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Teatro
Ecos de Beckett
Começo perguntando que importância pode ter Beckett no que eu escrevo. Não tenho a intenção de comparar meu trabalho com o dele, e sim retomar uma questão recorrente a todos nós que fazemos teatro no cotidiano: como dialogar com a tradição? Como colocar Shakespeare, Molière, Plínio Marcos no que eu escrevo, ou, no caso dos atores, sobre o palco?
Não posso fingir que Beckett não existiu ou que já não existe mais. No entanto, se eu me lembrar dele, não vou escrever uma palavra. Em primeiro lugar, porque é isso que, de certa forma, ele diz - que não vai adiantar eu escrever. Em segundo lugar, porque os temas dele são necessariamente os meus, já que somos homens contemporâneos. Além da questão da atemporalidade de alguns deles, o mundo não mudou tanto nesses 50 anos. As questões são muito parecidas, para não dizer as mesmas. Não posso, na hora de organizar meu material dramático, me lembrar do que já foi feito. Porém, se não me lembrar, ficarei continuamente reinventando a roda.
Acho importante pensar sobre os resquícios de Beckett no teatro dos meus contemporâneos, das pessoas que estão trabalhando hoje em São Paulo. Não posso nem falar do Brasil, nem de outras artes.
Tem sido comum, ao longo dos anos, ouvirmos que não existe uma tradição brasileira de dramaturgia, e que essa tradição, se existe, é pega por osmose. Nelson Rodrigues gostava de aumentar o próprio folclore de que não conhecia nada antes de escrever A Mulher sem Pecado. Mentira. O próprio Vestido de Noiva, como já disse Eduardo Tolentino em mais de uma ocasião, é um diálogo direto com Amor, de Oduvaldo Viana. Ele conhecia Pirandello e uma série de dramaturgos. Isso não diminui em nada a genialidade de sua obra, mas o fato de ele esconder seus conhecimentos faz com que fique mais difícil para nós percebermos seus méritos - perceber que ele não estava reinventando a roda, e sim dialogando com aquilo que havia de melhor.
Plínio Marcos também gostava de fazer a apologia da ignorância, no bom sentido. No início de sua carreira, em Dois Perdidos numa Noite Suja, ele dizia para quem quisesse ouvir que tinha tirado aquela história de um conto do Alberto Moravia. Outra passagem - que se não é verdadeira, é bem possível - ele mesmo contou em mais de uma ocasião: Barrela teria surgido em uma leitura de Esperando Godot na casa da Pagu, em Santos. Ele escutou aqueles dois vagabundos conversando e falou: "Isso eu também faço."
Na minha geração isso já está um pouco diferente. Não podemos mais esconder o que conhecemos - o que não significa, em absoluto, que conheçamos tudo em profundidade. Se repararmos no que está sendo montado em São Paulo hoje, as marcas de Beckett estão claras. Um exemplo é o trabalho de Alcides Nogueira. Depois de fazer a trilogia sobre a questão da modernidade - e não daria para fazer isso sem passar por Beckett - ele acaba de estrear A Ponte e a Água de Piscina. Do ponto de vista estilístico, a peça não tem nada a ver com Beckett, mas a questão da angústia, da incomunicabilidade está ali presente.
Personagens em Beckett
É interessante perceber como o teatro de Beckett, de certa forma, só surge depois que ele já fez um percurso na literatura. Quando fez Esperando Godot, já tinha escrito Murphy, Watt, Mercier e Camier e Molloy. Ele engendrou Godot ao mesmo tempo em que escrevia Malone Morre e O Inominável. São textos em que ele termina esse caminho que percorrera de abrir mão da primeira pessoa - passa a haver um texto que é, sim, lírico, no sentido em que corresponde a uma subjetividade, mas não pessoal.
Em Esperando Godot, Beckett abre mão da idéia de personagens para fazer com que o próprio espectador possa, a qualquer momento do jogo, entrar como um deles. Não por identificação, mas porque o jogo é feito para que não seja necessária a identificação com o tipo proposto, e sim com o processo.
As peças dele vão se desenvolver a partir disso: cada vez menos personagens. Em Fim de Jogo há quatro personagens; em A Última Gravação, há a pessoa com ele mesmo - ele está jogando com alguém; em Oh! Os Belos Dias há, quase por humor, um marido e uma mulher, mas ele estrutura de tal maneira a peça que a única função daquele marido é dar à protagonista a certeza de que ela existe - ela só existe no jogo com ele. É como se Beckett desse a chave para entendermos as outras peças. Se levarmos essa brincadeira às últimas conseqüências, vamos ter os últimos textos dele - textos em que se tem novamente uma fala que é lírica, sim, porque tem subjetividade, mas que não tem personagem, não está delimitada nem como personagem, nem como tipo. Ela está dialogando diretamente com o espectador - já não há o subterfúgio de outras figuras em cena. O antagonista passa a ser o espectador. Se déssemos um passo além, já não estaríamos mais fazendo teatro.
A quebra da fala
De certa forma, o teatro depois de Beckett não pode se livrar dos mesmos temas: a incomunicabilidade, a angústia diante da condição trágica do humano, que ao nascer já está morrendo, e, em terceiro lugar, de novo o tema da incomunicabilidade - mas não apenas no sentido social, mas no de que a própria tentativa do homem se comunicar consigo mesmo também é impossível, ou pelo menos é inviável pela palavra como a conhecemos. E daí talvez o fato de ele, nos últimos trabalhos, ir quebrando a fala, num processo similar ao de análise - em que se procura fugir de sua lógica, para que nos interstícios, na diferença entre um trecho articulado e outro, a verdade interior apareça. Jamais você conseguirá apreendê-la num plano racional, mas você conseguirá vislumbrá-la.
Acho que essa é a experiência que Beckett tentou fazer com seu teatro; fazer com que ao ver esse discurso desarticulado, mas ao mesmo tempo carregado de angústia, de fragilidade, de morte e de clausura que é a vida humana, o espectador possa ser tocado e entrar em contato com sua própria angústia.