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Ficção Inédita
Chica-Chica-Bum

Flávio Moreira da Costa

Segunda-feira - Só há um "porém": acho, acho, sim (mas por que tenho eu de achar?) que vou intitular este doce raconto de "The good old Copacabana South American affair". Assim mesmo: solene e globalizantemente.
Mas, no entanto, todavia, porém, não sei por quê. Por enquanto. Tampouco sei o que Carmem Miranda e Machado de Assis têm a ver com a presente história. Nem têm. Nem vem que não tem, graças a Deus. Nem me chamo Manuel.
Terça-feira - Dormi, não sei como; sonhei, sei lá; acordei pensando: como poderia haver uma boa história, boa de ler e de se escrever, quando ela própria vai logo se classificando de "doce raconto"? (deveria eu deletar?). Abrindo a guarda, falando a verdade, nada mais do que a verdade, apenas tento passar o tempo que me deixam passar por mim, o que quase não passa aqui nesta (Argh!) clínica, Enfermaria n. 5.
Minha consolação é a mulatona enfermeira da noite, que é uma tentação de me fazer escalar as paredes, mas que, por injustiças dos céus ou dos regulamentos, até agora não quis nada a ver comigo.
O Dr. Merengue é um vacilão de bochechas vermelhas e olhos amarelos detonando eternas e ingênuas surpresas em relação ao mundo, ou pelo menos a tudo aquilo que eu lhe digo - e não serei eu o mundo? Semana passada, ela me avisou que ia passar uns dias nos Estados Unidos, participar de um congresso, estas cositas más - e, caso eu precisasse de alguma coisa, se me sentisse fora de controle poderia chamar o médico assistente.
- Teria condições de chamar alguém se estiver fora de controle? - argumentei, como meu peculiar rigor lógico. - Além do mais, doutor, o dia que eu perder o controle, podes crer que estarei curado.
Hoje, de volta da viagem e à clínica, Dr. Baby Face comentou:
- Pensei muito naquela sua resposta, de que se você perdesse o controle era sinal de que estava curado... Muito inteligente...
Eu tenho só duas caras: uma de louco, outra de bobo. Caprichei na cara de bobo pra ele. Porque eu não pensara em coisa alguma: soltei as frases que me saíram na hora.
Sexta-feira - Socorro! Machado de Assis!
Socorro! Carmem Miranda!
Me enfiaram goela abaixo um cacho de bananas de pílulas!
Dormi, morri dois dias seguintes.
Acordei e fiquei sete horas observando um relógio: as horas não mudam de lugar.
"Coisa mais estranha"! - observou Gregor Samsa.
Será que estão querendo me enlouquecer de verdade? - perguntei eu.
Para que isso não acabasse acontecendo, resolvi assumir uma estratégia, que me evitasse morrer num hospício como Maupassant, em situação escatológica. Era melhor eu começar logo a escrever meu livro sobre Carmem e Machado.
Terça-feira - Maria de Carmo Miranda da Cunha nasceu em 9 de fevereiro (aquariana como eu) num ano que não me lembro, em Marco de Canazeses, aldeia no interiorão do norte de Portugal e só não me lembro que muitos anos depois ela cruzaria com Joaquim Maria Machado de Assis, no bairro da Saúde, Rio de Janeiro, em ... , e igualmente só muito mais tarde ela poderia encher a boca e dizer:
"Meu corpo tem as curvas do Brasil."
"Minha cabeça tem os labirintos do ser humano" - reagiria Machado de Assis.
Com medo da labirintite, escolho as curvas do Brasil. Que incluem, entre outras coisas, cachos de banana, turbantes, roupas de baianas e balangandãs, mas nesta, ou naquela época - poderia ser em 1911, para dar uma data arbitrária - nossa cachopa morava na rua da Candelária, filha (aliás, desde o nascimento) de um barbeiro chamado José Maria. E como os cabelos e as barbas - alheias - andavam mui escassas, muito cedo Maria do Carmo - a dita, mais tarde, Carmem precisou ir à luta e tornara-se vendedora de gravatas e chapeleira, entendendo-se por isso... bem, qualquer coisa relativa a chapéus.
A vida para ela ainda não era chica-chica-bum.
Pronto!
Dr. Merengue, o médico baby-face, cortou meu barato: foi só ele abrir a porta e eu fechei meu caderno espiralado. Escrever é como "fazer nossas necessidades" - com ou sem prisão de ventre. Exige concentração e privacidade.
Foi logo perguntando como é que eu ia.
