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A poesia interior

O centenário do poeta Carlos Drummond de Andrade foi lembrado com exposição, palestras e oficinas de texto no evento Drummond na Escala de 1:100. Já os amigos e admiradores escolhem seus poemas preferidos do autor - e justificam suas preferências

Como parte das comemorações do centenário de Carlos Drummond de Andrade, o Sesc Santo Amaro programou, no mês de novembro, uma semana com atividades variadas que giraram em torno da figura e da obra do poeta. Voltado a todos os que quisessem tomar contato com o infinito mundo de Drummond - e também àqueles que desejassem adentrar ainda mais nele -, o evento Drummond na Escala de 1:100 reuniu palestras, oficinas, leituras dramáticas e exposição na intenção de não apenas homenagear o poeta, mas também possibilitar um contato diferenciado do público com sua obra. "A equipe do Sesc Santo Amaro viu no centenário de Drummond uma boa oportunidade para a realização de atividades que pudessem aproximar o público da obra multifacetada do poeta", começa explicando Flávia Bolaffi, técnica da unidade. "Os cem anos de nascimento de Drummond são um marco histórico e os marcos históricos servem para relembrar, mas podem servir também como um primeiro contato com a obra, uma oportunidade de aproximação com Drummond e com a literatura em geral."
A unidade Santo Amaro já criou tradição na realização de atividades literárias e sediar essa comemoração no âmbito do Sesc convergiu com a forte ligação entre a unidade e o universo das letras. "O Sesc Santo Amaro procura desenvolver programas que trabalhem a literatura de diversas formas, sempre com o objetivo de facilitar o contato do público com a linguagem escrita", retoma Flávia. "Nesse sentido são desenvolvidos vários programas." Entre eles, a técnica destaca o Concurso Literário, que já se firmou como uma tradição nas escolas públicas e particulares da região e que, neste ano, recebeu também trabalhos de outros bairros.
Os destaques dessa programação especial ficaram por conta da palestra com o professor de Literatura Brasileira da USP, Alcides Villaça, e do bate-papo com o escritor Carlos Heitor Cony, atividade seguida por uma leitura dramática de alguns poemas de Drummond com o grupo de teatro As Graças.

Poema das Sete Faces

Quando eu nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus,
pergunta meu coração
Porém meus olhos
não perguntam nada

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco?

Mundo mundo vasto mundo,
Se eu me chamasse Raimundo
seria apenas rima, não seria solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

Um em um milhão
O nome do evento do Sesc Santo Amaro nasceu de uma "brincadeira poética" bem ao gosto de Drummond. "A escala sugere uma medida pequena representando uma medida maior", esclarece Flávia. "Assim o nome procura dar a idéia de 1 semana em comemoração aos 100 anos do poeta."
Mas Drummond é daqueles dos quais se diz sem titubear que foi mesmo 1 em 1 milhão. Que o diga os amigos e admiradores. "Drummond é um grande poeta e merece todas as homenagens que lhe estão sendo prestadas ao ensejo do centenário do seu nascimento", comenta o poeta concretista Augusto de Campos.
O jovem escritor Luiz Ruffato acrescenta dizendo acreditar que com Drummond acontecerá, ainda em tempo mais curto, o mesmo fenômeno que observamos, hoje, em relação a Machado de Assis: "O reconhecimento da crítica internacional de que se trata de um dos maiores autores da literatura mundial", antevê. "A sua poesia é uma profunda reflexão a respeito de seu tempo e do próprio fazer poético." O tempo, inclusive, ou a diluição dele no mar da eternidade e no mar que somos nós mesmos, assusta em Drummond. Ao menos é essa a mais recente lembrança que a escritora Márcia Denser tem do poeta cruzando o seu caminho: "A última vez que Carlos Drummond me assombrou foi logo após o 11 de setembro de 2001, quando houve a destruição das torres gêmeas de Nova York", conta. "Um amigo me mandou o poema chamado Elegia 1938, poema de revolta que termina dizendo "(...) Porque não podes, sozinho, dinamitar a Ilha de Manhattan."
Já a escritora e poeta Hilda Hilst e o escritor José Mora Fuentes conheceram Drummond pessoalmente. Hilda conta que foi apresentada a Drummond por Lygia Fagundes Telles. Amizade que começou num acaso e culminou num poema: "Fomos apresentados lá pelos anos de 1950", lembra-se. "Eu devia ter pouco mais de 20 anos. Depois de sermos apresentados, eu marquei uma visita na casa dele e fui. De volta a São Paulo falávamos muito pelo telefone. Um dia tive a surpresa de ler no jornal um poema que ele fez para mim." Mora Fuentes, por sua vez, conta que quando lançou seu primeiro livro, O Cordeiro da Casa, em 1975, enviou um exemplar ao poeta. "Eu tinha 24 anos e, na ousadia tresloucada da minha juventude, fiz uma dedicatória em versos. Ele me respondeu com a gentileza dos grandes, agradecendo-me pelo livro e pela poesia", narra entusiasmado.


