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Dívida histórica

A questão das cotas para negros nas universidades é avaliada por professores, jornalistas e representantes da causa

A controvérsia está estabelecida. A garantia de ingresso para alunos negros, ou afro-descendentes, nas universidades públicas do País por meio de cotas divide opiniões. Por um lado, há os que defendem que tal medida seria o instrumento para a formação uma elite negra no Brasil; por outro, análises igualmente sérias e embasadas afirmam que as cotas "ajudam a mudar a cor da universidade, mas não a classe", conforme declarou o ministro da Educação Cristovam Buarque, em matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo, no dia 18 de fevereiro de 2003. Surgem as perguntas: tratar-se-ia a questão de um ajuste de contas racial ou social? Até que ponto se determina a raça em um país miscigenado como o Brasil? Em artigos exclusivos para a Revista E, o tema é debatido por especialistas.

Renato Janine Ribeiro
é professor titular do Departamento de Filosofia da USP

A idéia de uma ação afirmativa contra as discriminações sociais parte de uma convicção. É a convicção de que a história é injusta - e por isso, sem medidas enérgicas, os negros, mulheres, índios e pobres em geral continuarão prejudicados, em comparação com as categorias que em 500 anos de Brasil foram privilegiadas. O mero jogo do mercado, ou das relações sociais como hoje existem, não basta para mudá-las, para torná-las justas.
A criação de cotas para uma destas categorias, porém, não é a única nem a melhor solução do problema. E isso por várias razões. A primeira é que, das quatro categorias citadas, só podemos identificar uma sem risco de erro: as mulheres. O debate, porém, se tem centrado no caso dos negros. Ora, ser negro no Brasil e nos Estados Unidos é bem diferente. Lá, é negro quem tem uma gota de sangue africano. Por isso, brasileiros que se acham brancos são vistos como negros nos Estados Unidos. Não exagero se disser que a idéia norte-americana de negritude é uma idéia de impureza: uma gota é suficiente para enegrecer. É uma concepção racista. Já nossa divisão da população em cores aceita a mistura. A idéia deles é naturalizante, a nossa é cultural. A própria cultura, aliás, é sempre uma mistura! Daí que a mestiçagem possa ser valorizada, em nossa sociedade. Na prática, isso torna difícil saber quem é negro (ou índio) e merece a proteção das cotas, e quem não o é.
Mas essa não é a única nem a principal razão contra as cotas. Continuemos. As cotas devem ser um diferencial que não chegue a comprometer a qualidade da formação acadêmica ou do exercício do cargo público. Quer dizer que não devem significar a reserva de um porcentual fixo de vagas (como erradamente fez a UERJ, levando alunos com nota muito baixa a entrar em Medicina - o que gerará maus médicos, os quais acabarão atendendo a população mais carente, prejudicando-a em vez de ajudá-la), mas um critério segundo o qual, em caso de empate técnico, o discriminado ganha. Traduzindo em números: para o pobre, ter nota 100 é tão meritório quanto, para o rico, ter 120. Por isso, pode ser dele a vaga. O rico (ou o homem) teria que mostrar um desempenho superior ao do pobre, porque teve mais vantagens. Assim, a cota é justa. Mas note-se: ela ajuda quem já está perto de passar para o outro lado. Não ajuda quem está lá em baixo. Ela concorre para formar uma classe média negra, por exemplo - o que é bom - mas não ajuda os mais prejudicados entre os descendentes de africanos.
O que fazer, então? Não tenho uma resposta pronta, mas penso que o problema é de massa e a solução deve ser de massa. As cotas podem beneficiar as lideranças, mas por isso mesmo podem deixar de lado a massa (dos negros, dos índios, das mulheres - e, sobretudo, dos pobres). E assim podem chegar ao resultado perverso de privar a massa de suas lideranças. Não sou contra as cotas, desde que sempre tenham uma nota mínima não inferior a 80 ou 90 por cento da nota mínima geral, mas elas nunca passarão de um paliativo.
Com isso, aliás, se pode enfrentar o real problema, que é social e não étnico. As cotas não ajudarão os pobres ou miseráveis que forem brancos, e isso é injusto.
Finalmente: nos Estados Unidos a miséria social é bem menor que no Brasil. Entende-se que, lá, as minorias constituam um problema. Aqui, repito uma frase de Fernando Moraes, candidato a deputado em 1978: tem que falar a maioria silenciada. Nosso problema não é de minorias prejudicadas, mas de uma maioria oprimida. A cota está marcada pela idéia de minoria. Nosso