Senti logo a pressão sobre mim quando ele empunhou o aparelho.
De tirar a pressão, claro.
Quarta-feira - A bem da verdade, se a verdade a alguém bem interessa, Joaquim Maria Machado de Assis nasceu alguns anos, ou décadas, antes da futura Carmem Miranda, mas isso não tem a menor importância. O tempo, como se sabe ou não se sabe, é móvel, auto-móvel, moldável, volátil, variante e variável, e pode ser apagado como uma mensagem escrita a giz, ou espichado e ampliado como um elástico. Neste elástico da vida, Machado de Assis, na sua mocidade, descobriu e cultuou a mulher e a poesia:
A mulher é um catavento
Vai ao vento,
Vai ao vento que soprar;
Como vai também ao vento
Turbulento
Turbulento e incerto o mar
As mulheres, cataventos ao vento, eram sempre passageiras coristas francesas ou italianas ou portuguesas pelos palcos do Rio de Janeiro, traduzidas ou captadas na lira dos seus vinte anos, e os tempos - oh, mores! - eram de românticos amores...
Sem ser chamada, a enfermeira entrou no quarto e me deu um coquetel de pílulas...
Quinta- feira - A dor da gente não sai nos jornais e a dor do outro é sempre não visitada por nós, por mais que os médicos e demais sábios falem e digam e aconteçam. Ninguém pode sentir a dor de dente do vizinho nem a dor de barriga do deputado federal. A dor, exclusiva de cada um, é intransferível.
Da minha dor, sei eu; reclamo mas tenho que agüentá-la e, bem ou mal, aprendi a administrá-la e contá-la como um contador.
Da dor de Carmem Miranda e Machado de Assis ninguém sabe, ninguém viu - apenas e somente, imaginamos. Imaginamos, digo, a dor de viver, de ter vivido, atravessando as horas, viajando nas nossas próprias narrativas ou canções e os discursos dos outros e de nós mesmos. Não são traduzíveis: tudo um monte, uma montanha de palavras presentes e, a posteriori, manuseáveis, apropriadas ou desapropriadas: é a roupa que as pessoas vestem, o que é que a baiana tem?, e nela até os silêncios têm algo a dizer.
Balangandãs.
Faço, portanto, um minuto de silêncios - por eles e por mim.
Sexta-feira - Carmem - ah, Carmenzita, lusa jeunesse de vez e voz nos trópicos tristes e alegres, que já naquela época cantava-se na cidade do Porto:
"Se o mar tivesse varanda
e janelas pelo meio
como uma antiga fragata
podia-se andar até o Rio de Janeiro..."
Pois, pois, Carmem Miranda, como ameaçávamos dizer, tinha apenas 19 anos quando gravou seu primeiro disco, pela RCA-Victor. Vocês devem se lembrar:
Taí,
eu fiz tudo pra você gostar de mim...
E todo mundo gostou: o disco de 78 rotações foi um foguete de vendagem, recorde na época: 35 mil cópias.
E ela deu adeus às gravatas e aos chapéus.
Sábado - Machado e Carmem não se conheciam nem de vista nem de chapéu.
Naquela época, não havia ainda bananas e abacaxis no turbante da nossa (deles?) bombshell cantante e dançante; talvez por isso, Machado de Assis não a tenha incluído em seu conto Capítulo dos Chapéus.
E Capitu não tinha balangandãs, balangandãs...
Domingo ou Terça - A enfermeira entrou para tirar a temperatura, e antes que ela ficasse sem ela, temperatura, perguntei se ela, a enfermeira, estava sem calcinha.
Parece que ela não gostou muito: fez cara feia. Eu disse:
- Qual é o problema? Quando Carmem Miranda, que era Carmem Miranda, vivia seu sucesso norte-americano, tiraram uma foto dela com a saia levantada e mostrando os países baixos, os belos pentelhos da...
Ela não me deixou terminar a frase e se retirou, levando com ela, dentro do termômetro, minha própria e fundamental temperatura.
O próximo passo seria o eletrochoque?
Quarta-feira - Carmenzita tinha um sorriso rasgado, vermelho, claro, inequívoco, um sorriso sem roupas e alfândegas, sem remorsos, culpas ou vergonhas. Combinava com ela. Combinava com a voz, com as músicas, com as roupas - o que é que a baiana tem? Tudo demais: Carmenzita era um excesso de vidas, amores, sonhos, dores. - sempre um exagero.
Nunca mais parou: depois de "Taí", gravou 140 discos no Brasil, 16 nos Estados Unidos e atuou em vinte filmes, cá e lá, afinal ela fez tudo pra gente gostar dela.
