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Relatos de um certo ocidente

Milton Hatoum fala sobre seus livros e como a Manaus de sua infância não poderia deixar de figurar entre seus personagens

O escritor manauense Milton Hatoum teve uma trajetória pouco comum na literatura. Formado em Arquitetura pela Universidade de São Paulo e mestre em Literatura Comparada pela Sorbonne, na França, ele dedicou-se durante anos exclusivamente ao ensino de Língua e Literatura Francesa na Universidade do Amazonas. Sua estréia como escritor, aos 38 anos, surpreendeu crítica e público. O romance Relato de um Certo Oriente, ambientado em sua cidade natal, recebeu o Prêmio Jabuti de 1990 e teve grande repercussão internacional, sendo publicado em diversos países. Sua segunda obra, no entanto, demoraria ainda mais 11 anos para chegar ao público, aprofundando a relação entre o drama e o cenário amazonense. Outro sucesso retumbante e mais um Jabuti, em 2001. Nesse depoimento, Hatoum fala sobre seus livros, sua atual produção e como conciliou a carreira de escritor com a academia.

Estréia literária
Comecei a escrever meu primeiro livro, Relato de um Certo Oriente, em 1986, enquanto vivia na França. Uma das maiores motivações para escrevê-lo foi a morte de meu avô, que era um grande narrador de histórias. A experiência do narrador oral foi muito importante para minha geração, pelo menos para os que moraram em cidades pequenas. Em Manaus a televisão só chegou em 1967. Minha infância foi muito motivada e movida por essas rodas de narradores que contavam histórias.
Meu avô era um grande narrador. Quem viaja tem o que contar, sempre. Ele viajou muito e não foi exatamente um turista, fez a aventura de uma vida. Deixou o Líbano no começo do século 20 e foi morar no Acre. A viagem selou seu destino. Ele contava essas peripécias um pouco à maneira das Mil e Uma Noites. Quando ele morreu foi mais fácil reencontrar um tema que estava latente em minha memória: minha vida familiar em Manaus na época em que nasci e nos relatos de meu avô.
Mesmo depois de o livro ser publicado e ter alcançando um grande êxito, com o Jabuti e traduções para várias línguas, eu não pensava muito como minha vida poderia se transformar. A expectativa é uma coisa que atrapalha a vida de um artista. Nunca esperei colher muita coisa, talvez pensando que pudesse colher algo. O fato é que acabei tendo um pouco de sorte, não posso negar: o livro foi publicado por uma boa editora e teve a orelha assinada por um grande crítico, o Davi Arrigucci Jr. Isso lhe deu muita força, além do destaque recebido com o Jabuti.

Universidade e escrita
Sem dúvida, a carreira acadêmica me tomou algum tempo de produção literária, mas a experiência de professor nunca atrapalhou a do ficcionista. Pelo contrário. Ela me forneceu muitos elementos para encontrar meus caminhos. Além disso, não podia parar de dar aula. Na Federal de Manaus, o professor tem muitos alunos e disciplinas. Tem que ser pé-de-boi.
No entanto, apesar de só haver publicado em 1989, Relato... não foi minha primeira obra. Porém, tudo o que eu escrevi antes joguei fora. Desfiz-me de vários contos escritos nos anos de 1970, perdi outros em minhas andanças pelas várias cidades em que vivi. No fundo, do que escrevi não gostei. Senti que o meu primeiro livro seria realmente o Relato... Ao mesmo tempo em que ia abandonando o que havia escrito, fui ganhando experiência. O que estava fazendo era tatear por todos os lados, buscando o que mais me tocava.

Relato e Dois Irmãos
Minhas duas obras se passam em Manaus e têm imigrantes árabes entre os personagens. Entretanto, o drama deles não é uma nostalgia das origens. São dramas que acontecem no novo país, no país escolhido. Há elementos da cultura árabe, mas são elementos mesclados com a cultura amazonense e brasileira. Pode até parecer exótico, mas para mim não é. Isso faz parte da minha vida. Eu só posso falar disso. A meu ver, tudo o que o escritor produz está ancorado em sua infância e juventude.
Relato... é um drama familiar que não ultrapassa os limites daquela casa que no fim se desfaz. Ele é narrado por uma mulher - e deu trabalho me colocar na pele de uma personagem feminina - que conta a história de seu passado. No fundo, a memória serve aí também como uma motivação para algo ser inventado. Ela volta a Manaus depois de muito tempo, e nesse reencontro com os amigos e parentes monta uma espécie de caleidoscópio.
Em Dois Irmãos, meu segundo romance, publicado em 2000, acontecem algumas semelhanças e muitas diferenças. Uma das semelhanças é que o narrador é alguém que pertence e não pertence à família. Ele se posiciona nessa fronteira social entre o parentesco ambíguo e sua condição de empregado da casa. Além disso, no livro Manaus se tornou uma personagem. A cidade aparece muito mais, ganha força. Minha intenção foi que os espaços da cidade, seus recantos, o rio, o porto, algumas praças e bairros aparecessem com mais concretude.
Os destinos dos irmãos marcam também diferenças e oposições entre o Amazonas e São Paulo, já que um deles segue para a cidade. Há aí uma leitura que ultrapassa o drama familiar e vai por um momento da história brasileira, não no sentido do romance histórico, mas no de a literatura revelar, em sua estrutura, elementos da história que situam o leitor no tempo.

Atual produção
Há seis meses deixei a universidade, mas continuo dando cursos. No momento estou terminando um romance, mas não gosto de falar enquanto estou escrevendo. Se falar, não escrevo - é melhor escrever e ficar calado. É um livro diferente, fora da temática da imigração, mas sempre muito perto de minha vida, de minha experiência. Já terminei a primeira versão. Espero publicá-lo ainda neste ano, se tudo der certo.
Não tenho pressa. Só publico o que está amadurecido e muito bem pensado. Um dos grandes inimigos do escritor é a pressa. Há muita pressa e pressão do mercado. E eu me habituei a viver com pouco e a publicar pouco. Então não publicarei qualquer coisa. E o leitor sabe quando você publica qualquer coisa. O bom leitor não é bobo.
Também estou traduzindo dois livros: um de contos do Flaubert, chamado Três Contos, e uma série de conferências reunidas de um pensador palestino-americano chamado Edward Said, um dos mais importantes pensadores da atualidade. Seu título será Representações do Intelectual, e trata dos intelectuais no mundo contemporâneo.

Milton Hatoum participou do projeto Horizontes Literários, em março, no Sesc Carmo