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Filho Único

A mostra Um Só Pecado, realizada pelo CineSesc, sacia a curiosidade dos cinéfilos exibindo as solitárias incursões cinematográficas de nomes como Jô Soares, Caetano Veloso e Antunes Filho

A idéia nasceu de um filme do diretor francês François Truffaut. Na verdade, do título do filme, Um Só Pecado. A imagem poética que o nome sugere perseguiu por meses a equipe do CineSesc, e um novo evento passou a tomar forma. "Eu sempre pensei em cineastas que tivessem feito um único filme", explica Luiz Alberto Zakir, gerente do CineSesc. "Além disso, sempre tive uma curiosidade muito grande sobre alguns desses filmes. Alguns deles foram pouco exibidos em suas épocas por não se enquadrarem numa temática ou numa escola."
Pesquisando informalmente o tema entre pessoas ligadas a cinema, a esquipe dp CineSesc descobriu que muita gente conhecida hoje pelo êxito e talento em outros campos das artes tinha se aventurado - no melhor sentido do termo - a expressar-se por detrás das câmeras. Desde músicos como Jorge Mautner e Caetano Veloso até os escritores João Silvério Trevisan e Roberto Freire, passando pelos diretores de teatro José Celso Martinez Corrêa e Antunes Filho e até teóricos das artes, como Jean Claude Bernardet. Todos, por diversos motivos, levaram histórias às telas uma vez na vida, e a curiosidade de saber quais foram esses motivos - e de conferir o resultado desses trabalhos - gerou o embrião. "É interessante ver por que essas pessoas de áreas culturais diversas tiveram interesse em fazer um filme", retoma Zakir. "Além disso, é importante entender também o cenário que cercou esses trabalhos." Muitos dos filmes exibidos na mostra foram rodados entre o final da década de 1960 e o começo da de 1970. Período de ditadura militar "braba", como lembram os artistas. Época em que a liberdade de expressão inexistia, o que aguçava ainda mais o espírito transgressor dos inquietos.
A empresa de pesquisas A Casa da História foi contratada justamente para saber desses cineastas incidentais o que os levou a "cometer seus pecados" e como foi isso numa época em que o deus de plantão era militar. Os pesquisadores conversaram com os diretores - e amigos e parentes dos cineastas já falecidos - e o resultado está num catálogo que acompanha a mostra.

Interferências
Os motivos são diversos e um capítulo à parte nessa mostra. As entrevistas realizadas - gentilmente cedidas pelo CineSesc à Revista E - revelam histórias que por si só já dariam um filme. O escritor Roberto Freire, que filmou o seu livro Cléo e Daniel em 1987, sempre foi apaixonado pelo cinema dos italianos Federico Fellini e Luchino Visconti, mas nunca cogitara a idéia de tornar-se colega de profissão de seus admirados. Até que... "aconteceu uma coisa fantástica", lembra-se. "Meu irmão era um advogado muito importante e conhecia um banqueiro que comentou com ele que tinha lido o meu livro Cléo e Daniel, achava que daria um belo filme e estava disposto a financiá-lo. Fui conversar com ele e ele me deu o dinheiro. Quer dizer, de repente eu recebi de mão beijada uma quantia para fazer um filme quando havia muitas pessoas que lutavam desesperadamente para conseguir recursos." Porém, o desenrolar da história não continuou assim tão fluido. "O dinheiro que eu tinha recebido para fazer o filme acabou na metade das filmagens", continua contando Freire. "Provavelmente por má administração, porque eu não entendo nada de produção. Aí eu tive de improvisar as coisas, cortar roteiro etc."
O conjunto de dificuldades levou o escritor a repudiar seu filme, recusando-se a vê-lo depois de pronto. "Eu detestava esse filme até cinco anos atrás. Mas depois eu o assisti num canal de TV a cabo e na medida em que ele foi sendo exibido eu comecei a ver coisas que achei bonitas nele. Algumas interpretações ótimas, a fotografia muito bonita." E assim Roberto acabou fazendo as pazes com sua produção.
Tendo o cinema bem mais próximo de sua original área de atuação, o fotógrafo Aloysio Raulino - grande nome da fotografia de cinema no Brasil - aproveitou uma oportunidade que coincidiu com um momento muito particular da sua vida. "Começou a aparecer a possibilidade de produção ligada à Embrafilme e ao governo do estado", conta Raulino. "Eles habilitavam projetos que se submetiam a uma espécie de concurso e que, se fossem aprovados, recebiam verba para as filmagens. Eu me interessei por isso e coincidentemente o tema do Paraguai começava a aparecer em várias circunstâncias. Para mim, foi um momento específico, a questão da América Latina, das ditaduras. Foi uma investigação livre, um devaneio sobre a questão Brasil/Paraguai." Porém, a censura classificou a investigação de Raulino como livre demais. Assim como Roberto Freire, o fotógrafo também ficou um bom tempo sem ver o único filme no qual assinou a direção, só que por razões alheias à sua vontade. Seu Noites Paraguaias seguiu para a censura e nunca mais voltou. Raulino foi vencido pelo cansaço. "O filme ficou - acho até o termo meio desagradável - cult", retoma. "Um cult movie, um filme que era comentado e controverso. Só que vendo hoje, percebe-se que ele é de uma ingenuidade que chega a ser até bobo. E o fato dele ter causado tanta preocupação é mais bobo ainda."

