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Clarice Lispector
O indizível segundo Clarice

Evento no Consolação e espetáculo de teatro no Belenzinho abordam a obra daquela que é considerada uma das mais intensas e perturbadoras escritoras brasileiras, Clarice Lispector

O destino parecia reservar a Clarice Lispector uma vida que, de longe, poderia se parecer com a de qualquer outra mulher de sua época. Casou-se, teve filhos, seguia o marido em suas mudanças de país devido à profissão de diplomata. É certo que poucas mulheres chegavam à faculdade naqueles dias. Ainda mais no curso de Direito, habitat prioritariamente formado por cavalheiros. E ela chegou. Separar-se do marido também era coisa rara. E ela o fez. Porém, novamente, de longe, nada tão incomum. Entretanto, é de Clarice Lispector que estamos falando. E é de perto que se percebe que ela não seria apenas uma mulher de sua época. De perto do coração selvagem dessa mulher que, quando colocava sua máquina de escrever sobre o colo e acendia um cigarro, escavava, romance a romance, sua entrada particular no hall das figuras que fizeram a diferença. Sua literatura tomou de assalto público e crítica e fez surgir um dos mais enigmáticos personagens do nosso País. "Clarice vivia a ficção em toda a sua plenitude", comenta a escritora Ana Miranda, autora do romance Clarice, no qual a transforma em protagonista. "Um dos seus aspectos mais interessantes é que ela era o seu personagem, ela mesma era a narradora. Quando a leio tenho a sensação de que estou ouvindo sua voz. A vida de Clarice e sua obra são quase o mesmo mundo. Ela era sempre Clarice."
Ana conta que leu pela primeira vez ainda muito jovem e não alcançou completamente seu significado. No entanto, o veneno já havia entrado no organismo. Mais tarde, "mais madura e preparada para um texto complexo" - como diz - Ana voltou a seus livros, com "encanto e paixão". "Só a encontrei de verdade quando li toda a sua obra na ordem em que foi escrita", continua. "Essa é uma maneira muito promissora de conhecer um escritor, os livros vão formando uma espécie de diário, de criptobiografia." Ana Miranda é uma das convidadas do Sesc Consolação no projeto Sentidos de Clarice ou Clarice e seus Sentidos, um evento de literatura e teatro que, de 28 a 30 de abril, terá o universo e a obra da autora como tema central de analise e exposição. "Farei a leitura de alguns trechos do livro que escrevi sobre Clarice, quer dizer, o meu livro no qual ela é a personagem central", adianta Ana. Após a leitura dos trechos, Ana conversará com a platéia e responderá perguntas. "Vou tentar dar a cada uma das pessoas presentes a 'pedra preciosa' de que fala Virginia Woolf numa de suas palestras. Discorrer sobre Clarice é uma viagem a um mundo misterioso e inesperado." Sentidos de Clarice contará ainda com o work in progress Mulheres de Clarice, a exibição do curta-metragem Clandestina Felicidade, de Marcelo Gomes e Beto Normal; a leitura dramática A Vida Íntima de Laura, uma de suas obras infantis; e a performance e oficina Raiz Quadrada Menos Um, nos quais a atriz Mariana Lima e o diretor Enrique Diaz falarão sobre o método e a pesquisa que resultaram no espetáculo A Paixão Segundo G.H., montagem da adaptação do romance homônimo escrito por Clarice feito pelo ator, diretor e dramaturgo Fauzi Arap. O espetáculo completo entra em cartaz no dia 5 de abril no teatro do Sesc Belenzinho.

