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Entrevista
Hilda Hilst

Direto de sua casa/retiro em Campinas, a Casa do Sol, a escritora e poeta Hilda Hilst falou, com exclusividade à Revista E, de sua obra, dos amigos, da situação política do mundo de hoje e de sua entrega à literatura

Cerca de 40 anos atrás, Hilda Hilst trocou a agitada vida da metrópole paulistana por uma fazenda nos arredores de Campinas, interior do Estado, com uma única intenção: escrever. O resultado foi excelente: hoje é reconhecida como uma das mais catárticas poetas em atividade no Brasil. Seus textos teatrais, além de reconhecimento da crítica, seguem colhendo entusiastas de seu estilo introspectivo. Nesta entrevista exclusiva, Hilda Hilst, cuja obra vem sendo reeditada ao longo deste ano, faz uma retrospectiva de sua vida literária, suas idéias e crenças - entre elas, o poder da literatura diante de seus autores e leitores. A seguir, os principais trechos da entrevista, que não poderia ter sido realizada sem o auxílio do escritor José Mora Fuentes.

O fato de ter optado por morar em uma fazenda há quase 40 anos foi provocado pelo quê? Foi uma decisão em favor da entrega total à literatura?
Foi sim. Eu realmente queria fazer o meu trabalho e sabia que na fazenda eu poderia fazê-lo. Eu tinha uma vida linda em São Paulo, muito divertida, amigos ótimos, mas nunca conseguiria trabalhar, iria me distrair.

Como a vida no campo influenciou ou sugeriu temas ou vivências à sua obra?
Influenciou muito, não tenho dúvida disso. Fui para o campo em 1965, fiquei morando na casa da minha mãe, que era a sede da Fazenda São José, até terminar de construir a Casa do Sol, em 1966. Confirmei minha afinidade com o campo. Mas não sei o quanto ele interferiu no que eu tinha a dizer. Estar no campo me ofereceu uma vida mais calma, com menos interrupções, propícia para fazer meu trabalho. Eu pude ler muito mais, pensar nas coisas com mais profundidade. Esse isolamento foi necessário para que eu pudesse trabalhar. Mas não foi um isolamento absoluto. As pessoas imaginam que entrei em clausura, me vesti de monge e fiquei jogando cinzas na cabeça, mas não foi assim (risos). Eu estava casada com o Dante (Casarini) e, além disso, minha casa era freqüentada por vários amigos, escritores, pintores, atores... Gente com quem tinha muita afinidade. Eu me afastei da vida da cidade mas não do mundo e nem das pessoas.

Particularmente, como foi deixar todo o convívio social que a senhora tinha em São Paulo nos anos de 1960?
Foi fácil. Só os amigos estranharam, apostaram que eu voltaria depois de uns três meses, que não suportaria a vida no campo. Mas eu sabia que tinha muito para fazer. Logo comecei a escrever minhas peças de teatro e minha ficção.

Como a senhora compreende a solidão para o trabalho de um escritor?
A solidão é indispensável. Você pensa muito mais nas coisas do de dentro do que nas coisas do de fora.

E como é a sua rotina no sítio? Atualmente, a quais atividades a senhora tem se dedicado mais?
Minha rotina mudou bastante nos últimos meses. Venho muito a São Paulo, que é onde estou agora, às vezes fico quase um mês. Revejo alguns amigos. Mas a rotina em casa tem sido quase a mesma de sempre. Desde que parei de escrever costumo acordar lá pelas 10 h, tomo o café vendo o noticiário na televisão, fico com o cabelo em pé com tudo o que está acontecendo no mundo, depois assisto a um documentário ou um filme. Vou para o escritório, leio os jornais e mergulho nos livros que estou relendo. Almoço por volta das 15 h, vejo mais televisão, volto para o escritório. Durmo cedo.

O que e quem a senhora tem relido?
Os assuntos variam. Vão do sobrenatural à física quântica, que é absolutamente sobrenatural! Tenho certeza de que a matéria da alma ainda será explicada pela física quântica. Leio Joyce, Bataille, dicionários do sobrenatural, agora comecei a ler o Tratado do Desespero, de Kierkgaard. Leio muitas biografias também.
A senhora acredita que sua obra de ficção, embora premiada, seja de fato compreendida?
Acho que, cada vez mais, ela começa a ser compreendida.

