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REVISTA E - Outubro 06

 

 

 

 

O CLÁSSICO EM QUESTÃO

 

 

Ilustrações: Marcos Garuti

 

Toda vez que surge a pergunta "o que faz uma obra ser clássica?", as opiniões se dividem e, não raro, os julgamentos de valor soterram critérios imparciais de avaliação. Um livro, um filme ou uma música já nascem clássicos? Ou seria a passagem incólume pelo tempo que conferiria o título? Há ainda a unanimidade da crítica - fonte de opinião para muitos. Mas e o gosto popular? Conquistar lugar cativo na memória coletiva não torna a obra uma forte candidata? Indagações como essas não têm fim. Em artigos exclusivos, o poeta e ensaísta Nelson Ascher e o professor titular de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Paulo Franchetti, partem em busca de respostas.

 

 

 

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Clássico para quem?

O clássico

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Clássico para quem?

 

por Paulo Franchetti

 

A maior parte das pessoas que têm algum interesse cultural provavelmente não encontraria dificuldade em definir o sentido da palavra clássico, quando aplicada à Odisséia, à Eneida ou mesmo a Os Lusíadas. Clássico, nesse sentido imediato, indica que uma obra ou pertence à antiguidade greco-latina, ou a uma das épocas para as quais esse vasto período da história serviu de modelo. Nesse sentido, clássico se distingue tanto de medieval quanto de romântico. Designa, portanto, mais um tipo de organização da obra, um estilo, do que qualquer outra coisa. Daí que se possa dizer "antiguidade clássica" (distinguindo, portanto, a greco-latina de outras antiguidades mais antigas ou suas contemporâneas, porém situadas fora dos domínios do Ocidente). Empregada assim, a palavra conota, pois, um conceito de humanidade e um ideal artístico, fundado no equilíbrio das formas e na imitação realista da natureza.



Para um homem do tempo de Camões, clássico tinha ainda outro sentido, derivado do caráter exemplar que se atribuía às obras gregas e latinas. As obras clássicas eram aquelas que faziam parte da formação humanística, que forneciam a tipologia das formas artísticas e dos modos amplos nos quais essas formas ganhavam pleno sentido. No caso da literatura, os padrões de verso, as formas de poemas e os gêneros. Uma obra clássica era uma obra que se julgava preciso conhecer para ter cultura, uma obra que era parte do repertório considerado necessário para uma vida cultural plena. Talvez por isso, nessa época, fazia-se derivar clássico de classes, no sentido de sessões de estudo: um clássico era uma obra modelar que se lia e aprendia na escola. E, de fato, esse é um sentido forte da palavra ainda hoje, pois uma das formas de reconhecer um clássico é saber se ele é ensinado na escola, se faz parte do currículo escolar, ou seja, daquilo que se propõe como patrimônio geral e mais ou menos obrigatório de referências. É por isso que não poderíamos contestar de imediato alguém que dissesse, por exemplo, que A Moreninha [romance escrito em 1843, pelo carioca Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882)], a obra poética de Cláudio Manuel da Costa [poeta barroco, foi um dos lançadores do arcadismo no Brasil e participou da Inconfidência Mineira; viveu de 1729 a 1789] e O Mulato [romance de 1881, considerado um dos precursores do naturalismo no Brasil, do escritor maranhense Aluísio Azevedo (1857-1913)] são clássicos da literatura brasileira. Mas já aqui, ao menos nessa utilização, percebe-se uma diferença entre o sentido moderno da palavra e o sentido renascentista: dizer que A Moreninha é um clássico não significa para ninguém que ela deva ser tomada como modelo para a escrita contemporânea.



Já, para um romano, dizer que um escritor era clássico significava principalmente afirmar a sua qualidade. Clássico significava algo como "de primeira classe", superior, de elite. Esse sentido persiste ainda hoje, não só no uso culto, mas também no popular. No uso culto, dizer que uma obra recém-lançada é destinada a ser clássica, ou que uma obra recente já é um clássico significa reconhecer sua qualidade superior em relação às congêneres. No uso popular, o significado primitivo permanece à vista quando, por exemplo, alguém se refere a uma partida entre duas equipes tradicionais de futebol como um jogo clássico, mesmo que os dois times estejam, no momento do confronto, numa fase péssima e o jogo tenha tudo para ser muito ruim. Nesse caso, é a classe dos times, a sua localização num determinado conjunto - o dos times mais antigos ou de maior torcida - que garante a pertinência do emprego da palavra.



