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REVISTA E - Outubro 2006

 

 

 



HORA DO TERROR



Ele é, certamente, um dos nomes mais conhecidos da TV e do cinema brasileiros. José Mojica Marins, ou, melhor, Zé do Caixão, é um daqueles casos em que criador e criatura confundem-se no imaginário do público. É verdade que algumas características suas colaboram para a confusão - um exemplo é a marca registrada das imensas unhas. Mojica nasceu em São Paulo em 1936. Seu primeiro filme de terror, À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964), marcou o cinema na década de 60. Nele interpretava o assustador agente funerário de garras e capa preta. Único nome no gênero do cinema nacional, Zé do Caixão estendeu sua popularidade para a TV, com programas como o Cine Trash, na TV Bandeirantes, em meados dos anos 90. Para os fãs, a boa nova é que ele está prestes a rodar A Encarnação do Demônio, obra que encerra a trilogia iniciada com À Meia-Noite e seguida por Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967). O cineasta tem outro bom motivo para comemorar. Em homenagem a seus 70 anos, o Sesc Santo André preparou uma grande programação, chamada As 70 Almas do Zé do Caixão, que segue em cartaz até 15 de outubro, composta de exposição, oficina de contos de terror e show. Uma das atividades que mais chamam a atenção no evento são as rodas de histórias para crianças. Leia a seguir os melhores trechos do depoimento, concedido com exclusividade à Revista E em seu escritório no Centro de São Paulo.



Planos sinistros
No momento estou juntando toda a minha força para fazer o maior projeto da minha vida, que é o filme A Encarnação do Demônio. Estou nesse meio desde os anos 50. Nessa época ainda não era o Zé do Caixão, mas já tinha feito coisas inéditas. Fiz o primeiro cinemascope brasileiro, A Sina do Aventureiro [de 1958], uma espécie de bangue-bangue tupiniquim. Entrei também em uma outra área, na época inexplorada no Brasil: a do desenho animado. Meu primeiro desenho foi Meu Destino em Suas Mãos, feito em 1962. Ou seja, mostrei que era possível realizar essas coisas no cinema. Outra grande paixão minha são as histórias em quadrinhos. Fui um dos maiores colecionadores do Brasil, mas vendi minha coleção para terminar um filme. Assim consegui fazer a primeira fita de terror no Brasil, À Meia-Noite Levarei Sua Alma, em 1963. Em 1967, lancei Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, segundo filme de uma trilogia que terminará com A Encarnação do Demônio. Depois do lançamento dos dois primeiros, já comecei a pensar na continuação e a fazer o roteiro. Eu tinha um compromisso verbal com um produtor para realizar essa continuação. Quando estávamos prontos para começar a filmar - após quase 20 anos -, veio o inesperado: ele morreu repentinamente. Parece até que era uma fita maldita. No velório dele, foi a primeira vez que usei um terno todo branco. Finalmente, agora tenho a verba para fazer a fita. Convenceram-me a atuar nela, coisa que eu não queria mais. Afinal, quando escrevi o roteiro, há 40 anos, eu estava novinho ainda. No fim das contas, fizemos uma adaptação e resolvi trabalhar no filme como ator. Outras readaptações também foram feitas e pretendo lançar o filme em março de 2007. Por exemplo, naquela época, a censura me obrigou a inserir no último minuto da fita uma fala do Zé do Caixão. Depois que ele disse "Não acredito em nada", fui obrigado a acrescentar "A cruz, padre! Na cruz, eu acredito!". Obrigaram-me a fazer isso. No Encarnação de agora, o corcunda - fiel companheiro do Zé - estranha o negócio da cruz e diz: "A cruz era para crucificá-lo outra vez". Gostaria muito que Anselmo Duarte participasse do filme, mas não sei se será possível devido ao estado de saúde dele. Gostaria também que o Raul Cortez pudesse ter participado.


Vendedor de batatas
Vivi um trauma quando tinha 5 ou 6 anos. Havia um quitandeiro no meu bairro, a Vila Anastácio, que vendia batatas em uma carroça. Ele era amigo de todas as crianças, e elas gostavam dele porque ele contava várias histórias. Contava que depois da morte a gente falaria com bichos, com leão, com cobra e assim por diante. Quando esse homem morreu, eu e mais três garotos fomos ao velório dele. Sentíamos sua morte, mas como ele dizia que, quando a pessoa morre, vai para o paraíso, a gente pensou que ele estivesse bem. No entanto, durante seu próprio velório o homem levantou uma mão, depois a outra, e saiu do caixão. O homem não tinha morrido, havia tido uma catalepsia, mas nessa época, anos 40, ninguém sabia nada sobre isso, então o homem passou a ser discriminado por todo mundo, pela sogra, pela mulher e até pela mãe. Todos achavam que ele era a reencarnação do demônio e ninguém mais comprou batata dele. Então, da Vila Anastácio ele foi para o bairro dos Remédios, ali próximo. O boca-a-boca chegou lá e ele não arrumou emprego. Sua solidão o levou à loucura e ele foi internado em um manicômio. Com isso, muito cedo me tornei adulto. Acho que essa passagem mexeu muito comigo. Uma vez, meu pai me levou ao manicômio para visitá-lo. Ninguém mais, nem familiares, nem amigos, havia feito isso. Ele só não foi enterrado como indigente porque meu pai ajudou. Daí em diante, passei a me interessar pelo que vem depois da morte.


Cinema nacional
Avalio que o cinema nacional teve um infarto, foi para o hospital e se recuperou. Agora está começando a andar. Mas ainda não é o que precisamos, porque há muito dinheiro solto. É uma panela, e é uma panela carioca. Quando sai grana, como é o caso da Petrobrás, 80% vão para o Rio, 10% para São Paulo e os outros 10% para o resto do Brasil. Não sei explicar como isso acontece, mas é uma panela forte. Enquanto essa panela não for derrubada, não haverá cinema. Confesso que tenho lá meus ressentimentos com o cinema brasileiro, por não ter tido o reconhecimento que merecia. De certa forma, foram os jovens que me redescobriram, talvez por causa do Cine Trash. Mas até ir ao Canadá, em 2000, eu estava muito revoltado. Lá participei do Festival Fantasia, um dos maiores festivais do mundo do gênero sobrenatural e fui homenageado pela organização: "Se no Brasil as pessoas não sabem que o Zé do Caixão é o José Mojica Marins, aqui nós sabemos", o pessoal dizia. "Você não precisa ter esse ressentimento, porque lá você está no terceiro mundo e aqui no primeiro. Então, o primeiro já te reconheceu, o terceiro ainda não." O pessoal disse isso. Foi aí que comecei a fazer palestras em faculdades e cobrar caro por isso. Hoje, sinto a maior felicidade porque, enquanto eu tinha problemas com meus filhos - pois quando eles iam à escola todo mundo tirava sarro deles, chamando-os de Zé da Caixonete ou Zezinho do Caixão -, meus netos hoje têm orgulho de dizer quem é o avô deles. Até a professora deles é minha fã.

 

 

 

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