De que maneira a senhora sente isso?
O Mora Fuentes cuida dos meus e-mails e demais contatos pela Internet. Além disso, tenho uma homepage (www.hildahilst.cjb.net). Eu não tenho afinidade com computadores, mas o Mora imprime tudo o que chega e eu leio. Recebo muitos e-mails. Por meio dessa correspondência com os leitores posso perceber que estou sendo cada vez mais lida e compreendida. São comentários muito emocionados, quase passionais.
A senhora declarou certa vez que toda a sua obra foi escrita para ser reconhecida pelo seu pai. Até hoje, após a morte dele, a senhora ainda escreve pensando nele?
Eu penso muito no meu pai, sempre. Mas hoje quase não escrevo mais.

Se fosse possível fazer uma genealogia, sua obra teria influência de quais autores brasileiros?
Acredito que de Guimarães Rosa.

O que em Guimarães Rosa lhe causa interesse?
Tudo, inclusive ele mesmo, sua personalidade. O Guimarães era essencialmente criativo, brilhante, contou histórias fabulosas de forma inédita e com uma linguagem linda. Lembro que quando acabei de ler Manuelzão e Miguilim eu estava comovidíssima. Liguei para ele, comentei a beleza que era seu texto e ele me respondeu, brincalhão: "É, o menino aqui é bom!" O Guimarães era uma pessoa rara.

A senhora acredita em inspiração?
Completamente. Definitivamente.

Como a inspiração vem para a senhora? Ela é privilégio de poucos? Somente dos escritores e artistas?
Não sei. Não é uma coisa que você comande. Para os artistas, todos eles, eu acredito que ela seja indispensável. Para a poesia, sem dúvida. Para a vida também.

Sua obra erótica provocou sempre vários escândalos. Mesmo alguns de seus amigos fizeram críticas a ela. Como a senhora encara essas reações atualmente?
Eu fico surpresa com o escândalo que as pessoas ainda fazem quando é uma mulher a falar de erotismo. É como se mesmo hoje as mulheres não pudessem ter sexualidade ou não devessem nunca pensar nisso e muito menos falar sobre. O que é uma besteira enorme, porque a gente pensa muito nisso, não é? (risos). Hoje, encaro essas reações muito divertidamente.

Parece que a senhora tocou no ponto nevrálgico dessa questão/tabu: a postura da mulher. Como a senhora vê a figura da mulher na sociedade atual e toda essa revolução de costumes que a teria colocado na mesma posição do homem?
A situação melhorou para boa parte das mulheres, mas estar de igual para igual com os homens eu não sei se é bom o suficiente. Os homens estão um lixo (risos). Não vejo vantagem nenhuma, por exemplo, se uma presidenta fizer a mesma coisa que o Bush está fazendo com essa história de invadir o Iraque, ameaçando ignorar a ONU, ou mesmo sua atenção desastrosa com o Terceiro Mundo. Outro exemplo: Margareth Thatcher foi um político, um homem na sua atuação, por isso foi chamada de "Dama de Ferro". Não vimos o governo de uma mulher. Resta saber como serão os gays no poder (risos). Sempre imaginei que em 2003 a humanidade estaria muito melhor, vivendo outro estágio de soluções. Além disso, existem ainda muitos preconceitos contra a mulher, inclusive no trabalho, com diferenças salariais. E apesar da existência da Delegacia da Mulher, muitas ainda apanham.

A senhora é poeta, dramaturga e ficcionista. A senhora concorda que na verdade faz poesia no teatro e poesia na ficção?
Todos os meus textos são muito poéticos sim. Acredito no que disse Novallis: quanto mais poético, mais verdadeiro.

Quais são os trechos preferidos de sua obra e por quê?
Os momentos em que meus personagens tentam compreender o divino e levantam perguntas que considero importantes. Eu não sou a Teresa Dávila, que gozava falando com Deus; gostaria de ser mas não posso, embora tenha tentado nos meus textos (risos).

Qual livro seu de poesia que mais a agrada? Por quê?
Todos aqueles que falam do amor são os meus preferidos.

Sem querer parecer tolo, mas a senhora é uma pessoa romântica?
Sou muito romântica sim. Ou, como dizia meu pai: "Minha filha é uma fantasista." Ele dizia isso há muitos anos, quando já era louco, imagine.