Dessas três rápidas definições conclui-se que um traço comum e persistente, que acompanha a palavra ao longo dos milênios, é o de exemplaridade. Um clássico é uma realização ótima, o que faz dele um modelo a ser imitado. A noção de exemplaridade implica a idéia de conjunto de elementos subordinados ao modelo. Um clássico, portanto, só pode ser definido como tal em função de um conjunto de obras e de um conjunto de pressupostos e de juízos de valor. De um cânone, portanto.



Mas, complementarmente, uma obra que adquire grande significado para uma determinada época, e, por isso, se transforma em referência ou objeto de imitação, passa a ser considerada (ao menos de uma perspectiva moderna) um clássico, independentemente de seu lugar, estatuto e importância na época em que foi criada. É fácil encontrar exemplos na literatura e nas demais artes. Quando foram publicados, em 1869, os Cantos de Maldoror [do francês Isidore Ducasse, ou Conde de Lautréamont (1856-1870)] passaram despercebidos. E ficaram sem atenção relevante até que o surrealismo, na década de 1920, incluiu o poema de Lautréamont entre os "precursores" do movimento. O presente - como notou o poeta T. S. Eliot num ensaio famoso, A Tradição e o Talento Individual, publicado pouco antes do surgimento do surrealismo - recria o passado, redimensiona as obras, modifica o quadro de valores. E o que distingue o presente moderno é a consciência desse poder de interferência na ordenação do passado, de seu poder de relativizar os julgamentos e valores do passado, em nome de seus próprios interesses.



Embora mantenhamos todos os sentidos históricos da palavra clássico, acrescentamos a ela esse sentido de ponto de referência, de elemento colhido no passado de acordo com os interesses do presente. É em parte esse o sentido da palavra utilizada pelo poeta Ezra Pound, para designar o conjunto das obras cujo conhecimento seria indispensável para o homem do presente, sem que ele perdesse tempo com coisas obsoletas ou imprestáveis: paideuma. No paideuma poundiano e no ensaio de T. S. Eliot há pouco aludido encontramos as duas formulações mais radicais do poder do presente em apagar ou revelar os clássicos.



Entretanto, por conta justamente da autoconsciência histórica que caracteriza a modernidade, se é verdade que é possível, da noite para o dia, propor e afirmar uma obra como clássica, já não é tão simples fazer com que uma obra, uma vez proposta e reconhecida como clássica, deixe de o ser. Ou seja, predominando, no sentido moderno da palavra, a idéia de referência, ponto de partida, realização inspiradora ou conquista técnica para uso do presente, e reconhecendo que o presente é o que determina a linhagem na qual uma dada obra do passado se situa como clássica, não há como não reconhecer que um clássico é um clássico para alguém, para um grupo ou linhagem ou tendência.



Quero dizer: a modernidade opera uma relativização do conceito de clássico. É nesse sentido que se pode falar, sem problema, de clássico da literatura beat, clássico da literatura de terror, da literatura policial, de clássico do cinema, de telenovela clássica, de clássicos da MPB, do filme pornô, da literatura gay ou da de auto-ajuda. E até mesmo (por que não?) clássico da arte de vanguarda. E usaremos a palavra, nesses casos, tanto para indicar uma obra modelar no seu gênero quanto uma obra inaugural de um dado estilo, ou ainda uma obra que reúne notáveis qualidades propriamente artísticas, independentemente de seu lugar na história de um gênero específico.



Uma das características de nosso tempo (que alguns denominam pós-moderno) é justamente o reconhecimento da relatividade e multiplicidade dos cânones, isto é, dos pressupostos, valores e escolhas exemplares. Sendo assim, é cada vez mais evidente que os clássicos são definidos por comunidades, por grupos capazes de exercer o poder simbólico da atribuição de valor. Durante séculos, a postulação de exclusividade, a ortodoxia, era a companheira indefectível do cânone. Hoje assistimos a uma convivência de cânones cada vez mais notável e a uma desconfiança, complementar, na postulação de um cânone único, de um único quadro de valores.



Daí a flutuação da abrangência e do significado da palavra clássico, e a possibilidade de hoje a utilizarmos nos vários sentidos que aqui foram apontados. A pergunta "o que é um clássico?" é também uma pergunta sobre o que é, ou qual é o cânone. São perguntas entrelaçadas, e a angústia que gera uma repercute na outra.



