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Velhices LGBT e o novo CID 11: Velhice não é doença
Por Diego Felix Miguel* e Milton Crenitte**
“Por oposição aos gerontologistas, que
analisam a velhice como um processo biológico, eu estou interessado
na velhice como um acontecimento estético. A velhice tem
a sua beleza, que é a beleza do crepúsculo. A juventude eterna,
que é o padrão estético dominante em nossa sociedade, pertence
à estética das manhãs. As manhãs têm uma beleza única, que lhes
é própria. Mas o crepúsculo tem um outro tipo de beleza, totalmente
diferente da beleza das manhãs. A beleza do crepúsculo é
tranquila, silenciosa – talvez solitária. No crepúsculo tomamos
consciência do tempo. Nas manhãs o céu é como um mar azul,
imóvel. No crepúsculo as cores se põem em movimento: o azul
vira verde, o verde vira amarelo, o amarelo vira abóbora, o abóbora
vira vermelho, o vermelho vira roxo – tudo rapidamente. Ao
sentir a passagem do tempo nos apercebemos que é preciso viver o
momento intensamente. Tempus fugit – o tempo foge – portanto,
carpe diem – colha o dia. No crepúsculo sabemos que a noite está
chegando. Na velhice sabemos que a morte está chegando. E isso
nos torna mais sábios e nos faz degustar cada momento como
uma alegria única. Quem sabe que está vivendo a despedida olha
para a vida com olhos mais ternos.”
Rubem Alves
Você sabia que a Organização Mundial da Saúde incluiu a velhice na nova edição da Classificação Internacional de Doenças – o código CID 11-MG2A, no qual, a partir de janeiro de 2022, a classificará como doença?
Nas últimas semanas, essa discussão tem sido pauta nas áreas da Geriatria, Gerontologia e Direitos Humanos, o que gerou uma importante articulação entre instituições que são referência em envelhecimento em nosso país e, também, em nível internacional.
Quem diria que em plena pandemia de Covid-19, num momento em que a desigualdade social ficou tão evidente em nosso país e requer uma maior concentração de esforços para proteger as pessoas que estão ainda mais vulneráveis nesse contexto – além de todas as demandas políticas que tentam infringir nossos direitos e a própria democracia –, ainda temos que voltar a discutir um assunto que pensávamos já estar sendo aos poucos superado: a desvalorização da velhice e da pessoa idosa.
Quem dera se todos nós tivéssemos um olhar poético sobre a velhice, valorizando as tantas possibilidades de vivenciá-la de forma libertária, representativa e significativa, sem as amarras dos mitos e estereótipos que impõem sobre a pessoa idosa, uma condição de vulnerabilidade social, deixando-a mais exposta à violência em suas diferentes expressões. Quem dera o Estado e a sociedade tivessem a compreensão da importância das pessoas idosas para as produções afetivas, culturais, artísticas, políticas...
A juventude tem lá seus privilégios, em que, numa análise simplista, é uma categoria social valorizada por sua capacidade de produção e exposta ao consumo, aspectos valorizados num sistema capitalista; que, em contraponto, submete a condição da velhice à um desprivilegio social, permeada por ideias de improdutividade, incapacidade e, pasmem, doença!
Você já parou para pensar quantas vezes ouviu algum comentário ou até mesmo já associou dores, limitações funcionais ou até mesmo o cansaço à velhice?
Diariamente esse constructo social é reforçado em nossos discursos, naturalizado e imprudente, não apresentando “a grosso modo” nenhuma problemática. Infelizmente, trabalhando com Direitos Humanos da Pessoa Idosa já ouvimos isso, e consideramos que relativizar esses tipos de discursos faz parte da perversidade posta socialmente que legitima a desigualdade social.
Atribuir a velhice como doença é o fruto da deslegitimização de todo um investimento que há mais de 20 anos tem sido realizado a partir do Programa de Envelhecimento Ativo e tantas outras frentes da própria Organização Mundial da Saúde, que foram estruturados para potencializar, internacionalmente, um processo de envelhecimento com oportunidades e uma velhice digna para todas as pessoas. É um reforço de um estereótipo da velhice que, infelizmente, está sendo endossado pelo principal órgão de autoridade em saúde de notoriedade mundial.
Em contraponto à essa posição um tanto equivocada da OMS, a mesma organização lançou no início desse ano dois documentos muito importantes, um deles atribuindo o período de 2020-2030 como Década do Envelhecimento Saudável e outro um importante relatório que propõe estratégias e ações de conscientização contra o idadismo - um preconceito etário de ordem cultural, naturalizado em nossa cultura, que desprivilegia pessoas e grupos por uma questão etária.
Simone de Beauvoir, filósofa francesa e referência do feminismo, escreveu no livro "O segundo Sexo (1949)": “nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida...”, e de fato, sabemos o quanto é pernicioso o machismo, que integra nossa estrutura sociocultural e condiciona mulheres à um contexto de desigualdade.
