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Ficção Inédita
Assassinato na noite de natal
Silviano Santiago
Estou escarrado nesta confissão natalina. Quem me conhece bem, não precisa ir adiante. Já sabe o que vai ler. Quero leitores bisbilhoteiros. Os que gostam de devorar a revista Capricho para saber o que se passa por detrás da vida dos ricos e famosos. Não sou tão rico quanto um rico. Nem tão famoso quanto um famoso. Sou médio. Amigo de Vera Loyola. Pai pobre, filho emergente. Já dá æ se dá æ pra despertar a inveja do leitor invejoso. No leitor que me conhece de longe. Assistindo à telenovela das oito. Ou folheando uma revista de escândalos na condução. Esta confissão ajuda você, querido leitor, a carcomer a inveja que sente dos ricos e famosos.
Deixo de ser motivo da sua inveja. Pra que invejar alguém que é famoso e solitário? Solitário até na noite de natal. Fama deve vir com dólar, muito dólar, carrões, festas, amigos, porres, viagens, mulheres, divinas mulheres de beijos ardentes e xoxotas calientes. Fama não rima com solidão. A não ser no caso de Greta Garbo. "I want to be alone." Não sou la Garbo e moro na Barra da Tijuca.
Solidão não rima com natal, a não ser nalgum conto obscuro de Truman Capote. Aqui solidão rima com natal e os invejosos do mundo inteiro irão todos ler minha confissão. Sílaba por sílaba. De alma lavada. Minha confissão vai cair nas mãos do Nelson Rubens, da Sônia Salomão e do Ratinho. E virar rango pras noites quentes das macacas de auditório. Uma reportagem. Vergonhoso! Famoso ator de telenovelas mendiga amigos na noite de natal! Quem me inveja já está vingado. "Vingança, vingança, vingança, aos santos clamar." Por onde andará Linda Batista? Por onde andará Lupiscínio Rodrigues? São a alma do povo brasileiro. Sabem de tudo.
Deus aprendeu com eles. A escrever certo por linhas transpostas. Deus é travesso, até mesmo no dia de natal. No meu dia de natal. Não tenho confiança em Deus. Não digo que ele não me fez famoso. Fez. Digo só que ele não me deu um empurrãozinho legal quando devia ter dado. Todos leram nos jornais e revistas da época. Todos sabem da minha noite de núpcias. Deus não precisava ter feito, ou ter mandado fazer, o que fez comigo. A noite de núpcias contrabalançou a minha fama precoce. Hoje a solidão contrabalança a inveja dos meus admiradores. Tudo é noite na minha vida. Noite de núpcias, noite de natal. Quatro enes. Ene de núpcias e de natal. Ene de Nelson, meu nome verdadeiro. Ene de Natanael, meu nome na televisão. Se você conhece o Nelson, não te disse que não precisava ler esta confissão.
Se você conhece o Nelson, sabe que noite rima com noite e núpcias rima com natal. A solidão. Como o Sombra, você também sabe que existe um Nelson se escondendo por detrás do Natanael. Chicotinho queimado. As fãs histéricas não sabem. Vão ficar sabendo. A partir de hoje. Já sabiam da noite de núpcias. Quem não ficou sabendo no Brasil? Elas não sabem das viagens para o exterior que faço no natal. Vão ficar sabendo. Viajo pra longe do Brasil. Incógnito. Não vou a Paris nem a Nova Iorque, Lisboa nem a Toronto.
O avião me deixa no meio do caminho. O resto da viagem faço de ônibus ou de trem. Depende. Os ônibus da Greyhound estão cada vez mais sujos. São confortáveis os trens europeus. Escolhida no mapa do acaso. Uma cidade sem importância. Não muito pequena. Tem de ter o tamanho que permita que eu me perca nela. Hospedo-me em hotel duas estrelas. Quem vai procurar o galã Natanael Ramos, rico & famoso, num duas estrelas? Odeio o clique da máquina fotográfica. Não quero o foco de luz da câmera de televisão. Me hospedo com o nome de Nelson, é claro. Meu passaporte não me denuncia. Não uso óculos escuros pra não dar bandeira. Uso óculos de míope sem as lentes que corrigem miopia. Uso óculos que não uso. Que usei na minissérie Lampeão. Me escondo por detrás deles.
Só não deixo a barba crescer porque detesto rosto sujo. Na rua me distinguem com o olhar certeiro. Muitas vezes. Rosto de bebê johnson. Pele limpa e bem cuidada. O à vontade com a vida. Roupa da moda. Morro de medo dum dedo-duro me apontando. "É o Natanael, aquele da televisão. Quem diria, perdido aqui no meio do mato?" Morro de medo. Até hoje, só me reconheceram uma vez. Não queriam me deixar sozinho.
