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A cidade dança

A terceira edição da Bienal Sesc de Dança reafirma a proposta de co-autoria cultural com apresentações nas ruas, praças e edifícios históricos de Santos

A falta de espaços para a apresentação de espetáculos de dança contemporânea é uma questão já há algum tempo levantada por grande parte dos realizadores. E não é à toa. A despeito da grande quantidade de grupos independentes que surgiram no País nos últimos anos, e também da qualidade que vêm apresentando em seus espetáculos, a agenda cultural das grandes cidades brasileiras não parece muito suscetível às suas incursões. Basta uma breve olhada nos jornais para se dar conta de que os disputados palcos do País não têm absorvido de maneira adequada o volume de espetáculos concebidos.
Desde 1998 o Sesc São Paulo vem apostando em uma iniciativa que privilegia uma diferente concepção para o espetáculo de dança. A Bienal Sesc de Dança, sediada na cidade de Santos, já nasceu com a preocupação de expandir os limites da expressão artística. Uma de suas facetas mais notáveis é propor uma alternativa ao espaço convencional do teatro. Já em sua primeira edição, os espetáculos da Bienal tomaram ruas, praças e prédios históricos da cidade com a idéia não apenas de aumentar o leque de lugares possíveis para as apresentações, mas também como forma de exercitar um diferente diálogo entre artistas e público.
"Desde sua primeira edição, o evento foi um sucesso", avalia Rosa Freire, coordenadora da bienal. "A cidade de Santos tem muita história e tem sido muito gratificante conseguir explorá-la através da dança. Nossa intenção é conduzir o olhar do espectador para espaços arquitetônicos da cidade e fazer com que os espetáculos sirvam como ponte de diálogo entre o patrimônio de Santos e a população."
A doutora em semiótica Lúcia Leão, que integrou o corpo de jurados do evento, chama a atenção para outro aspecto. "Além de resgatar uma possibilidade antiga da arte, que é o espetáculo de rua, há a preocupação com a memória da cidade. Não é apenas o entretenimento que está em pauta, mas também aspectos éticos e sociais - qual o significado desses locais para os cidadãos? De alguma forma, isso vem à tona quando o público está ali, participando de uma intervenção", argumenta. "A história é carregada de significados, e eles estão latentes. Quando os espaços são apropriados pelas experimentações, demonstra-se, de certa forma, como esse passado está vivo."

Convidados e selecionados
A terceira edição da bienal aconteceu de 3 a 10 de novembro, trazendo, além das apresentações, oficinas, seminários, instalações de artes visuais e um ciclo de vídeo-dança.
Entre os espetáculos convidados, estiveram Intervenção Pele, idealizado pela coreógrafa Ivani Santana; Polvo, de Michel Groisman; Mulheres, do Quasar Cia. de Dança, e The Spheres, da companhia australiana Strange Fruits. Além deles, apresentaram-se também 30 grupos selecionados. Em comum, a disposição de assumir os espaços da cidade como parte integrante de seus espetáculos. "Salvo alguns coreógrafos, pesquisadores e intérpretes, a maioria dos trabalhos produzidos no País é pensada para o palco, para essa relação frontal entre espetáculo e platéia", explica Rosa. "Muitas vezes é difícil encarar uma proposta como a da Bienal, mas é também uma possibilidade de reeducar sua concepção de espetáculo, exercitar outro olhar sobre a dança."
O que pode parecer para alguns realizadores uma barreira intransponível, para outros é extremamente instigante. É o caso da coreógrafa Holly Cavrell, cujo espetáculo, A Convulsiva Beleza de uma Vida Comum, foi um dos selecionados. "Tenho estado fascinada pelos espaços alternativos. É muito interessante, pois eles têm a capacidade de contaminar o trabalho - dão outra vida, outros significados às vezes ocultos", diz. "No caso da bienal, levamos o trabalho para o prédio da antiga Bolsa do Café. O lugar tem mil referências históricas, uma energia muito forte. Foi um desafio não permitir que aquele espaço nos engolisse", relembra. "No entanto, foi uma experiência maravilhosa. É uma oportunidade incrível trocar com esse espaço", explica. "Não só nas dimensões físicas, mas também através das novas leituras que o espaço traz para o corpo." Para o coreógrafo e intérprete Wesley de Alessandro, que apresentou Sombra, também na antiga Bolsa do Café, foi uma experiência enriquecedora. "O espetáculo só ganhou nesse espaço. Nossa pesquisa de linguagem é centrada na interpretação do artista e no diálogo com outras expressões, como a fotografia. O espaço trouxe todo um ambiente histórico e acabou se tornando parte integrante do espetáculo."

Multiplicidade autoral
Assim como nas edições anteriores da Bienal, o conceito de co-autoria cultural esteve presente também neste ano. A idéia é que os espetáculos apresentados tivessem sido concebidos de maneira descentralizada e estivessem abertos às mais variadas interferências, sejam elas do público, dos intérpretes ou mesmo do espaço. "Esse é um dos assuntos mais importantes de nossa época", retoma a professora Lúcia Leão. "A idéia da autoria está enraizada desde o surgimento do conceito de arte, no Renascimento. Antes disso não havia a figura do autor", explica. "Durante todos esses 500 anos, o conceito de autoria foi muito forte. O que vemos agora é uma certa crise. Já não existe uma autoria, e sim colaborações, parcerias, trocas."
Wesley concorda. Para ele, justamente por isso, o tema é absolutamente apropriado para um evento como esse. "É uma questão que se discute não só na dança contemporânea, mas na produção das artes em geral. A co-autoria se expande não só para a concepção do artista, mas também para a concepção de quem está recebendo a obra."
Outro participante da Bienal, mas na condição de convidado, foi o dinamarquês Peter Dietz, que apresentou o espetáculo-solo Versão: Ao Vivo. "A proposta foi muito interessante", afirma. "Isso possibilita, realmente, sempre uma experiência diferente. De certa forma, são espetáculos abertos, você nunca sabe o que pode acontecer. Na minha apresentação, por exemplo, apareceu um cachorro. Todos pensavam que eu o tinha levado, mas não. E ele acabou virando a estrela do espetáculo - mais um co-autor", lembra.

Seleção
Outra característica particular do evento foi o processo de seleção dos mais de 90 espetáculos inscritos, vindos de vários estados do País. Sessenta e três deles passaram pela avaliação de um corpo de jurados especialmente criado para a Bienal. Entre os profissionais envolvidos, não só especialistas em dança, mas também doutores em semiótica, artistas plásticos e arquitetos. Além da equipe de técnicos de várias unidades do Sesc que particiaparam do processo seletivo.
"Essa iniciativa é riquíssima", afirma Euzébio Lobo, coordenador dos cursos de pós-graduação do Instituto de Artes da Unicamp e um dos jurados. "A Bienal oferece não propriamente uma prova de seleção, mas um diálogo interartístico entre os criadores e aqueles que estão, sob diversos ângulos, apreciando a obra. Dessa forma, amplia-se a abrangência do evento", defende. "Ainda existe uma grande carência desse diálogo." É também no que acredita Holly Cavrell. "Nós, artistas dos grupos independentes, ficamos praticamente de joelhos para que as pessoas vejam e comentem nosso trabalho. Para mim, passar por esse processo foi muito bom."
Euzébio chama a atenção também para a possibilidade de democratização da arte que a Bienal evoca. "Há ainda no País uma mentalidade que enxerga apenas nos grandes teatros das grandes cidades a legítima cultura artística. De repente, em um evento como esse, você tem a possibilidade de descobrir que não é bem assim, que existem vários grupos e muita gente boa produzindo no Brasil inteiro."