Cristianne Lameirinha
Em conferência inédita, citada por Olga Borelli, Clarice Lispector diz: "Literatura é o modo como os outros chamam o que nós fazemos e vivemos." Mulher comum, dona de casa, dois filhos, um casamento, uma separação e a escrita encarada como destino de uma vida inteira. Escrita em que a palavra não se reduz à expressão, mas contempla a idéia de linguagem total, que não poupa do encantamento e da aversão o leitor que a ela se remete. Diante de Clarice Lispector, não há meio termo. Para lê-la é preciso uma coragem quase física, que suporte o incômodo, o peso, a vulnerabilidade, a fragmentação e a desordem de um mundo em que nada nem ninguém é poupado. Que se enfrente, assim, a barata, a gosma, a geléia, o medo, a escuridão, a morte, a vida. Uma mulher estranha Clarice Lispector. Inapreensível? Certamente lúcida, atenta a detalhes desimportantes, a banalidades cotidianas, a contradições e alienações "normais", todas aparentemente aceitáveis até o instante desagregador. Daí, o rigor da palavra na tentativa, esta sim inapreensível, de captar o real. A palavra repetida inúmeras vezes com incontáveis sentidos para dizer as coisas com precisão, ainda que jamais se atinja por completo a imagem definida, o contorno claro. À necessidade imperiosa da palavra opõe-se a tentação do silêncio, dilema que acompanharia a autora até o fim. Dar nomes ou deparar-se com o indizível. Nesse sentido, a revolução instaurada por Clarice Lispector na literatura brasileira em 1943, quando da publicação de seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem, está em colocar o tema em segundo plano e a linguagem em primeiro (Antonio Candido), salientando a perspectiva da precariedade do homem diante do entendimento do mundo, uma vez que a linguagem manifesta-se no caos, na marginalidade, na quebra de estruturas, no rompimento, mas igualmente na aprendizagem de coisas de difícil digestão como o mal, o ódio, a perversidade. O universo de Clarice Lispector é o do homem cindido com o mundo exterior, mas também consigo mesmo. É a fragmentação do homem moderno, seu não encaixe, sua não inserção, a disputa recíproca entre ele, o mundo e o tempo diluído, que se perdeu em coisas, formas e sentidos impregnados de vazio e incomunicabilidade. A esperança, aí, é a grande tirana. A escrita de Clarice, que insiste em olhar as coisas com agudeza, liberta de valores, aponta a vida como possibilidade primeira de percepção, a vida em todas os aspectos, do epifânico ao abjeto. Percorrer essa literatura que rompeu com o tempo linear e o acontecimento descritível é entrar em contato com o instante mágico e temeroso, experimentando-o em toda sua profusão, fato que a esperança estaria apta apenas a adiar, uma vez que ela alija o homem do presente, do momento vivido. Ao abrir A Paixão Segundo G.H., a autora afirma, "(...) estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender." Em A Legião Estrangeira, escreve: "Se eu tivesse que dar um título à minha vida seria: à procura da própria coisa." Essa busca incessante remete ao próprio ato da escrita. Nas palavras de Clarice Lispector: "O processo de escrever é feito de erros - a maioria essenciais - de coragem e preguiça, desespero e esperança, de vegetativa atenção, de sentimento constante (não pensamento) que não conduz a nada, não conduz a nada e de repente aquilo que se pensou que era 'nada' era o próprio assustador contato com a tessitura de viver - e esse instante de reconhecimento, esse mergulhar anônimo na tessitura anônima, esse instante de reconhecimento (igual a uma revelação) precisa ser recebido com a maior inocência, com a inocência de que se é feito. O processo de escrever é difícil? Mas é como chamar de difícil o modo extremamente caprichoso e natural como uma flor é feita".
Cristianne Lameirinha é historiadora e técnica da Gerência de Estudos e Desenvolvimento do Sesc São Paulo
|