
O
CLÁSSICO EM QUESTÃO
Ilustrações:
Marcos Garuti
Toda vez que surge
a pergunta "o que faz uma obra ser clássica?", as opiniões
se dividem e, não raro, os julgamentos de valor soterram critérios
imparciais de avaliação. Um livro, um filme ou uma música
já nascem clássicos? Ou seria a passagem incólume
pelo tempo que conferiria o título? Há ainda a unanimidade
da crítica - fonte de opinião para muitos. Mas e o gosto
popular? Conquistar lugar cativo na memória coletiva não
torna a obra uma forte candidata? Indagações como essas
não têm fim. Em artigos exclusivos, o poeta e ensaísta
Nelson Ascher e o professor titular de teoria literária da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), Paulo Franchetti, partem em busca de respostas.
leia os artigos
Clássico
para quem?
O clássico

Clássico para quem?
por
Paulo Franchetti
A maior parte das
pessoas que têm algum interesse cultural provavelmente não
encontraria dificuldade em definir o sentido da palavra clássico,
quando aplicada à Odisséia, à Eneida ou mesmo a Os
Lusíadas. Clássico, nesse sentido imediato, indica que uma
obra ou pertence à antiguidade greco-latina, ou a uma das épocas
para as quais esse vasto período da história serviu de modelo.
Nesse sentido, clássico se distingue tanto de medieval quanto de
romântico. Designa, portanto, mais um tipo de organização
da obra, um estilo, do que qualquer outra coisa. Daí que se possa
dizer "antiguidade clássica" (distinguindo, portanto,
a greco-latina de outras antiguidades mais antigas ou suas contemporâneas,
porém situadas fora dos domínios do Ocidente). Empregada
assim, a palavra conota, pois, um conceito de humanidade e um ideal artístico,
fundado no equilíbrio das formas e na imitação realista
da natureza.
Para um homem do tempo de Camões, clássico tinha ainda outro
sentido, derivado do caráter exemplar que se atribuía às
obras gregas e latinas. As obras clássicas eram aquelas que faziam
parte da formação humanística, que forneciam a tipologia
das formas artísticas e dos modos amplos nos quais essas formas
ganhavam pleno sentido. No caso da literatura, os padrões de verso,
as formas de poemas e os gêneros. Uma obra clássica era uma
obra que se julgava preciso conhecer para ter cultura, uma obra que era
parte do repertório considerado necessário para uma vida
cultural plena. Talvez por isso, nessa época, fazia-se derivar
clássico de classes, no sentido de sessões de estudo: um
clássico era uma obra modelar que se lia e aprendia na escola.
E, de fato, esse é um sentido forte da palavra ainda hoje, pois
uma das formas de reconhecer um clássico é saber se ele
é ensinado na escola, se faz parte do currículo escolar,
ou seja, daquilo que se propõe como patrimônio geral e mais
ou menos obrigatório de referências. É por isso que
não poderíamos contestar de imediato alguém que dissesse,
por exemplo, que A Moreninha [romance escrito em 1843, pelo carioca Joaquim
Manuel de Macedo (1820-1882)], a obra poética de Cláudio
Manuel da Costa [poeta barroco, foi um dos lançadores do arcadismo
no Brasil e participou da Inconfidência Mineira; viveu de 1729 a
1789] e O Mulato [romance de 1881, considerado um dos precursores do naturalismo
no Brasil, do escritor maranhense Aluísio Azevedo (1857-1913)]
são clássicos da literatura brasileira. Mas já aqui,
ao menos nessa utilização, percebe-se uma diferença
entre o sentido moderno da palavra e o sentido renascentista: dizer que
A Moreninha é um clássico não significa para ninguém
que ela deva ser tomada como modelo para a escrita contemporânea.
Já, para um romano, dizer que um escritor era clássico significava
principalmente afirmar a sua qualidade. Clássico significava algo
como "de primeira classe", superior, de elite. Esse sentido
persiste ainda hoje, não só no uso culto, mas também
no popular. No uso culto, dizer que uma obra recém-lançada
é destinada a ser clássica, ou que uma obra recente já
é um clássico significa reconhecer sua qualidade superior
em relação às congêneres. No uso popular, o
significado primitivo permanece à vista quando, por exemplo, alguém
se refere a uma partida entre duas equipes tradicionais de futebol como
um jogo clássico, mesmo que os dois times estejam, no momento do
confronto, numa fase péssima e o jogo tenha tudo para ser muito
ruim. Nesse caso, é a classe dos times, a sua localização
num determinado conjunto - o dos times mais antigos ou de maior torcida
- que garante a pertinência do emprego da palavra.