Reinaldo Azevedo
é jornalista e diretor de redação do site e da revista Primeira Leitura

A questão das cotas para negros evidencia como o inferno das boas intenções é um lugar influente. A questão vai além de um aparente jogo de palavras.
Todos somos favoráveis à melhoria da condição de vida dos menos favorecidos, certo? É fato evidente que os negros enfrentam ainda dificuldades oriundas da escravidão. Ocorre que o mesmo movimento que, felizmente, eliminou atrocidades como a discriminação de raças e outras servidões estabeleceu que todos os homens são iguais perante a lei, o que é ignorado pelas regras dos vestibulares que garantem as tais cotas.
A questão, antes de ser prática, é de princípio. Não há implementação prática de uma extravagância teórica que possa resultar em boa coisa. Não se pode imaginar que se vai pôr em curso um movimento de reparação de injustiças passadas cometendo injustiças presentes. É razoável que um candidato branco que tenha obtido média 8 numa prova de acesso qualquer seja preterido em favor de um negro que tenha obtido média 5? Faz sentido agregar direitos suplementares a minorias retirando-se direitos de antigas maiorias, desfazendo, em nome da igualdade futura, a igualdade presente? É uma rematada tolice.
Se o País deve assistir suas minorias (e deve), que recursos novos, carimbados - isto é, com destinação legal e orçamentária definida na sua origem -, sejam agregados às universidades públicas para receber os alunos das cotas, sejam negros ou pobres. Assim, não se estaria a subtrair vagas do universo total dos alunos para reservar aos cotistas, mas a criar vagas suplementares destinadas à reparação social. É claro que isso tem custo, mas a demagogia rasa também.
O influente e o verdadeiro.
Os meus 41 anos me ensinaram a ser tolerante com certas tolices influentes. Reparem que ofereço uma alternativa ao atual modelo de cotas, sem nem mesmo entrar no mérito da questão. Para que lutar contra os fantasmas do politicamente correto, que terão de viver seus dias de glória antes do fracasso? No espaço que me resta, expresso o meu veemente repúdio a essa bobajada de reparações.
Minha discordância é de fundo: afinal, onde foi que a história errou? Qual é o tribunal adequado para sentenciar que um determinado evento afrontou uma verdade eterna? A moral que permitiu a escravidão, aqui e na África - dado sempre omitido no proselitismo reparador -, é a mesma que dá espírito à cultura e à Constituição brasileiras ainda hoje? A resposta, evidentemente, é "Não!".
Pode doer à consciência dos negros, mas a verdade não há de lhes fazer mal nenhum: a cultura da lei, da igualdade e da piedade vem do Ocidente branco e cristão - que também deixou muitas mazelas como herança, claro! A atual África subsaariana, emblema da desigualdade e da violência racial, fala por si mesma. Por mais que eu seja tentado a mandar Francisco Pizarro para o banco dos réus, não consigo ver os sacerdotes pré-colombianos que sacrificavam crianças e virgens como meus heróis particulares da resistência...
De resto, já se viu, na prática, que inexistem critérios objetivos até mesmo para definir quem é e quem não é negro no Brasil. Avaliações sobre pureza racial importadas da militância negra norte-americana são rejeitadas pelos próprios supostos beneficiários das cotas. Afinal, um mulato é negro-descendente ou branco-descendente? Quer a militância negra que ele se faz negro-descendente por conta de sua condição social, de sua pobreza. É? Ótimo! Então vamos debater o que realmente interessa ao País: o que fazer de nossos pobres.

José Carlos Souza Trindade
é reitor da Universidade Estadual Paulista (Unesp)