O Drummond preferido
Aprecio em Carlos Drummond de Andrade a narrativa concisa de Teresa que amava Raimundo, mas os dois se extraviaram na história e nos versos, se perderam de nós, seus leitores, que já gostávamos deles ali ainda no comecinho do poema e que deram vez a Lili, depois de outros, que casou com J. Pinto Fernandes, que ainda não tinha entrado na história. Pontos e cruzes pra lá e pra cá, eis o tecido, o bordado, o que se conta poeticamente.
Há um misto de indolência e tristeza que de repente se encolhem e como que dão um bote, transformando-se em serpentes entusiasmadas e amorosas, impenetráveis a qualquer entendimento.
Às vezes a tristeza é tão grande que se eleva ao Céu, onde os anjos reprovam o próprio Todo-Poderoso quando Ele, filosoficamente, introduz a dúvida atroz sobre a Criação. E não sabe resolvê-la. Mas por que perguntou? É a pergunta que desconcerta os anjos. Para que perguntar, se é Deus?
A filosofia entranha-se nos versos de Drummond, mas ele sabe que, entre nós, quando abruptamente chega a hora do aprofundamento reflexivo, a fuga nos salva porque "as atitudes inefáveis, / os inexprimíveis delíquios, / êxtases, espasmos, beatitudes / não são possíveis no Brasil".
Dublê de escritor e professor universitário, faço e ensino prosa, mas não faço e nem ensino poesia. Sou um leitor, um gourmet e um gourmand, mas não cozinho e nem sei ensinar como são feitos os pratos que tanto aprecio. Como os vermes do velho bruxo Machado de Assis, sigo roendo os poemas de Drummond, sem a mínima pretensão de entendê-los. Será necessário entendê-los? Digo, assim, racionalmente? Que outros se jactem de compreendê-los, eu quero apenas senti-los, degustá-los, sem saber que exatos condimentos e essências estão sendo metabolizados na leitura.
Quem melhor interpretou Drummond até hoje foram poetas, dublês de escritores e docentes, como Affonso Romano de Sant'Anna e Gilberto Mendonça Telles. Aqueles que não sabem fazer versos, perdoem minha oficina irritada: deixem que outros cuidem de examinar Drummond, ocupem-se de outros poetas, há tantos, e não destripem essa magnífica borboleta que voa em nossas bibliotecas todos os dias, sendo mariposa à noite. Queremos apenas contemplá-la, admirá-la, apreciar seu vôo irresponsável e sem nenhum compromisso. Quando ela cansar de voar, nós a comeremos crua, sem os temperos de suas análises dispensáveis. Lygia Fagundes Telles certamente tinha acabado de ler Drummond quando exarou a frase lapidar: "somos inexplicáveis". Frei Betto, mineiro como Drummond, recolheu e poliu o dito que joga luz sobre o claro enigma dos mineiros, que escrevem tanto e tão bem, em prosa e verso: "em Minas, as pessoas não enlouquecem, apenas se manifestam". Quando alguém é internado num hospício mineiro, provavelmente em Barbacena, de onde Guimarães Rosa mandou um trem para conduzir Soroco, sua mãe, sua filha, as pessoas exclamam apenas: "você viu? Fulano se manifestou".
E eu, embora não seja mineiro, acabei de me manifestar sobre a poesia de Drummond, que deveria ter recebido o Prêmio Nobel se aqueles juízes literários fossem mais atentos aos dialetos da Galáxia Gutenberg, aqui tão longe dos tristes latins dos impérios americanos e europeus.
Deonísio da Silva


(...) Então Hilda, que é sab(ilda)
Manda sua arma secreta:
um beijo em morse ao poeta.

Mas não me tapeias, Hilda.
Esclareçamos o assunto.
Nada de beijo postal
No Distrito Federal
o beijo é na boca e junto.

Trecho do poema que Drummond fez para Hilda Hilst


No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.