A única resposta possível hoje, portanto, é outra pergunta: "clássico para quem?", "clássico de quê?" e, até mesmo, "clássico quando?" Definidos os limites, pode-se, então, responder à primeira indagação. Essa incapacidade de responder taxativamente a uma questão que implica o julgamento e o valor, essa recusa de afirmar abstrata e universalmente o valor é clássica de nossa época. Clássica no sentido de característica, típica, previsível e esperada (como quando dizemos "um caso clássico de complexo de Édipo") - e essa é mais uma forma de usar a palavra, não das menos importantes, nos dias de hoje.

 

Paulo Franchetti é professor titular de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

 

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O clássico

por Nelson Ascher


A espécie humana existe, de forma biologicamente inalterada, há cerca de 100 mil/150 mil anos. Por tudo que sabemos, desde que surgiu no sudeste africano, nada de relevante se alterou em sua configuração física ou aparato neurológico. Tudo com que nossos ancestrais fizeram a pré-história e a história foram artefatos culturais criados ou elaborados a partir de uma base física, biológica e psicológica que, comum a todos os membros da espécie, inclui a capacidade de simbolizar ou representar e a de se comunicar através da linguagem articulada.



Não há razão alguma para imaginarmos que os primeiros membros da espécie já não fizessem algum tipo de arte, seja verbal, seja material, musical, performática etc. A capacidade individual de fazê-la existia então como existe hoje e nenhuma comunidade foi jamais encontrada que não se dedicasse a atividades que classificaríamos sem relutância de estéticas.



Se o que se disse não passa de especulação, isso se deve à razão elementar de que os materiais envolvidos naquelas atividades, a começar pela voz, no caso das artes verbais, e continuando com a madeira, peles e ossos de animais, no que diz respeito à confecção de utensílios, eram perecíveis. No entanto, tão logo o homem principiou a trabalhar com materiais mais duradouros ou teve a sorte de fazê-lo em ambientes propícios a sua preservação, seus vestígios começam a se apresentar. Assim, mais de 20 mil anos atrás, as magníficas pinturas rupestres dos caçadores paleolíticos representando a si e aos animais que perseguiam ficaram registradas nas paredes de cavernas como a de Lascaux, no sul da França, ou Altamira, no norte da Espanha.



Já as artes da palavra, que, intrinsecamente vinculadas a algo que define o humano, a saber, a linguagem articulada, são decerto as primeiras a ter sido praticadas, estão, paradoxalmente, entre as que mais demoraram para se tornar materialmente perpetuáveis, algo impossível antes da invenção da escrita. Esta, ao que tudo indica, foi desenvolvida pela primeira vez no sul da Mesopotâmia (o atual Iraque) pelos sumérios, um povo de origem desconhecida, que se estabeleceu ali antes da chegada dos semitas (assírios e babilônios). Os sumérios criaram a escrita chamada de cuneiforme, devido ao formato de seus caracteres, usando-a originalmente para fins administrativos, mais ou menos 5 mil anos atrás.



Inventada a escrita, os sumérios valeram-se dela para gravar em tábuas de barro o primeiro clássico literário de que temos notícia: a epopéia de Gilgamesh. Trata-se da história mítica de um monarca que parece ter de fato existido. Segundo a lenda, o rei da cidade-estado de Uruk era três quartos divino e um quarto humano, e, portanto, mortal. Sua saga consiste na busca fracassada da imortalidade. (E um de seus capítulos contém até mesmo a versão mais velha da narração que depois retornaria na Bíblia hebraica, ou Antigo Testamento, como a história da arca de Noé.) O extenso poema, redescoberto, aos poucos, em diversos fragmentos soterrados no deserto e (assim como a própria língua suméria, que havia sido "perdida" e esquecida por quase 3 mil anos) decifrado e reconstruído peça por peça, sílaba por sílaba, a partir de meados do século 19, graças ao empenho de gerações sucessivas de filólogos dedicados, é, ao mesmo tempo, o mais antigo e o mais novo dos clássicos da literatura universal.



Na história de sua composição oral, de sua transcrição original, de suas primeiras traduções para as línguas semíticas da Mesopotâmia, na influência que exerceu sobre os textos que eram considerados fundadores da tradição ocidental, a Bíblia e os poemas homéricos (a Ilíada e a Odisséia) - influência que não cessou de exercer durante o intervalo triplamente milenar no qual a consciência de sua existência prévia, assim como a da língua em que fora composta e a memória da civilização em cujo âmbito nascera haviam desaparecido sem deixar traço -, a epopéia de Gilgamesh ilustra os paradoxos que envolvem e permeiam a idéia de clássico.



