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Articulando utopias

Mulheres que não se opunham ao patriarcado, ao capitalismo, ao classismo ou ao racismo se intitularam ‘feministas’. [...] Queriam igualdade social em relação aos homens de sua classe; outras queriam pagamento igual para trabalhos iguais; outras queriam um estilo de vida alternativo. Muitas dessas preocupações legítimas foram facilmente cooptadas pelo patriarcado capitalista dominante. [...] A ordem burguesa, o capitalismo e o falocentrismo estão prontos para integrar quantas feministas forem necessárias (bell hooks, 1984)

 

O olhar para a realidade é alarmante: florestas queimando, uma pandemia mundial, genocídio da juventude negra, recordes de violências contra as mulheres e contra a população LGBTQIA+, aumento da população em situação de rua e em situação de refúgio, extermínio de indígenas e quilombolas, desemprego e precarização das relações de trabalho.  

A lista é enorme e o senso de urgência parece justificar que os movimentos sociais que atuam em cada uma dessas frentes precisam simplesmente agir. 

Por um lado, é verdade: a fome, a violência, a doença, não esperam. A impressão que fica, no entanto, é de enxugar gelo. Muitas ações tocam apenas na superfície do problema, sem refletir sobre suas origens e inter-relações e, menos ainda, desestruturá-las de alguma forma. 

Estrutura. Racismo, sexismo, colonialismo, classismo, etarismo, neoliberalismo, desenvolvimentismo. Esses e outros “ismos” existentes em nossa sociedade são estruturas, isto é, sistemas complexos que produzem desigualdades, que dividem, hierarquizam. Eles estão interligados e legitimam um único modo de vida, calcado na lógica da exploração, do consumo e do descarte – das pessoas e de outras formas de vida. 

O sistema que descarta o plástico no oceano é o mesmo que descarta o velho, a criança ou a pessoa com deficiência. Que descarta um bioma inteiro para produzir soja e criar gado. A lógica do aumento de produção é a mesma que legitima a exploração da mão de obra em condições análogas à escravidão, seja do trabalhador uberizado, seja da mulher no trabalho não remunerado da reprodução biológica e da reprodução de mão de obra e do cuidado.  

Foi da observação dessa lógica que oprime quem ousa pensar ou meramente existir de forma diferente, que surgiu o projeto Articulando Utopias, com a ambiciosa missão de buscar ferramentas para desmantelar essas estruturas. 

A primeira premissa pensada é a do diálogo, em contraposição ao autoritarismo. No cenário de polarização da atualidade, parece impossível dialogar com quem pensa diferente. Mas como estamos dialogando com quem pensa parecido? Parece inconcebível que quem combate a desigualdade social compactue com a violência de gênero. Ou que a pessoa LGBTQIA+ possa ter atitudes racistas. Ou que o ambientalista seja machista. Mas as estruturas são complexas e, na prática, é necessária uma busca ativa para deixar de perpetuar cada uma dessas agressões. 

As mulheres negras já perceberam a relação entre suas lutas e nos apontaram um caminho de interpretação da complexa realidade quando acusaram sua invisibilidade na luta das mulheres brancas, bem como na dos homens negros. Esses entrecruzamentos, que apareceram antes no pensamento de Lélia Gonzalez, Angela Davis, Audre Lorde e bell hooks - chamados de interseccionalidade pela estadunidense Kimberlé Crenshaw - foram nosso ponto de partida. Bebemos ainda da fonte da historiadora brasileira Bárbara Araújo Machado, que propôs uma “articulação de utopias” de raça, classe e gênero, com esse nome mesmo, em seu artigo Articulando utopias: algumas possibilidades do encontro entre feminismo negro e o marxismo da reprodução social.  

Mas nossa perspectiva ao realizar o projeto no Sesc Piracicaba não era a de somente denunciar o que está posto, mas sim evidenciar a potência de soluções antissistêmicas elaboradas coletivamente e que pudessem desestabilizar essas estruturas. Uma reflexão integrada que englobasse os movimentos pelos direitos das mulheres, dos negros, das pessoas LGBTQIA+, dos indígenas, pessoas com deficiência e demais grupos subalternizados, bem como de todos que combatem as desigualdades, tudo isso considerando a perspectiva da sustentabilidade.  

A ideia não era invisibilizar as especificidades e profundidades das pautas sociais, culturais ou ambientais, mas sim potencializar as lutas, enxergando os pontos de convergência relacionados tanto às origens das opressões, quanto às possíveis soluções. 

Convidamos então os grupos e coletivos da cidade que participaram do mapeamento feito  no território pelo projeto EngrenAgem, para ouvirem uma palestra virtual da Bárbara Machado e, em seguida, nossa proposta: criar uma Comissão Organizadora para discutir conosco o que fazer. Aonde iríamos chegar? Não sabíamos. Qual seria o caminho? Também não. A única certeza é que faríamos em conjunto. 

E que conjunto! Nosso chamado foi atendido por ativistas, educadoras, funcionárias públicas, estudantes, artistas, pessoas que estavam com a mão na massa na lida diária da luta por direitos e no combate às desigualdades. Gente de um esperançar tão profundo e potente que o resultado não poderia ser outro: muito aprendizado e articulação. 

Ao longo de 9 meses (e contando!) realizamos dezenas de reuniões, rodas de conversa, mesas de debates, oficinas. Isso tudo via Sesc. Mas vimos também a articulação extrapolar a instituição e as instituições, formais ou informais, que essas pessoas representavam, fazendo pulsar muita coisa bonita na cidade e região. 

Como último ato de 2021, preparamos os “21 dias de ativismo” começando agora no dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, e seguindo até 10 de dezembro, aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. 

Mesmo com toda essa programação, ainda nos instiga, e muito, o desejo de mais “mão na massa”, afinal boa parte do que realizamos foi virtual. Mas 2022 está aí, e tem muita articulação para acontecer! Vamos articular nossas utopias?