Mergulho em Clarice
Fauzi Arap, pode-se dizer, integra o time de apaixonados/hipnotizados por Clarice Lispector. Em 1965, adaptou o romance Perto do Coração Selvagem. Quase quarenta anos depois, o texto levou a jovem atriz Mariana Lima a procurá-lo, interessada em remontar o espetáculo. No entanto, a relação entre o dramaturgo e a escritora tinha rendido mais frutos. Fauzi tinha "esquecida na gaveta" uma nova adaptação: Paixão Segundo G.H. "A Mariana não sabia disso", lembra-se. "Partiu de mim a sugestão para que ela enfrentasse, solitária, o desafio."
Por mais que a obra de Clarice seja permeada de uma poesia vertiginosa e subjetiva, que se desdobra em tantos quantos sejam seus espectadores/leitores, Fauzi explica que são nesses conflitos que reside o cênico em Clarice. "Percebi intuitivamente sua teatralidade já em minha primeira leitura, por volta de 1964", prossegue. "Na época, não conseguia entender o espanto dos que consideravam difícil a tarefa. O que me apaixonou e me apaixona em G.H. é a natureza alquímica do texto."
"Fauzi fez uma leitura em voz alta com a compreensão toda que ele tem desse universo e com as vivências", começa a contar Mariana Lima. "Deu muita vontade de tocar naquilo, de falar de paixão, de mergulhar. Ficamos primeiro lendo o texto, várias vezes, com os outros criadores do trabalho: Marcos Pedroso, Marcelo Olinto e o assistente Fábio Cordeiro. Discutíamos, falávamos do indizível, trocávamos experiências, referências, filmes, peças e afins." Segundo Enrique Diaz, diretor do espetáculo, o caráter intenso das obras de Clarice, e que se repete fortemente em G.H., não serviu de barreira para a montagem do espetáculo. Ao contrário: "Acredito que isso guiou o trabalho no sentido de que queríamos uma vivência intensa, mas não um possível hermetismo que muitas pessoas detectam na obra de Clarice", explica. "Nosso trabalho foi passar pelo processo de imersão na obra e buscar os caminhos e os recursos, não para traduzi-la, mas para compartilhá-la com o público."


Sete razões para ler Clarice - Por Nádia Battela Gotlib

1. Sua literatura é instigante.
Aliás, a própria Clarice afirmava que escrevia para saber o que estava, na verdade, querendo dizer. E isso ela passa para o seu leitor. Através dessas tentativas ou desses ensaios de escrever, o leitor deixa-se levar por uma espécie de exercício de experimentação da linguagem que o joga, sem garantia, no inusitado. Daí uma segunda razão.

2. Sua literatura é perigosa.
Isto é, o leitor a certa altura se surpreende em estado de risco, ou, se quiserem, de crise, já atado incondicionalmente a uma outra realidade, que é, ao mesmo tempo, sedutoramente encantadora e terrivelmente repulsiva. Daí uma terceira razão.

3. Sua literatura é ameaçadora.
A qualquer momento, sem aviso, pode-se estar diante da truculência dessa coisa, que paradoxalmente une, num só momento, o mais abjeto e o mais sublime. Assim se manifesta a condição humana - soma de virtudes e defeitos. Daí uma quarta razão.

4. Sua literatura é desconfortável.
Pois como lidar com o lado abjeto sem nojo e repulsa? Essa marca, de feição existencialista já tão discutida pela crítica, implica na corajosa vontade de explorar a própria intimidade, mas exaustivamente, até o seu núcleo ou seu âmago. Daí uma quinta razão.

5. Sua literatura é desmitificadora.
Ao mirar de frente o objeto, desvestindo-o dos invólucros de sentido impostos pela cultura, derrubam-se valores, princípios, normas, regras, costumes cristalizados. Daí uma sexta razão.

6. Sua literatura é transgressora.

Não é gratuito haver tantos crimes nessa literatura que inclui também, entre outros gêneros, o policial. Desmontando o instituído é que se vive a própria selvageria. Se a realidade não deixa, o imaginário ficcional salva. E o leitor encontra reforço às suas próprias perversões. Não se passa imune a tais apelos, do mais requintado sadismo ou masoquismo. Mas neste percurso é que se desvenda a dimensão humana do outro. Daí a sétima e última razão.