Elegia 1938

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
Onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
Sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
E preconizam a virtude, a renúncia, o sangue frio, a concepção,
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
Ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
E sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
E te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas
Sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
E adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
Porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

"Difícil essa, escolher o melhor poemas de Drummond. Escolhi um de que gosto muito. Um bem pequeno. É de Alguma Poesia e chama-se Poesia. Creio que esse poema ilustra de modo exemplar a poética de Drummond. A poesia como algo que antecede as palavras. Como algo que está no mundo, e não nos livros. Algo que às vezes se escreve, outras não se escreve - e não é isso, a escrita, que o define. Algo que, antes de o poeta fazer, o inunda. Algo de que poeta é mais vítima do que autor."
José Castello



Poesia

Gastei uma hora pensando num verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair,
mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.


Drummond dramaturgo
A crítica se aproxima da poesia de Drummond como se estivesse num bazar, onde os temas de sua obra parecem produtos na prateleira: "família", "pai", "província", "destruição", "ironia", "repetição", "cromatismo", "a máquina do mundo", "infância", "memória", "cotidiano", "história" etc. Conquanto seja legítimo tratar essa obra no varejo, esta não é a melhor maneira de compreender sua dimensão. Drummond é um poeta que desenvolveu aquilo que Heidegger chamava de "projeto poético pensante". Sua obra tem uma estruturação, e isto é o que diferencia o pequeno e o grande autor.
Também as divisões geralmente estipuladas como fases de sua poesia - a "irônica", a "social" e a "metafísica" - são etapas artificiais, engendradas pelo vezo didático. Dividido assim, Drummond seria apenas um autor fragmentário, e nessa poética não há saltos e fraturas, pois como dizia Hoelderlin: "Odeia / o deus sensato / crescimento intempestivo."
Por isso, no livro Drummond, o Gauche no Tempo (Record), eu já dizia que essa obra se estrutura como uma grande peça de teatro, em que um personagem gauche, com características do displaced person e do excêntrico, descreve uma trajetória que revela a tensão entre dois pólos: Eu versus Mundo, dividida em três atos a que chamo:
Eu Maior que o Mundo
Eu Menor que o Mundo
Eu Igual ao Mundo
A obra de Drummond está cheia de metáforas teatrais. E é possível desvelar aí as máscaras de uma personae: o gauche e suas muitas faces ("Josè", "Carlito", "Robson Crusoé" etc.). Esses são egos auxiliares que se multiplicam também em mais de 60 pseudônimos em sua obra.
Com efeito, no primeiro ato, Eu Maior que o Mundo ("Mundo mundo vasto mundo / mais vasto é o meu coração"), o personagem está postado num "canto", "escuro", "imóvel" e "torto", contemplando a cena à distância e assumindo uma posição predominantemente irônica e egocêntrica. A primeira estrofe do primeiro poema do primeiro livro lança a pedra fundamental de seu teatro poético ao dar essas três informações básicas:
"Quando eu nasci, um anjo torto
Desses que vivem na sombra
Disse: vai, Carlos, ser gauche na vida."
O segundo ato corresponde ao Eu Menor que o Mundo ("Não, meu coração não é maior que o Mundo / é muito menor"). Aqui o personagem já se deslocou do canto-província e, à medida que a enorme realidade pesa sobre seus ombros, vai se sentindo diminuto e quebrantado. Descobre o tempo-espaço, se locomove das montanhas fechadas de seu Ser para o mar do tempo. Expõe-se ao desgaste, debate-se entre o claro e o escuro das horas, descobre as mil e uma dobras da aparente tricotomia: passado-presente-futuro. Inicia, então, uma "viagem" (e esse termo vai se repetindo) pelo "secreto latifúndio" da memória, depois de se ter apercebido como um "Ser para a morte".
Finalmente, num terceiro ato, atinge o equilíbrio. Equilíbrio relativo, já se vê: Eu Igual ao Mundo ("O mundo é grande e pequeno"). A essa altura, sua poesia converteu-se numa sistematização da memória, numa maneira de se reunir através do tempo. O sujeito (gauche), que vinha interagindo com o objeto (mundo), encontra o equilíbrio (relativo). A ironia inicial que se entretinha no simples humorístico desenvolve sua dialética latente e transmuda-se num exercício metafísico com um tom barroco de desconsolo. O poeta já realizou parte de sua travessia sobre o mar do tempo. Experimentou a morte alheia e sua morte parcial e crescente, e aprendeu a recriar sua vida no plano poético da memória. Eu e o mundo interpenetram-se dialeticamente. Dá-se a epifania máxima de sua vida-obra e a Máquina do Mundo, poema que a crítica tem lido equivocadamente ao ignorar que O Relógio do Rosário é o texto complementar dessa epifania.
Affonso Romano de Sant'Anna