Três dias de viagem natalina pelo interior de qualquer país. Um dia antes do 25. Outro depois. O dia 24 começa bem. O almoço é maneiro. O espírito natalino baixa no ambiente e nas mesas que nem exu num terreiro. Tudo é confraternização entre desconhecidos no barco do restaurante. Na Alemanha cerveja pra cá, cerveja pra lá, e a cantoria infindável. Enfadonha. Ao som de acordeom. Pizzaria na Itália æ já disse tudo. Restaurante francês nos Estados Unidos. Vinho à mesa, comme il faut, e comida intragável nos pratos. Gringo rico não faz diferença entre cebola e fines herbes. Quem faz é imigrante pobre. Imigrante pobre não come em restaurante francês. Moral: comida francesa nos States? Uma droga cara. Cozinha regional na França. Sempre boa e gordurosa. Melhor do que a de Paris. Em Portugal, vou de bacalhoada. Numa tasca. Aquela gente boa, gorda e sorridente vestida de cores natalinas. Verde do pinheiro, vermelho do papai Noel e branco da paz. E o fado da saudade.
Deixei de ir a Portugal. Já imaginam a razão. Adoram atores brasileiros. Uma vez me reconheceram na rua. Me acompanharam até o hotel. Ameaçaram trazer o jornal local. Mandar o prefeito me convidar para a ceia na casa dele. Fugi correndo para a cidade mais próxima.
Tudo fecha às cinco da tarde do dia 24. Não é questão de praxe neste ou naquele país. Nesta ou naquela região. É coisa de natal em toda cidade pequena. As ruas se esvaziam. O próprio day after. A bomba atômica do natal "cae a las cinco en punto de la tarde". Como no poema de García Lorca. Todos correm. Buscam refúgio no abrigo do lar. Você æ eu, no caso æ fica solto na cidade vazia. Cara de tacho. Solto o corpo. E a mente fica bamboleando. Cai neve. Sempre cai neve no natal. Menos em Portugal e na Espanha. Venta o vento frio do pólo norte. Menos no sul dos Estados Unidos. Chove a cântaros.
Hora de voltar pro hotel. Passar pela cozinha (é um duas estrelas, sem serviço de quarto e sem mensageiros). Pegar a bandeja com o rango e o balde com a champanhe. A ceia que encomendei. Hora de me trancar no quarto. Deixar o prato arrumadinho na mesa de cabeceira. Com o guardanapo e os talheres. A garrafa de champanhe ao lado. Num balde. Uma soneca rápida. Acordar.
Ligar a televisão. Ajeitar os travesseiros. Shows de quinta categoria. Espouca a rolha do champanhe. Não importa o canal. Não importa a língua. Um gole de champanhe. São pouco inteligentes os MCs e os artistas na noite de natal. São burros. Sentimentais. Esponjas. Espirram lágrimas pelos quatro cantos da telinha. Outro gole de champanhe. Desde Bing Crosby o natal é o mesmo. Graças ao cinema. Em todos os países o natal é o mesmo. Bing Crosby passou o cetro a Frank Sinatra. A televisão imitou Hollywood. Que o passou a Dean Martin. A vida imita a arte. Grande Oscar Wilde! Vivemos todos na aldeia global da telona e da telinha. A primeira garfada. Todos no natal. Vivemos todos no natal dentro dum filme de Bing Crosby e Judy Allison. E não sabemos. Ou será que sabemos? Ou será que sabemos, sem na verdade saber? Depois vem o show com os artistas da casa. Metade da garrafa de champanhe se foi. O prato vazio fica na bandeja, ao lado da porta. Todos vestidos de branco. Abraçam-se uns aos outros e se beijam. Todos cantam e dançam. Anch'io. Até eu canto e danço na televisão brasileira. Deixei a minha participação gravada. Todos nós desejamos feliz natal ao feliz telespectador. Boas festas! Boas festas!
O nascimento de Cristo. Ene de nascimento. O quinto ene. Minha noite de núpcias, minha noite de natal. Pensando bem, não há motivo para eu ficar sozinho na noite de natal. A não ser, a não ser que esteja querendo. Que esteja querendo me assassinar um pouquinho a cada noite de natal. Como Deus, que me tirou uma lasca na noite de núpcias. Os quatro enes se encontram com o quinto ene. Caio na armadilha. O negócio é adiar um pouquinho mais o dia da morte anunciada.
Escrevo esta confissão no dia 26 de dezembro de 2001. Amanhã regresso a Paris. De trem. Um apartamento me espera no Hôtel Plaza-Athenée. Também a minha namorada atual, invejosos.
Silviano Santiago é autor de
De Cócoras (Editora Rocco), entre outros