7. Sua literatura é social.
Por um caminho supostamente íntimo - enxergar o outro de si mesmo - essa literatura enxerga o outro socialmente configurado - o miserável, o pobre, o excluído - que precisa escapar de tal condição, pelo grito indignado.

Por tais razões, Clarice rejeitava - embora também praticasse - a autobiografia, preferindo, simplesmente, ser apenas bio. Sem grafia. Num impulso suicida da sua própria literatura. Por isso também, ainda que por caminhos contrários, Clarice se reconhecia, nos seus últimos momentos de vida, como personagem de si mesma, num impulso suicida da sua própria pessoa.
Nada estava mesmo fadado a permanecer, a não ser o trágico e esteticamente excelente registro deste processo: a literatura que nos deixou.

Nádia Battela Gotlib é professora livre-docente da
Universidade de São Paulo e autora, entre outros livros,
da biografia Clarice - Uma Vida que se Conta (Editora Ática, 1995).

Washington, 25 de outubro 1954

Alô Fernando,
estou escrevendo pra você mas também não tenho nada o que dizer. Acho que é assim que pouco a pouco os velhos honestos terminam por não dizer nada. Mas o engraçado é que não tendo absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. O quê? Quando não tenho o que dizer, fico com vontade de "passar a limpo" tudo ou então de apagar tudo e recomeçar a não ter o que dizer. Ou então viro criança e minha vontade seria depender inteiramente de outra pessoa e esperar dela todos os ensinamentos. Ou então viro mãe e me preparo toda para dizer grave: as coisas são assim e assim, meu filho. Preparo-me bem grave, tenho o gesto maternal de começar a informar - e na hora de abrir a boca não tenho o que dizer, viro de novo ignorante e em vez de dizer o discurso, imploro: por favor, diga! E assim é que, por não ter absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi, e você também. Até que a dignidade do silêncio venha, o que é frase muito bonitinha e me emociona civicamente.
Se você responder esta carta com outra onde você também não saiba o que dizer, vai parecer aquele jogo que você certamente já brincou um dia: o jogo de "vamos ver quem pisca antes", quem agüenta mais tempo ficar com os olhos bem abertos. Quem piscar é castigado. Humildemente, informo que sempre pisquei antes, tenho longo passado a piscar. Pois se agora mesmo estou quase piscando! - Não seja preguiçoso, Fernando, e me escreva, mesmo que nada tenha a me informar. Não sou exigente, quero carta apenas. Também para lhe escrever de vez em quando e mandar para você minha amizade. Abraço da Clarice


Rio, 30 de março de 1955

Clarice, minha amiga,
Seus contos estão comigo [viriam a constar do livro A Imitação da Rosa, Editora Artenova, 1977]. Por obra de Deus, ou do diabo, você não se livra do meu beneplácito, ou maleplácito. Eles não haveriam de passar em brancas nuvens por aqui. [...]
A primeira sensação foi de desânimo. Ora, eis que estou empenhado em escrever um romance importantíssimo para mim, mas impiedosamente limitado como realização artística e - o que é pior - desgraçadamente penoso de ser escrito [O Encontro Marcado, Editora Civilização Brasileira, 1956]. E me vem você com esses contos, dizendo, como quem não quer nada, tudo aquilo que eu pretendia dizer um dia num terceiro ou quarto romance, enfim liberto, enfim realizado, enfim obra de arte, além do que a gente é e do que é capaz. Você, de certo modo, me dispensa de escrever. Resta o consolo de pensar que se eu fosse capaz, como você, de dizer o indizível, eu teria a dizer certas coisas que você ainda vai dizer. E me limito a ficar esperando. [...]"