Dessas três rápidas definições conclui-se que
um traço comum e persistente, que acompanha a palavra ao longo
dos milênios, é o de exemplaridade. Um clássico é
uma realização ótima, o que faz dele um modelo a
ser imitado. A noção de exemplaridade implica a idéia
de conjunto de elementos subordinados ao modelo. Um clássico, portanto,
só pode ser definido como tal em função de um conjunto
de obras e de um conjunto de pressupostos e de juízos de valor.
De um cânone, portanto.
Mas, complementarmente, uma obra que adquire grande significado para uma
determinada época, e, por isso, se transforma em referência
ou objeto de imitação, passa a ser considerada (ao menos
de uma perspectiva moderna) um clássico, independentemente de seu
lugar, estatuto e importância na época em que foi criada.
É fácil encontrar exemplos na literatura e nas demais artes.
Quando foram publicados, em 1869, os Cantos de Maldoror [do francês
Isidore Ducasse, ou Conde de Lautréamont (1856-1870)] passaram
despercebidos. E ficaram sem atenção relevante até
que o surrealismo, na década de 1920, incluiu o poema de Lautréamont
entre os "precursores" do movimento. O presente - como notou
o poeta T. S. Eliot num ensaio famoso, A Tradição e o Talento
Individual, publicado pouco antes do surgimento do surrealismo - recria
o passado, redimensiona as obras, modifica o quadro de valores. E o que
distingue o presente moderno é a consciência desse poder
de interferência na ordenação do passado, de seu poder
de relativizar os julgamentos e valores do passado, em nome de seus próprios
interesses.
Embora mantenhamos todos os sentidos históricos da palavra clássico,
acrescentamos a ela esse sentido de ponto de referência, de elemento
colhido no passado de acordo com os interesses do presente. É em
parte esse o sentido da palavra utilizada pelo poeta Ezra Pound, para
designar o conjunto das obras cujo conhecimento seria indispensável
para o homem do presente, sem que ele perdesse tempo com coisas obsoletas
ou imprestáveis: paideuma. No paideuma poundiano e no ensaio de
T. S. Eliot há pouco aludido encontramos as duas formulações
mais radicais do poder do presente em apagar ou revelar os clássicos.
Entretanto, por conta justamente da autoconsciência histórica
que caracteriza a modernidade, se é verdade que é possível,
da noite para o dia, propor e afirmar uma obra como clássica, já
não é tão simples fazer com que uma obra, uma vez
proposta e reconhecida como clássica, deixe de o ser. Ou seja,
predominando, no sentido moderno da palavra, a idéia de referência,
ponto de partida, realização inspiradora ou conquista técnica
para uso do presente, e reconhecendo que o presente é o que determina
a linhagem na qual uma dada obra do passado se situa como clássica,
não há como não reconhecer que um clássico
é um clássico para alguém, para um grupo ou linhagem
ou tendência.
Quero dizer: a modernidade opera uma relativização do conceito
de clássico. É nesse sentido que se pode falar, sem problema,
de clássico da literatura beat, clássico da literatura de
terror, da literatura policial, de clássico do cinema, de telenovela
clássica, de clássicos da MPB, do filme pornô, da
literatura gay ou da de auto-ajuda. E até mesmo (por que não?)
clássico da arte de vanguarda. E usaremos a palavra, nesses casos,
tanto para indicar uma obra modelar no seu gênero quanto uma obra
inaugural de um dado estilo, ou ainda uma obra que reúne notáveis
qualidades propriamente artísticas, independentemente de seu lugar
na história de um gênero específico.
Uma das características de nosso tempo (que alguns denominam pós-moderno)
é justamente o reconhecimento da relatividade e multiplicidade
dos cânones, isto é, dos pressupostos, valores e escolhas
exemplares. Sendo assim, é cada vez mais evidente que os clássicos
são definidos por comunidades, por grupos capazes de exercer o
poder simbólico da atribuição de valor. Durante séculos,
a postulação de exclusividade, a ortodoxia, era a companheira
indefectível do cânone. Hoje assistimos a uma convivência
de cânones cada vez mais notável e a uma desconfiança,
complementar, na postulação de um cânone único,
de um único quadro de valores.
Daí a flutuação da abrangência e do significado
da palavra clássico, e a possibilidade de hoje a utilizarmos nos
vários sentidos que aqui foram apontados. A pergunta "o que
é um clássico?" é também uma pergunta
sobre o que é, ou qual é o cânone. São perguntas
entrelaçadas, e a angústia que gera uma repercute na outra.
A única resposta possível hoje, portanto, é outra
pergunta: "clássico para quem?", "clássico
de quê?" e, até mesmo, "clássico quando?"