Esse mesmo pensamento pode ser aplicado ao contexto que apresentamos. É idadismo o preconceito etário que afeta todas as gerações, mas principalmente impõe sobre as pessoas idosas um lugar social desprivilegiado, num momento da vida em que podem estar mais expostas à vulnerabilidades e com demandas de um maior suporte social.
O processo de envelhecimento é transversal aos Direitos Humanos e demanda de frentes para aprofundamento das questões que envolvem a diversidade, seja ela sexual e de gênero, raça ou etnia e tantas outras possibilidades, que são as Interseccionalidades, aspectos que nos colocam num lugar social específico, em condições de privilégios, mas, em muitos casos, de desprivilégios, que são determinados socialmente por conta dos preconceitos e discriminação que comprometem as formas de acessos fundamentais e que compreendem a dignidade humana.
Já imaginou que o impacto de um CID que qualifica a velhice como doença também será diferente para cada pessoa? Podemos inicialmente pensar que os fatores econômicos sejam um dos mais importantes nesse contexto, mas considerando que as pessoas idosas LGBT já são submetidas às condições de violência estruturais, imagina como será lidar com mais esse fator?
Além do nefasto discurso fundamentalista da “cura gay” que, infelizmente integra um dos mais perniciosos discursos fundamentalistas e afeta a vida de muitas pessoas, como será com as pessoas idosas LGBT? Estarão submetidas enquanto pessoas idosas à uma “cura da velhice”? Como será essa percepção quando envolvemos outras características como cor, etnia e classe econômica?
Vale reforçar que somente agora as velhices LGBT tiveram notoriedade em discussões de políticas públicas para o envelhecimento e maior visibilidade às pesquisas e estudos que há anos estão sendo produzidos no campo científico do Brasil.
Por isso é necessário falar sobre diversidade e, nesse espaço especificamente, falar sobre Velhices LGBT, pauta que a Associação EternamenteSou tem defendido com afinco desde 2017 e desde então se tornou uma das principais instituições de referência no assunto, pelo pioneirismo e ousadia ao romper com o silenciamento e invisibilidade que foram impostos à toda uma geração de pessoas LGBT. Mesmo com histórias marcadas por lutas e resistências, na velhice essas pessoas foram submetidas à uma dupla, tripla ou quádrupla invisibilidade, quando considerados outros fatores que compõem sua identidade sociocultural e às submetem à uma condição de marginalização.
As velhices são plurais e complexas, as possibilidades do envelhecer não se esgotam, e esse é o grande trunfo da poesia de Rubem Alves, quando sugere a sua relação com o crepúsculo: “onde as cores se põem em movimento: o azul vira verde, o verde vira amarelo, o amarelo vira abóbora, o abóbora vira vermelho, o vermelho vira roxo”. Essa é poesia da ressignificação, na qual toda a experiência de uma vida deve ser valorizada e protagonizada, numa transgressão à essa normatividade que deslegitima a participação social da pessoa idosa em sua diversidade, muito além da condição etária, mas pela representatividade que ocupa em seu lugar social.
Esse é nosso papel, resistir enquanto minorias sociais – ou seja, enquanto grupo que, apesar de ter direitos conquistados, ainda é frágil contra a investida de um sistema perverso e opressor, assim como nos elucida Simone de Beauvoir, que continua tão contemporânea mesmo depois de 72 anos do lançamento de seu livro.
Precisamos falar sobre envelhecimento e velhices LGBT. Precisamos nos posicionar contra à violência institucional que impõe à pessoa idosa uma condição de doença, sendo que a velhice pode e dever ser uma oportunidade de ressignificação, participação social e novos projetos de vida.
Assine o manifesto organizado por instituições e profissionais que são referência em Geriatria e Gerontologia em nosso país: tinyurl.com/velhicenaoedoenca
Siga o perfil da campanha no Instagram: @velhicenaoedoenca22
*Diego Felix Miguel é mestre em Filosofia (USP), especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), professor de pós-graduação em Gerontologia e padrinho da Associação EternamenteSou.
**Milton Crenitte é médico Geriatra, Doutorando em ciências pela Fmusp, coordenador médico do ambulatório de sexualidade da pessoa idosa do HCFMUSP, professor de curso de medicina da Universidade de São Caetano do Sul e Voluntário da ONG Eternamente SOU
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O Sesc São Paulo acredita na promoção do envelhecimento com oportunidades de protagonismo, numa sociedade em que as pessoas velhas sejam respeitadas e valorizadas por suas potencialidades como sujeitos de direitos.
Por tudo isso, contestamos a inclusão da velhice como enfermidade na Classificação Internacional de Doenças – CID 11 e convidamos a sociedade a se posicionar também.