Fernando


Hipnotizado pela beleza - Por Fauzi Arap

Em 1965, quando fiz Perto do Coração Selvagem, com a participação de Glauce Rocha, José Wilker e Dirce Migliacio, o roteiro já se apoiava em G. H. para sua estrutura principal. Na época, a literatura de Clarice Lispector era a considerada "difícil", e muitos se espantavam que alguém se aventurasse a adaptá-la para o palco. Mas o impulso me veio por uma identificação singular com ela e particularmente com G. H. Naquela oportunidade, não tive coragem de limitar-me à adaptação de A Paixão, e incluí no roteiro algumas crônicas suas, na tentativa de facilitar a aceitação do público. Hoje, tenho a vaidade de ter sido dos primeiros a vislumbrar o potencial teatral de Clarice. Nas últimas décadas, sua obra tem merecido as mais variadas adaptações para palcos e telas, com sucesso, e é justo que seja assim.
Foi apenas 30 anos depois, no segundo semestre de 1995, de forma casual, que voltei a mexer com G. H. Não houve de minha parte nenhuma decisão deliberada de fazer uma nova adaptação, mas aproveitando um tempo livre, comecei a mexer com o texto. Senti, o tempo todo, uma enorme serenidade, quase uma comunhão amorosa, como se a presença invisível de Clarice me guiasse. Numa coincidência mágica, para meu espanto, terminei num dia 10 de dezembro, aniversário de vida e morte de Clarice. Além disso, ter me tornado seu amigo, alguns anos antes de sua morte, havia me ensinado muito sobre sua vida e obra, o que me ajudou a decifrar a beleza labiríntica do texto. Desta vez, não tive pudor em sintetizar a narrativa, o que a palavra falada pede, para transmitir o mesmo impacto. Cheguei a coloquializá-lo, algumas vezes, para que fosse mais fácil dizê-lo, em cena. Se em 1965, tive dificuldade na escolha dos fragmentos, hipnotizado pela beleza de cada um, desta vez, a edição, feita por um prisma dramatúrgico, não foi difícil. Houve uma enorme influência, até por trabalhar por prazer, sem objetivo de montagem, nem imediata, nem remota.

Fauzi Arap é autor, diretor e ator


Laços de Clarice - Por Walnice Nogueira Galvão

Estreando como romancista em 1943 e lançando a seguir mais dois romances, só em seu quarto livro Clarice Lispector se afirmaria como contista. Os três primeiros garantiram seu prestígio, os críticos logo saudando a voz nova e sofisticada que emergia. Mas continuariam praticamente ignorados por um círculo mais amplo de leitores.
Embora já em 1952 Clarice publique Alguns Contos, será Laços de Família (1960) que lhe grangeará o favor do público. Mais contos e romances surgiriam depois.
Laços de Família é um conjunto de obras-primas. Tramas bem armadas captam instantâneos ou cenas apanhadas na simultaneidade, como a festa de aniversário da matriarca, ou um jantar num restaurante, ou a visita de uma mulher ao zoológico. Caracterizam-se por um momento de iluminação, em que a mediocridade dos protagonistas e de suas vidas vê-se fulminada pela irrupção de um vislumbre do insólito, dissolvendo o embotamento fabricado pela rotina e pelo conformismo. Seguem-se A Legião Estrangeira (1964) - cujos contos, desmembrados das crônicas, vão formar Felicidade Clandestina (1971) -, A Imitação da Rosa (1973), A Via Crucis do Corpo (1974), Onde Estivestes de Noite (1974), A Bela e a Fera (1979).
Se a maioria das histórias preserva o roteiro de uma narrativa bem-feita, em que os nexos lógicos de causalidade e de temporalidade predominam, já se pode notar seu questionamento, acentuado pelo esgarçamento do entrecho. Vêm à tona então escritos de carga lírica tão forte, que mais parecem poemas em prosa: trata-se de aproximações relutantes ao ato de escrever, meditações sobre o fenômeno, sondagens de puro estado de espírito.
Há quem considere Clarice Lispector melhor contista que romancista. Mas, quando lembramos seus romances A Paixão Segundo G. H. (1964) e A Hora da Estrela (1977), fica difícil decidir.

Walnice Nogueira Galvão é professora titular de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (USP), escritora e ensaísta