Definidos os limites, pode-se, então, responder à primeira
indagação. Essa incapacidade de responder taxativamente
a uma questão que implica o julgamento e o valor, essa recusa de
afirmar abstrata e universalmente o valor é clássica de
nossa época. Clássica no sentido de característica,
típica, previsível e esperada (como quando dizemos "um
caso clássico de complexo de Édipo") - e essa é
mais uma forma de usar a palavra, não das menos importantes, nos
dias de hoje.
Paulo Franchetti
é professor titular de teoria literária na Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp)
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O
clássico
por
Nelson Ascher
A espécie humana
existe, de forma biologicamente inalterada, há cerca de 100 mil/150
mil anos. Por tudo que sabemos, desde que surgiu no sudeste africano,
nada de relevante se alterou em sua configuração física
ou aparato neurológico. Tudo com que nossos ancestrais fizeram
a pré-história e a história foram artefatos culturais
criados ou elaborados a partir de uma base física, biológica
e psicológica que, comum a todos os membros da espécie,
inclui a capacidade de simbolizar ou representar e a de se comunicar através
da linguagem articulada.
Não há razão alguma para imaginarmos que os primeiros
membros da espécie já não fizessem algum tipo de
arte, seja verbal, seja material, musical, performática etc. A
capacidade individual de fazê-la existia então como existe
hoje e nenhuma comunidade foi jamais encontrada que não se dedicasse
a atividades que classificaríamos sem relutância de estéticas.
Se o que se disse não passa de especulação, isso
se deve à razão elementar de que os materiais envolvidos
naquelas atividades, a começar pela voz, no caso das artes verbais,
e continuando com a madeira, peles e ossos de animais, no que diz respeito
à confecção de utensílios, eram perecíveis.
No entanto, tão logo o homem principiou a trabalhar com materiais
mais duradouros ou teve a sorte de fazê-lo em ambientes propícios
a sua preservação, seus vestígios começam
a se apresentar. Assim, mais de 20 mil anos atrás, as magníficas
pinturas rupestres dos caçadores paleolíticos representando
a si e aos animais que perseguiam ficaram registradas nas paredes de cavernas
como a de Lascaux, no sul da França, ou Altamira, no norte da Espanha.
Já as artes da palavra, que, intrinsecamente vinculadas a algo
que define o humano, a saber, a linguagem articulada, são decerto
as primeiras a ter sido praticadas, estão, paradoxalmente, entre
as que mais demoraram para se tornar materialmente perpetuáveis,
algo impossível antes da invenção da escrita. Esta,
ao que tudo indica, foi desenvolvida pela primeira vez no sul da Mesopotâmia
(o atual Iraque) pelos sumérios, um povo de origem desconhecida,
que se estabeleceu ali antes da chegada dos semitas (assírios e
babilônios). Os sumérios criaram a escrita chamada de cuneiforme,
devido ao formato de seus caracteres, usando-a originalmente para fins
administrativos, mais ou menos 5 mil anos atrás.
Inventada a escrita, os sumérios valeram-se dela para gravar em
tábuas de barro o primeiro clássico literário de
que temos notícia: a epopéia de Gilgamesh. Trata-se da história
mítica de um monarca que parece ter de fato existido. Segundo a
lenda, o rei da cidade-estado de Uruk era três quartos divino e
um quarto humano, e, portanto, mortal. Sua saga consiste na busca fracassada
da imortalidade. (E um de seus capítulos contém até
mesmo a versão mais velha da narração que depois
retornaria na Bíblia hebraica, ou Antigo Testamento, como a história
da arca de Noé.) O extenso poema, redescoberto, aos poucos, em
diversos fragmentos soterrados no deserto e (assim como a própria
língua suméria, que havia sido "perdida" e esquecida
por quase 3 mil anos) decifrado e reconstruído peça por
peça, sílaba por sílaba, a partir de meados do século
19, graças ao empenho de gerações sucessivas de filólogos
dedicados, é, ao mesmo tempo, o mais antigo e o mais novo dos clássicos
da literatura universal.
Na história de sua composição oral, de sua transcrição
original, de suas primeiras traduções para as línguas
semíticas da Mesopotâmia, na influência que exerceu
sobre os textos que eram considerados fundadores da tradição
ocidental, a Bíblia e os poemas homéricos (a Ilíada
e a Odisséia) - influência que não cessou de exercer
durante o intervalo triplamente milenar no qual a consciência de
sua existência prévia, assim como a da língua em que
fora composta e a memória da civilização em cujo
âmbito nascera haviam desaparecido sem deixar traço -, a
epopéia de Gilgamesh ilustra os paradoxos que envolvem e permeiam
a idéia de clássico.