A letra na tela
O escritor João Silvério Trevisan desde muito cedo se relacionava com o cinema. "Eu estudei cinema no seminário", começa a contar. "Na época eu freqüentava o cineclube, cheguei a fundar um. Num dos seminários que eu estudei fiz um ciclo de Cinema Novo etc. Logo que saí do seminário fui trabalhar com cinema."
Trevisan diz que estava "brigado com a literatura" e por conta disso direcionou todas as suas energias para o cinema. Em meados do ano de 1970 ele arregaçou as mangas e começou a trabalhar em Orgia ou O Homem que Deu Cria. "Eu mesmo preparei o roteiro. Eu sonhava com uma coisa meio louca. Nós precisávamos nos comunicar com a população brasileira, mas não do jeito convencional, eu queria uma maneira que tivesse base no inconsciente coletivo do chamado povo brasileiro."
O escritor se lembra com muita satisfação da época de produção do filme, período que ele guarda na memória como extremamente gratificante. Mesmo não tendo dinheiro suficiente para rodar o filme, sua paixão pelo cinema e a ajuda dos amigos atores garantiram uma bela experiência. "Foi muito gostoso, apesar do sufoco de estarmos sem grana. Comíamos pão com mortadela. Os atores todos trabalharam de graça: Cláudio Mamberti, Pedro Paulo Rangel, Zezé Motta e até o Marco Nanini", conta. No entanto, a exemplo de muitos outros cineastas da época - não importando quantos filmes tenham realizado -, Trevisan teve problemas com a censura. Seu filme ficou dez anos preso, sendo exibido na época apenas nos EUA.
A história de Jean Claude Bernardet, destacado teórico das artes e professor da ECA, é menos conturbada, mas igualmente carrega o pathos que motivou os demais cineastas de primeira - e única - viagem. "Eu trabalhava no curso de cinema da ECA e a chefe do departamento comentou comigo que havia uma verba disponível para uma pesquisa", começa. "Eu propus São Paulo e Cinema, mas estava pensando num catálogo ou ensaio."
Durante o período em que analisava filmes sobre o tema para sua pesquisa, Bernardet ficou sabendo que a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) tinha aberto uma nova carteira de projetos. Daí surgiu a idéia da metalinguagem: usar o cinema para falar de cinema, e da cidade. Nascia o São Paulo: Sinfonia e Cacofonia, lançado em 1995. Bernardet lembra que ficou surpreso com a reação das pessoas ao seu filme. Projeções na própria ECA, no MIS (Museu da Imagem e do Som) de São Paulo e até fora do País deram um tom à coisa que ele não esperava. "Era um projeto universitário, eu não esperava que as pessoas reagissem com tanto vigor. O filme foi para a Austrália, França, Espanha, Itália e Alemanha, quer dizer, foi muito exibido."
Mais obscuro, mas igualmente alvo de grande curiosidade, O Demiurgo, filme dirigido pelo músico Jorge Mautner em 1972, é um longa-metragem colorido que mistura exílio com a figura do poeta Rimbaud e a revolução feminista. "O filme é superintelectual", adianta Mautner. "Os artistas são Caetano Veloso, Gilberto Gil e ainda tem José Roberto Aguilar (artista plástico), que faz o Sófocles e eu, interpretando Mefistófoles. É uma fábula-musical-chanchada-filosófica." Mautner conta que a obra centra-se muito na saudade do Brasil, na vontade que os exilados tinham de voltar à pátria. A idéia nasceu de conversas com o músico e seu velho pai, "falando sempre sobre os pré-socráticos", relembra. Mautner se define mais como escritor que qualquer outra coisa, o que, segundo ele, torna natural sua incursão no cinema. "Minha música é minha literatura cantada ou musicada e aquilo (o filme) foi uma extensão disso, assim como minhas artes plásticas."
O Demiurgo não nasceu para fazer carreira comercial. O próprio diretor afirma isso. Tanto que a única cópia existente é de sua posse e precisa de restauração, mas Mautner não pensa nessa hipótese. A versão apresentada na mostra do CineSesc será em vídeo, mas certamente isso não diminuirá o brilho da "viagem cinematográfica" do músico. E ele sabe disso. "Eu exibi O Demiurgo há uns quatro ou cinco anos no MIS e foi o maior sucesso", diverte-se. "A garotada ria, eles entenderam, tanto a minha música como minha literatura."
A mostra Um Só Pecado traz ainda filmes de Jô Soares, Antunes Filho e Henfil. Além do cultuado Limite (1930), obra de Mario Peixoto que, mesmo tendo dirigido apenas um filme, mudou a história do cinema brasileiro.