Os argumentos a favor da utilização das cotas para afro-descendentes na universidade pública são sobejamente conhecidos e compreendidos, pois visam o ressarcimento de injustiças históricas.
A questão pretenderia favorecer excluídos - seja pela renda, seja pela etnia.
Com ela, corre-se o risco de desestabilizar o sistema educacional, ao se aviltar o princípio do mérito que norteia tanto a vida universitária quanto o processo de aprendizado. O problema está muito mais na exclusão social, um dos maiores desafios para a sociedade moderna - para o qual a universidade deve e pode contribuir -, do que propriamente para a etnia.
Pela Constituição Federal, é dever do Estado fornecer o ensino fundamental. Cabe ao ensino superior qualificar melhor os cidadãos egressos do ensino médio, mas, devido à enorme demanda frente a um número de vagas que, por mais que cresça, ainda é insuficiente, torna-se necessária uma seleção: o vestibular. Qualquer política pública de cotas teria que operar com esse número de vagas definido, e, como resultado, a sua adoção iria diminuir o total oferecido ao universo dos estudantes que concorrem apenas pela via do conhecimento.
A consistente política de expansão de vagas que estamos fazendo na Unesp, levando cursos públicos para mais oito municípios até agora desprovidos de graduação pública e gratuita, reflete nossa preocupação com a exclusão social. Também nosso apoio aos estudantes carentes contribui para o aprimoramento e a permanência desses alunos na graduação da Unesp, possibilitando-lhes melhor desempenho acadêmico e melhor qualificação profissional. Em 2003, beneficiamos quase 2.500 alunos com bolsas no valor de até R$ 175,00, entre auxílio-estágio, extensão universitária e outros. Alunos provenientes de outras cidades podem contar com moradia estudantil gratuita - foram 1.268 alunos beneficiados em 2002.
Nosso vestibular, realizado pela Fundação para o Vestibular da Unesp (Vunesp), é considerado consensualmente como o mais próximo dos conteúdos oferecidos pelas escolas públicas de ensino médio; procuramos incentivar o acesso dos estudantes dessas escolas, onde estudam muitos dos vestibulandos negros e pardos. Temos um programa de isenção de taxa de inscrição para alunos de escolas públicas (11.850 inscrições gratuitas em 2002), em parceria com a Secretaria de Estado da Educação, destinado aos que buscam cursos de licenciatura. Também naquele ano foram oferecidas 1.525 isenções aos cursinhos comunitários pré-vestibulares, que funcionam em diversos dos nossos campi, e mais 4 mil isenções para cursinhos alternativos e comunitários, entre eles o da ONG Educafro.
A Unesp também atua decisivamente na melhoria do ensino ao contribuir para a formação universitária de professores de 1ª a 4ª séries, da rede pública, que tinham apenas nível médio: formamos 3.133 deles no ano passado e estamos formando outros 4 mil professores, em parceria com cerca de 90 prefeituras. Em 63 cursos de licenciatura, muitos deles noturnos, em 24 cidades e em todas as áreas do conhecimento, formamos professores para o ensino médio e graduação.
A reserva de vagas certamente não é o melhor caminho para promover maior inserção social; precisamos manter a lucidez na busca serena do que é mais consistente e conseqüente.


Helio Santos
é professor da Universidade São Marcos (SP) e da Fundação Visconde de Cairu (BA), e autor do livro A busca de um caminho para o Brasil (Editora Senac)

No Brasil, apenas um número reduzido de pessoas chega até o curso superior. As dificuldades para se chegar ao 3º grau são de vários tipos: (a) qualificação insuficiente; (b) elevado preço das mensalidades; (c) desmotivação etc. Em cada grupo de 100 estudantes do curso médio, 84 estão na escola pública e os outros 16 na particular. Para os negros, as dificuldades de acesso à universidade pública se agigantam. Nos referimos a alguns impedimentos agudos, os quais estão relacionados com a realidade econômica, psicológica e motivacional.
É importante não esquecer que a universidade pública é mantida por todos - lembrando que no Brasil os mais pobres, proporcionalmente, pagam mais impostos. É um escândalo os pobres pagarem os estudos dos ricos. Assim, o mais correto seria reconhecer que nossa universidade não é pública - no sentido lato da expressão -, mas apenas estatal. Haverá sempre quem recorra a este argumento para justificar a ausência dos brasileiros pobres - onde os negros são a esmagadora maioria - no ensino superior público: "o que impede o acesso dos estudantes mais pobres é a baixa qualidade da escola pública". A maioria dos leitores deve concordar com esse potente argumento - isto à primeira vista. Todavia, no Brasil, se observarmos atentamente essa argumentação, constataremos que ela não condiz com a realidade. É inegável a degradação da escola pública reservada à população mais pobre. Contudo, não se deve perder de vista que as escolas secundárias privadas vêm se sofisticando cada dia mais. Este fato torna a disputa do exame vestibular entre os alunos da rede pública e privada um simulacro vergonhoso e insuportavelmente desigual. Portanto, a verdade inteira é que, além da má qualidade do ensino público, há o agravante causado pela excepcional performance da escola privada.
As políticas de Ação Afirmativa - o verdadeiro nome das cotas - até agora não mereceu um debate à altura de sua importância. O bom senso sugere que os 350 anos de escravismo, além de acarretar um acúmulo histórico pesado contra os negros, acabou banalizando a sua exclusão. Negros (pretos e pardos) em profusão sendo matriculados em universidades públicas não condiz com a nossa cultura de desenvolvimento. O que todos - inclusive os negros - precisam saber é que há uma dívida histórica que precisa começar a ser paga. O Brasil é o que é, porque foi o país que maior número de negros escravizados importou da África. Foi ainda o último a abolir a barbárie da escravidão. Poucos se dão conta de que o barbarismo social brasileiro se deve aos efeitos desencadeados após o dia 14 de maio de 1888 - o seguinte à Abolição, a qual não foi capaz de transformar os descendentes dos escravizados em cidadãos plenos. A mídia ao simular um debate - que de fato nunca houve - onde as "cotas" são desmoralizadas, defende interesses inconfessos. O vestibular sendo quebrado pela inclusão dos alunos oriundos da rede pública, reduz a receita da verdadeira máquina de fazer dinheiro que são os cursinhos.
O álibe da miscigenação - que é uma realidade inconteste no país - nada muda. Pretos e pardos (mulatos, negro-mestiços etc) estão no mesmo barco e recebem o mesmo tratamento da sociedade. Finalizando, é importante reconhecer que as "cotas" nas universidades não resolvem as dificuldades do povo negro no Brasil. Muito mais há que ser feito ainda. O debate apenas começou.

