análises da similaridade entre a fauna dos quatro locais, numa tentativa de compreender a história de sua colonização biológica por meio de suas esponjas."

Muricy revela que já foram identificadas mais de 120 espécies - Fernando de Noronha apresenta a maior concentração, com mais de 80. Na ilha da Trindade, que não tinha nenhum registro de esponjas anteriormente, foram identificadas 20. O estudo ainda está em andamento, mas no mínimo nove espécies são novas para a ciência. Quatro delas já foram descritas em dois trabalhos no "Journal of the Marine Biological Association of the United Kingdom".

Além disso, foram feitos dois vídeos sobre a fauna de esponjas das ilhas, um deles no atol das Rocas e o outro no arquipélago de São Pedro e São Paulo. Esse trabalho é financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Secretaria da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (SECIRM).

No cômputo geral de suas pesquisas, Muricy tem importantes resultados a mostrar. "Já descrevi cerca de 15 espécies de esponjas novas para a ciência, além de demonstrar a utilidade dos poríferos como bioindicadores de poluição no Brasil e no mar Mediterrâneo. Detectei que as espécies Mycale microsigmatosa no Brasil e Cliona celata no Mediterrâneo são tolerantes à poluição. Também mostrei a importância farmacológica de 20 espécies de esponjas comuns no litoral do Rio de Janeiro", afirma, com orgulho.

Suas descobertas não param aí. Ele ainda descreveu a citologia (tipos de células presentes) de dez espécies de esponjas e demonstrou sua importância para a classificação desses animais. Além disso, mostrou o papel que desempenham na manutenção de uma alta biodiversidade nos ecossistemas marinhos brasileiros, "pois abrigam uma rica fauna associada e servem de alimento para peixes de recifes".

Outra característica das esponjas que interessa aos cientistas é a capacidade de se regenerar por toda a vida, já que os poríferos têm um grande estoque de células equivalentes às células-tronco humanas. Assim, seu estudo é importante, pois pode ajudar os pesquisadores a entender os mecanismos envolvidos na diferenciação celular.

Fibras óticas

Para a indústria, o que interessa nas esponjas é seu esqueleto. Composto de espículas (estruturas semelhantes a agulhas ou espinhos) de sílica, ele dá sustentação a seu corpo e tem a propriedade de transmitir luz, como as fibras óticas. "O mecanismo biológico de produção dessas fibras é realizado a frio, enquanto o processo industrial atual usa altas temperaturas, além de ser caro", explica Muricy. "A indústria de telecomunicação, como por exemplo no caso da empresa Bell Laboratories, nos Estados Unidos, está pesquisando as esponjas para desenvolver novos processos de produção de fibras óticas a baixa temperatura."

As esponjas também poderão ser empregadas na indústria da informática. "Um grupo de pesquisa alemão da Universidade de Mainz, com o qual temos projetos em colaboração, obteve a patente da silicateína, que é a proteína responsável pela secreção de silício em poríferos", explica Hajdu. Acredita-se que haja um sem-número de aplicações biotecnológicas para essa proteína, dentre as quais a secreção de nanocamadas de silício, que poderão permitir o desenvolvimento de uma nova geração de chips para computadores.

Todas as descobertas feitas até agora e os resultados obtidos de estudos serão apresentados no 7º Simpósio Internacional de Poríferos, que os pesquisadores brasileiros estão organizando. O evento será realizado em Armação dos Búzios (RJ), de 7 a 13 de maio de 2006. Já está confirmada a participação de cerca de 150 pesquisadores de poríferos, de mais de 30 países e 70 instituições, dos cinco continentes.

Eles irão mostrar os avanços nessa área em seus países. Segundo Hajdu, hoje o grosso da pesquisa relacionada a produtos naturais marinhos é realizado nos Estados Unidos e no Japão, com destaque também para Alemanha e Itália. Quanto aos estudos sobre a biodiversidade de poríferos, a maior parte é feita na Austrália e na Holanda, além da participação expressiva de Espanha, França, Itália, México e Nova Zelândia.

O Brasil tem também um trabalho importante nessa área, e poderá melhorar. Um outro resultado que surge das pesquisas que vêm sendo realizadas sobre esponjas é a qualificação de pessoas. "Deve estar claro agora quão importante é esse item", diz Hajdu. "Mas não basta formarmos cada vez mais especialistas em poríferos se depois os perdermos para universidades desinteressadas em pesquisa. Somente criando núcleos de estudo com esses novos profissionais alcançaremos crescimento exponencial, que é o que realmente necessitamos. Considere-se ainda que, na América do Sul, apenas Brasil, Colômbia e Venezuela possuem especialistas em poríferos, e se verá o tamanho do problema que enfrentamos."

Como as pesquisas vêm demonstrando, o Brasil é rico em espécies de esponjas e poderá se beneficiar disso no futuro. De acordo com Hajdu, novas descobertas têm sido uma constante desde que foram iniciados os estudos. "Para isso não precisamos viajar aos confins do Amapá, mas simplesmente visitar ilhas costeiras próximas a qualquer grande cidade brasileira", diz. "Na verdade, até em praias urbanas por vezes nos deparamos com espécies novas. É absolutamente inacreditável o descaso histórico com esses organismos no litoral brasileiro." Hajdu e os pesquisadores que fazem parte da rede de cooperação para estudar as esponjas pretendem mudar essa história. 


Glossário

Bioprospecção - É a busca de substâncias químicas em animais, plantas ou microorganismos que tenham aplicação prática e possam gerar recursos.

Filogenética - Filogenia é a história da evolução dos organismos. Uma classificação filogenética é a descrição do percurso evolutivo desses organismos e determina o grau de parentesco entre eles.
A classificação hierárquica compreende: reino, filo, classe, ordem, família e espécie. O cão, por exemplo, é parente do gato até o item ordem - ambos são do reino animal, filo vertebrados, classe mamíferos, ordem carnívoros. A diferença surge na família (canídeos e felídeos). A ligação de ambos com um pássaro (classe aves), por exemplo, é mais distante.

 

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