Zé Celso foi preso na estréia - Diretor comenta a primeira exibição nacional de seu filme
"O Rei da Vela foi praticamente o precursor de um martírio que durante alguns anos rondou o cinema brasileiro - gastar-se anos para produzir um filme. Ele levou cerca de dez anos para ser concluído [de 1971 a 1981]. Quando finalmente ficou pronto, foi proibido no Brasil - foi liberado só para o exterior. Então o apresentamos na Europa. No Brasil, houve uma tentativa de lançamento comercial. Na época, a única pessoa que me dava força era um pai-de-santo, o Pai Gilberto. Ele resolveu fazer um trabalho para O Rei da Vela. Íamos para a Embrafilme diariamente depositá-lo. E eles não queriam saber de distribuir o filme. Atormentamos até que finalmente eles liberaram um dinheiro pequenininho que permitiu que o estreássemos num cinema de Copacabana. Darcy Ribeiro, que na época era secretário de Cultura, interceptou as ruas para a exibição. Terminada a sessão, oferecemos uma comida preparada por Pai Gilberto e pelas filhas-de-santo para 500 pessoas. Foi aquela loucura, todo o mundo saiu comendo. Tinha um office-boy muito entusiasmado. O problema é que ele foi soltar um rojão que acabou explodindo em cima de um Volks estacionado na frente do cinema... Aí chegou a polícia. Fomos para a delegacia de Copacabana, presos, tentando dizer: "olha, não foi terrorismo, foi acidente". E nas páginas policiais do dia seguinte: 'O Rei da Vela estoura, todo mundo preso.'"