Sexta-feira - Vocês ficam todos à roda e atrás de mim, mas não adianta nada que eu sou a minha própria perseguição. Se não me agarro no meu livro As Aventuras de Carmem Miranda e Machado de Assis, minha cuca vai para o liquidificador-psi e vira uma espécie de mingau. No fim da vida Carmenzita fazia dois shows por noite - um às 21 horas e outro à meia-noite -, o que significava que ela só dormia com sleeping pills e, para acordar, tinha que engolir pílulas para se levantar. Resultado: teve um colapso monumental e, como se fazia então, foi submetida a eletrochoques.
Curioso: bem na época em que Machado de Assis escrevia O Alienista.
Idéias, mesmo que idéias de maluco, costumam ter duas faces, se não ninguém conseguiria jogar cara-ou-coroa. Pois confesso que na minha algibeira não havia moeda alguma, pois a idéia que eu tive, ou uma das minhas vozes internas teve por mim, mais se assemelhava a idéia de jerico, que foi essa de escrever sei lá o quê sobre sei lá quem, Carmem de Assis e Machado Miranda, com o único intuito de me distrair e de me abstrair do tempo que passa como um supersônico ou a passo de cágado, tempo que nada, voa, que mal me deixa acompanhá-lo - pelo menos do lado de fora.
Do lado de dentro, não consegui saber por quem os sinos e os pandeiros dobram, se é que dobram nas dobras do tempo que não me é consentido visitar - e ficam os poetas a dizer que os sinos dobram por vocês...
Por mim, não, violão.
Domingo - Depois que o Dr. Baby Face, ou Dr. Merengue, fez sua visita burocrática - ele é um médico-funcionário público - anotei o seguinte para o meu insensato livro:
- Carmem casou-se com um cafajeste, um rufião, como então se dizia, que, além de bater nela, queria seu dinheiro.
- Participava de um show, no então famoso programa de Jimmy Durante, mas não se agüentou em cima das pernas e caiu - o show saiu do ar.
Morreu naquele mesmo dia, aos 46 anos.
E eu, que não morria ainda, vou acabar morrendo também aos 46 anos.
Segunda-feira - Já imaginaram um Machado de Assis escrito por D. Casmurro ou por Brás Cubas?
Aos vencedores, as batatas!
Aos perdedores, o eletrochoque!
Pois Machadinho, já com aqueles grãos de sandice e tédio às controvérsias, era um observador privilegiado do music hall da vida. Do teatro principalmente, o Teatro Lírico, na Rua Velha (hoje Treze de Março) no Teatro São Pedro (reinaugurado em 1831 como Teatro São João) e o suntuoso Teatro Phoenix, na antiga Rua d'Ajuda, que ia da São José à Santa Luzia.
Foram ali seus amores passageiros - amores de espectador, amores de palco e proscênio - o lado anti-Casmurro do jovem Machado, sua paixão maior foi a portuguesa Gabriela da Cunha, que deveria ter o dobro de idade dele, Édipo de Assis.
Terça-feira - Pois hoje, de surpresa, entrou o Baby Face Dr. Merengue, a enfermeira boazuda e dois auxiliares fortes e me carregaram para outra sala.
Amarrado, chupetão de borracha na boca e cargas de espasmos pelo corpo.
Eletrochoque: chica-chica-bum.
Meu Deus, o que foi que eu fiz!?
Me lembrei de Carmem Miranda.
Sábado - Acho (olha eu aí "achando" de novo) que meu livro não vai seguir adiante. A única possibilidade é quando eu sair dessa sensação de cuca-mingau que tomou conta de mim, qualquer um pode o começar e comer ela, a cuca-mingau.
É uma pena. Minha tese era de que, taí, ela fez tudo pra gente gostar dela; que, não, ela não voltou americanizada, embora nunca tenha ido à Bahia; que Machadinho, por mais grave e sério que parecesse - e que era - tinha uma alma salteadora; era, enfim, um grande gozador, o que foi mal-interpretado ao exercer um frio e racional humor inglês.
Tanto assim é que no fim da vida - da vida da minha narrativa - excelente dançarino que era, fizeram os dois um show único e inesquecível nos palcos do Cassino da Urca. Uma dupla assim digna de Fred Astaire e Ginger Rogers.
Pena que não havia videotape na época pra registrar a história.

Flávio Moreira da Costa é escritor e autor, entre outros livros, de Modelo para Morrer (Editora Record)