
HORA
DO TERROR
Ele é, certamente,
um dos nomes mais conhecidos da TV e do cinema brasileiros. José
Mojica Marins, ou, melhor, Zé do Caixão, é um daqueles
casos em que criador e criatura confundem-se no imaginário do público.
É verdade que algumas características suas colaboram para
a confusão - um exemplo é a marca registrada das imensas
unhas. Mojica nasceu em São Paulo em 1936. Seu primeiro filme de
terror, À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964), marcou o cinema na
década de 60. Nele interpretava o assustador agente funerário
de garras e capa preta. Único nome no gênero do cinema nacional,
Zé do Caixão estendeu sua popularidade para a TV, com programas
como o Cine Trash, na TV Bandeirantes, em meados dos anos 90. Para os
fãs, a boa nova é que ele está prestes a rodar A
Encarnação do Demônio, obra que encerra a trilogia
iniciada com À Meia-Noite e seguida por Esta Noite Encarnarei no
Teu Cadáver (1967). O cineasta tem outro bom motivo para comemorar.
Em homenagem a seus 70 anos, o Sesc Santo André preparou uma grande
programação, chamada As 70 Almas do Zé do Caixão,
que segue em cartaz até 15 de outubro, composta de exposição,
oficina de contos de terror e show. Uma das atividades que mais chamam
a atenção no evento são as rodas de histórias
para crianças. Leia a seguir os melhores trechos do depoimento,
concedido com exclusividade à Revista E em seu escritório
no Centro de São Paulo.
Planos sinistros
No momento estou juntando toda a minha força para fazer o maior
projeto da minha vida, que é o filme A Encarnação
do Demônio. Estou nesse meio desde os anos 50. Nessa época
ainda não era o Zé do Caixão, mas já tinha
feito coisas inéditas. Fiz o primeiro cinemascope brasileiro, A
Sina do Aventureiro [de 1958], uma espécie de bangue-bangue tupiniquim.
Entrei também em uma outra área, na época inexplorada
no Brasil: a do desenho animado. Meu primeiro desenho foi Meu Destino
em Suas Mãos, feito em 1962. Ou seja, mostrei que era possível
realizar essas coisas no cinema. Outra grande paixão minha são
as histórias em quadrinhos. Fui um dos maiores colecionadores do
Brasil, mas vendi minha coleção para terminar um filme.
Assim consegui fazer a primeira fita de terror no Brasil, À Meia-Noite
Levarei Sua Alma, em 1963. Em 1967, lancei Esta Noite Encarnarei no Teu
Cadáver, segundo filme de uma trilogia que terminará com
A Encarnação do Demônio. Depois do lançamento
dos dois primeiros, já comecei a pensar na continuação
e a fazer o roteiro. Eu tinha um compromisso verbal com um produtor para
realizar essa continuação. Quando estávamos prontos
para começar a filmar - após quase 20 anos -, veio o inesperado:
ele morreu repentinamente. Parece até que era uma fita maldita.
No velório dele, foi a primeira vez que usei um terno todo branco.
Finalmente, agora tenho a verba para fazer a fita. Convenceram-me a atuar
nela, coisa que eu não queria mais. Afinal, quando escrevi o roteiro,
há 40 anos, eu estava novinho ainda. No fim das contas, fizemos
uma adaptação e resolvi trabalhar no filme como ator. Outras
readaptações também foram feitas e pretendo lançar
o filme em março de 2007. Por exemplo, naquela época, a
censura me obrigou a inserir no último minuto da fita uma fala
do Zé do Caixão. Depois que ele disse "Não acredito
em nada", fui obrigado a acrescentar "A cruz, padre! Na cruz,
eu acredito!". Obrigaram-me a fazer isso. No Encarnação
de agora, o corcunda - fiel companheiro do Zé - estranha o negócio
da cruz e diz: "A cruz era para crucificá-lo outra vez".
Gostaria muito que Anselmo Duarte participasse do filme, mas não
sei se será possível devido ao estado de saúde dele.
Gostaria também que o Raul Cortez pudesse ter participado.
Vendedor de batatas
Vivi um trauma quando tinha 5 ou 6 anos. Havia um quitandeiro no meu bairro,
a Vila Anastácio, que vendia batatas em uma carroça. Ele
era amigo de todas as crianças, e elas gostavam dele porque ele
contava várias histórias. Contava que depois da morte a
gente falaria com bichos, com leão, com cobra e assim por diante.
Quando esse homem morreu, eu e mais três garotos fomos ao velório
dele. Sentíamos sua morte, mas como ele dizia que, quando a pessoa
morre, vai para o paraíso, a gente pensou que ele estivesse bem.
No entanto, durante seu próprio velório o homem levantou
uma mão, depois a outra, e saiu do caixão. O homem não
tinha morrido, havia tido uma catalepsia, mas nessa época, anos
40, ninguém sabia nada sobre isso, então o homem passou
a ser discriminado por todo mundo, pela sogra, pela mulher e até
pela mãe. Todos achavam que ele era a reencarnação
do demônio e ninguém mais comprou batata dele. Então,
da Vila Anastácio ele foi para o bairro dos Remédios, ali
próximo. O boca-a-boca chegou lá e ele não arrumou
emprego. Sua solidão o levou à loucura e ele foi internado
em um manicômio. Com isso, muito cedo me tornei adulto. Acho que
essa passagem mexeu muito comigo. Uma vez, meu pai me levou ao manicômio
para visitá-lo. Ninguém mais, nem familiares, nem amigos,
havia feito isso. Ele só não foi enterrado como indigente
porque meu pai ajudou. Daí em diante, passei a me interessar pelo
que vem depois da morte.
Cinema nacional
Avalio que o cinema nacional teve um infarto, foi para o hospital e se
recuperou. Agora está começando a andar. Mas ainda não
é o que precisamos, porque há muito dinheiro solto. É
uma panela, e é uma panela carioca. Quando sai grana, como é
o caso da Petrobrás, 80% vão para o Rio, 10% para São
Paulo e os outros 10% para o resto do Brasil. Não sei explicar
como isso acontece, mas é uma panela forte. Enquanto essa panela
não for derrubada, não haverá cinema. Confesso que
tenho lá meus ressentimentos com o cinema brasileiro, por não
ter tido o reconhecimento que merecia. De certa forma, foram os jovens
que me redescobriram, talvez por causa do Cine Trash. Mas até ir
ao Canadá, em 2000, eu estava muito revoltado. Lá participei
do Festival Fantasia, um dos maiores festivais do mundo do gênero
sobrenatural e fui homenageado pela organização: "Se
no Brasil as pessoas não sabem que o Zé do Caixão
é o José Mojica Marins, aqui nós sabemos", o
pessoal dizia. "Você não precisa ter esse ressentimento,
porque lá você está no terceiro mundo e aqui no primeiro.
Então, o primeiro já te reconheceu, o terceiro ainda não."
O pessoal disse isso. Foi aí que comecei a fazer palestras em faculdades
e cobrar caro por isso. Hoje, sinto a maior felicidade porque, enquanto
eu tinha problemas com meus filhos - pois quando eles iam à escola
todo mundo tirava sarro deles, chamando-os de Zé da Caixonete ou
Zezinho do Caixão -, meus netos hoje têm orgulho de dizer
quem é o avô deles. Até a professora deles é
minha fã.
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