Cecília Meireles escreveu-lhe logo no início de sua carreira dizendo que a senhora deveria dizer mais coisas, a propósito de seu primeiro livro de poemas. O que a senhora quis dizer em seus poemas?
A Cecília Meireles, referindo-se aos meus versos "Somos iguais à morte/Ignorados e puros", escreveu: "Quem disse isso pode dizer muito mais". Tentei dizer tudo o que pude na poesia. Mas falo principalmente do amor.

Como lidar com a emoção revivida no momento de colocá-la dentro de um código (a escrita, o verso, por exemplo)?
Eu ficava muito emocionada enquanto escrevia. Em muitos dias, eu chegava a ter febre. O único jeito de lidar com essa emoção era continuar escrevendo.

A sua poesia transmite, digamos, uma espécie de solidão?
Uma reflexão. E ao refletir, você se isola. Ela também provoca emoção.

De que modo a filosofia permeia sua obra? A impressão que se tem é a de que seus versos, e mesmo a sua prosa, estão sempre sob um axioma filosófico, ou mesmo um sentimento filosófico. A filosofia está presente no meu trabalho, sem dúvida; ela está presente no trabalho de todo artista. Tive muita influência de Wittgenstein, que além de filósofo era matemático e uma pessoa brilhante.

O seu sucesso até hoje é mais de crítica do que de público. Como isso é encarado pela senhora? O não-sucesso popular a perturba? Ou lhe basta o sucesso de crítica?
Isso não é mais verdade e as vendas da Editora Globo provam isso. O Mora Fuentes tinha razão quando dizia que meu maior problema sempre foi não ter uma boa distribuição. Isso agora, com a Globo, foi corrigido. Mas sei que não vou ter a popularidade de quem escreve best-sellers. Hoje em dia, nada me perturba a esse respeito.

Seu livro O Caderno Rosa de Lori Lamby provocou muita controvérsia. A senhora disse, à época, que era um livro escrito para torná-la popular. Isso não ocorreu. A senhora gosta dessa obra?
Gosto muito da Lori Lamby e ela colaborou sim para me deixar mais conhecida. Graças à Lori, muita gente procurou meus outros textos. Só que aí, não os encontravam nas livrarias. Mas, de um jeito ou outro, depois da Lori muita gente começou a ouvir falar de mim. Yara Jamra adaptou essa obra e montou um lindo espetáculo, dirigido pela Bete Coelho.

A senhora ainda escreve? Tem o mesmo prazer de escrever quando começou ainda bastante jovem?
Quase não escrevo mais. Sinto que eu disse tudo o que tinha a dizer, e da melhor forma que fui capaz.

A senhora continua gravando as vozes dos mortos?
Não. Mas é uma experiência importantíssima que pretendo recomeçar.

A senhora reza? Acredita em Deus?
Rezo sim. Acredito em Deus e também tenho muito medo dele. Rezo para que ele não me perceba.

Aproveitando a época das eleições, qual é a sua percepção sobre o Brasil?
Muita pobreza e desatenção com o povo. A economia está uma loucura. A saúde também, a não ser que você seja da classe média para cima e tenha um bom e caríssimo plano de saúde. A falta de esgotos e saneamento básico chega a desanimar. A educação, os salários dos professores, o ridículo salário mínimo dos trabalhadores, tudo isso transforma o País num inferno para a maioria da população. Mas tenho muita esperança no Lula.

O que a senhora acha quando alguns críticos dizem que a melhor poesia brasileira se encontra nas letras da música brasileira de hoje?
Tenho lido pouca poesia atual. Os críticos dizem isso há anos, acho que eles gostam mais de música do que de poesia (risos). Adoro música, gosto muito da música brasileira. Mas não tem nada a ver poesia com a letra de uma canção, que é só metade de um produto.

Já existiu algum sentimento ou memória que a senhora não tenha conseguido exprimir com palavras exatas em seus textos, como se lhe faltassem palavras?
Eu consegui escrever tudo o que queria dizer. Por isso sei que fiz um bom trabalho.

Qual é a sua visão do ser humano? A senhora é otimista ou não em relação ao futuro da humanidade?
Sou otimista sim. Acredito que o ser humano aprende e evolui. É uma espécie muito conturbada, sem dúvida. Podemos encontrar santos, assassinos, cientistas, pessoas de extremado egoísmo, heróis. Mas acredito que aconteça uma evolução.