Érika Mourão Trindade Dutra
é formada em Educação Física e técnica do Sesc

Em tudo o que tenho lido, ouvido e analisado sobre a política de cotas para negros nas universidades, observo especialistas, cientistas sociais, professores e a comunidade negra defendendo categoricamente seus posicionamentos, sejam estes contrários ou favoráveis à questão.
Porém, independente do que se defende, dois aspectos são consensuais: o preconceito racial e o alto nível de desigualdade social existentes em nosso País. Acredito que a preocupação em dar aos negros o direito equânime de participação no contexto socioeconômico, político e cultural brasileiro passa sim pelo direito à educação universitária. Contudo, este direito é de todas as pessoas desfavorecidas socialmente.
Eu, particularmente, não acredito que a implantação desta política favoreça a raça negra, na qual me incluo. Acredito sim, numa política mais abrangente de combate indiscriminado aos desajustes sociais, sem distinção de etnia, sexo ou idade.
Pesquisando o nível de escolaridade do negro brasileiro, que compõe 47% de nossa população, é fácil constatar a ínfima quantidade de afro-descendentes que tem acesso à universidade. Isso se deve essencialmente à péssima qualidade do ensino público fundamental e médio e ao elevado índice de pobreza da população negra.
Além da urgente necessidade de reverter o quadro de miséria e má distribuição de renda, é urgente a definição e implantação de políticas públicas que garantam o acesso de todos a um ensino de qualidade.
Enfim, trata-se de resolver o problema em sua raiz e não de tentar corrigi-lo tão tardiamente.
A destinação de cotas aos negros, em detrimento de candidatos com melhor preparo, pode ocasionar rendimento inferior àqueles e até mesmo evasões, pela defasagem percebida no histórico escolar que não os habilitou à faculdade. Imagino que estes estudantes passariam a ser ainda mais discriminados, não apenas por "tirarem vagas de outros alunos" mas por serem considerados menos capazes, favorecidos por lei e não merecedores de um espaço conquistado por demonstrarem competência.
O legado histórico dos negros, manchado por séculos de escravidão, deixou marcas profundas que se refletem em sua condição socioeconômica atual: salários menores, maior número de analfabetos e desempregados, subempregos. Mas, acima de tudo, o negro preservou sua dignidade, seu poder de luta e seu patrimônio cultural, que extrapola a expressiva participação nas manifestações esportivas e musicais.
É preciso lutar pela adoção imediata de políticas que alterem, em curto prazo, o quadro da desigualdade social, pois não é possível deixar que muitas outras gerações paguem o preço desta realidade.
Acabar com a fome é premente, essencial para garantir condições mínimas de nutrição e saúde. O acesso igualitário à educação também. Com estas duas garantias básicas, poderemos zelar pela saúde, higiene, meio ambiente, trabalho e demais necessidades, direitos e interesses de cidadão.
Concluo com um pensamento do ilustre geógrafo brasileiro Milton Santos: "O modelo cívico brasileiro é herdado da escravidão, tanto o modelo cívico cultural, como o modelo cívico político. A escravidão marcou o território, marcou os espíritos e marca ainda hoje as relações sociais deste país."