Este é um assunto que a crítica literária e musical,
artística e cinematográfica, televisiva, dramática
etc. não param nem pararão de discutir. Por quê? Primeiro,
porque a resposta, de tão óbvia, nem requereria que a pergunta
fosse feita: afinal, o clássico é... e, então, arrola-se
uma lista interminável de obras que nada têm em comum exceto
o fato de ser clássicas.
Limitemos-nos à literatura, pois, o que, em seus termos, vale para
ela, vale para as demais artes. Um clássico, potencialmente, é
uma obra que sobrevive a uma leitura, que merece uma segunda e, então,
uma terceira, quarta, infinitas leituras... Um clássico é
um sobrevivente e, embora, devido aos equívocos da subjetividade,
seja necessário que mais de uma pessoa conclua que tal ou qual
obra merece a releitura e seja também necessário que, para
superar modismos em geral, isso se repita por duas ou mais gerações
de modo a que se estabeleça um mínimo de certeza acerca
da "classicidade" da obra examinada, o pressuposto básico
para que um romance, um conto, um poema, um ensaio, uma epopéia
se revele clássico é a vontade, o desejo, a pulsão
do primeiro leitor que se sente obrigado a relê-lo.
Tal pulsão deve resultar não de uma leitura inicial displicente,
nem de um texto desnecessariamente obscuro, mas, sim, da percepção
de que há algo de inesgotável em seu conteúdo. Porque
o clássico é, sobretudo, a obra inesgotável, capaz
de preservar a própria identidade e sentidos fundamentais conforme,
para cada freqüentador, a cada visita, adquire outros, se enriquece
de novos. O tempo, ao contrário do que se pensa, não é
o autor dos clássicos, ele é apenas sua testemunha e, como
sucedeu com a epopéia suméria, às vezes, amnésico,
nem sequer chega a sê-lo.
Mas, se este "ser clássico" é tão evidente,
para não dizer simples, por que o tema segue sendo discutido? Justamente
porque a discussão faz parte do processo que transforma tal ou
qual obra em clássico. Outra característica de criações
essenciais do espírito humano consiste em estas serem capazes de
despertar continuamente as paixões, não deixar ninguém
indiferente a elas. É da natureza das obras que contam alterarem,
mesmo que somente um mínimo, o conceito do que é uma obra,
os limites do gênero ou até da arte à qual pertencem.
Desse modo, elas se impõem, enfatizando sua individualidade diferenciada,
àquilo que, tomando de empréstimo um termo à teologia,
a crítica recente batizou de cânone (o conjunto das obras
reconhecidas enquanto clássicas).
Há, porém, mais: quando uma obra altera as definições
de seu gênero, categoria ou arte, ela obriga a uma revisão
das que a precederam, ela as redefine. Ao ser discutida, ela põe
em discussão as demais. Cada nova obra não tanto admitida
enquanto clássica (como se isso equivalesse a passar num teste),
mas antes reconhecida enquanto tal por ter patenteado seus méritos,
vencendo, ao despertar o afã da releitura, a resistência
natural, bem como a preguiça e preconceito dos freqüentadores
amadores ou profissionais, coloca novamente em questão as que vieram
antes. Não que tenda a excluí-las do cânone. Ela,
no entanto, induz a conferir, cotejar, verificar uma série de minúcias
e detalhes em inúmeras outras, e, conseqüentemente, a relê-las,
o que implica, aliás, confirmar ou reafirmar seu estatuto de clássico,
se bem que, a cada releitura, se modifique, um pouco que seja, o significado
desse estatuto.
Em última instância, ser um clássico significa pertencer
a uma rede de releituras associadas e entrecruzadas, uma rede que é
e deve ser perpetuamente modificada não só por todo novo
clássico a ela incorporado, mas por toda releitura de cada qual
deles. Essa rede não é uma ditadura de normas, um rol excludente
ou fixo de regras, mas, sobretudo, uma teia de relações
interconectando o passado, o presente e o futuro de nossa espécie,
uma trama que permite ao mais remoto ancestral se dirigir a qualquer descendente
ainda não nascido e que convida a todos estes, bem como a qualquer
um de nós, melhor, desafia-nos todos a participar sem interrupção
de uma conversa supratemporal de inteligências que, ao fim e ao
cabo, constitui, para quem não tenha religião, aquilo que
mais se aproxima da imortalidade buscada milênios atrás por
Gilgamesh.
Nelson Ascher é
poeta, ensaísta, tradutor de poesia e especialista em política
internacional
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