Este é um assunto que a crítica literária e musical, artística e cinematográfica, televisiva, dramática etc. não param nem pararão de discutir. Por quê? Primeiro, porque a resposta, de tão óbvia, nem requereria que a pergunta fosse feita: afinal, o clássico é... e, então, arrola-se uma lista interminável de obras que nada têm em comum exceto o fato de ser clássicas.



Limitemos-nos à literatura, pois, o que, em seus termos, vale para ela, vale para as demais artes. Um clássico, potencialmente, é uma obra que sobrevive a uma leitura, que merece uma segunda e, então, uma terceira, quarta, infinitas leituras... Um clássico é um sobrevivente e, embora, devido aos equívocos da subjetividade, seja necessário que mais de uma pessoa conclua que tal ou qual obra merece a releitura e seja também necessário que, para superar modismos em geral, isso se repita por duas ou mais gerações de modo a que se estabeleça um mínimo de certeza acerca da "classicidade" da obra examinada, o pressuposto básico para que um romance, um conto, um poema, um ensaio, uma epopéia se revele clássico é a vontade, o desejo, a pulsão do primeiro leitor que se sente obrigado a relê-lo.



Tal pulsão deve resultar não de uma leitura inicial displicente, nem de um texto desnecessariamente obscuro, mas, sim, da percepção de que há algo de inesgotável em seu conteúdo. Porque o clássico é, sobretudo, a obra inesgotável, capaz de preservar a própria identidade e sentidos fundamentais conforme, para cada freqüentador, a cada visita, adquire outros, se enriquece de novos. O tempo, ao contrário do que se pensa, não é o autor dos clássicos, ele é apenas sua testemunha e, como sucedeu com a epopéia suméria, às vezes, amnésico, nem sequer chega a sê-lo.



Mas, se este "ser clássico" é tão evidente, para não dizer simples, por que o tema segue sendo discutido? Justamente porque a discussão faz parte do processo que transforma tal ou qual obra em clássico. Outra característica de criações essenciais do espírito humano consiste em estas serem capazes de despertar continuamente as paixões, não deixar ninguém indiferente a elas. É da natureza das obras que contam alterarem, mesmo que somente um mínimo, o conceito do que é uma obra, os limites do gênero ou até da arte à qual pertencem. Desse modo, elas se impõem, enfatizando sua individualidade diferenciada, àquilo que, tomando de empréstimo um termo à teologia, a crítica recente batizou de cânone (o conjunto das obras reconhecidas enquanto clássicas).



Há, porém, mais: quando uma obra altera as definições de seu gênero, categoria ou arte, ela obriga a uma revisão das que a precederam, ela as redefine. Ao ser discutida, ela põe em discussão as demais. Cada nova obra não tanto admitida enquanto clássica (como se isso equivalesse a passar num teste), mas antes reconhecida enquanto tal por ter patenteado seus méritos, vencendo, ao despertar o afã da releitura, a resistência natural, bem como a preguiça e preconceito dos freqüentadores amadores ou profissionais, coloca novamente em questão as que vieram antes. Não que tenda a excluí-las do cânone. Ela, no entanto, induz a conferir, cotejar, verificar uma série de minúcias e detalhes em inúmeras outras, e, conseqüentemente, a relê-las, o que implica, aliás, confirmar ou reafirmar seu estatuto de clássico, se bem que, a cada releitura, se modifique, um pouco que seja, o significado desse estatuto.



Em última instância, ser um clássico significa pertencer a uma rede de releituras associadas e entrecruzadas, uma rede que é e deve ser perpetuamente modificada não só por todo novo clássico a ela incorporado, mas por toda releitura de cada qual deles. Essa rede não é uma ditadura de normas, um rol excludente ou fixo de regras, mas, sobretudo, uma teia de relações interconectando o passado, o presente e o futuro de nossa espécie, uma trama que permite ao mais remoto ancestral se dirigir a qualquer descendente ainda não nascido e que convida a todos estes, bem como a qualquer um de nós, melhor, desafia-nos todos a participar sem interrupção de uma conversa supratemporal de inteligências que, ao fim e ao cabo, constitui, para quem não tenha religião, aquilo que mais se aproxima da imortalidade buscada milênios atrás por Gilgamesh.

 

Nelson Ascher é poeta, ensaísta, tradutor de poesia e especialista em política internacional

 

 

 

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