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Habitar Palavras: João Catalão
A Vingança do Ladrão
A rua sonolenta cochila, afasta os restos do dia, penteia as estrelas, pisca para os fantasmas que vagam no escuro, escondidos nas grutas das esquinas, sorri para admiradores que chegam: assaltantes, estupradores, passadores de tóxicos, prostitutas, boêmios e esgotados trabalhadores que retornam das fábricas pensando na jornada do dia seguinte, em busca do pão de cada dia. Um bailado de pés, estranha coreografia que deixa marcas invisíveis, imperceptíveis para olhos comuns. Agora, ao som do acaso, pés pequenos e sensuais dançam a valsa do encontro, na direção de pés enormes.
A voz é grave, gela o sangue e a alma, é enigmática, a mulher não entende direito. Ela é jovem, bonita ainda. O sorriso imita a tartaruga e puxa sua cabeça para dentro da carcaça. Ficam os dentes esbranquiçados, presos pela sensação de perigo. As raízes dos pés pequenos e sensuais não estão fincadas na calçada, mas a mulher resiste, não desaba.
Bem à sua frente, chegado de um mundo estranho, mágico, o ser descomunal. Não é imaginário, é de carne e osso. Não pode ser fantasma. Mas está coberto por uma capa preta e há um capuz sobre seu rosto. Apenas os pés aparecem e são gigantescos. Suas mãos seguram um punhal, que escorrega em sua direção. Vagarosamente, a lâmina encosta no umbigo, ameaça rasgar a pele macia.
A mulher percebe a transformação: seu rosto vira um rio, por onde escorre o suor de todas as pessoas que sentiram medo. Cai em cascata, gotas de pavor que desaguam nas pernas bambas. Relembra orações perdidas na infância. Pessoas passam pela rua, andam ligeiras, não prestam atenção ao cenário – pode ser a filmagem de um capítulo da novela das oito – é melhor chegar logo em casa e ver pela TV, é mais cômodo não se intrometer, não se comprometer. Há risos e aplausos na multidão.
A moça se espanta, continua viva. O homem é delicado, diz palavras bonitas, até poéticas. Fala que ela é muito bonita, que merece encontrar um príncipe, que ele está desempregado, por isso não a convida para jantar no restaurante italiano.
Mas a arma continua encostada no seu corpo. O homem diz que é para evitar que ela grite, que afaste o romantismo da noite com a serenata de gemidos e apelos. Pede licença, abre a bolsa dela, vasculha, retira dinheiro, deixa os documentos. Reclama que é pouco, aconselha, fala que é importante andar com mais dinheiro, que é um risco muito grande não ter grana suficiente para pagar a taxa dos assaltantes.
Ela percebe que os olhos do bandido passeiam pelo seu corpo, analisam cada curva, cada detalhe dos seios empinados e rígidos, cada centímetro das nádegas polpudas. Mas ele não é um estuprador. É apenas um assaltante. As mãos vagam pelas joias, que são retiradas com delicadeza, colares, pulseiras, broches, anéis, tudo, ela se despede de seus valores, de seus enfeites. Mas fica com a vida.
Nota que ele esboça um sorriso, guarda as mercadorias no bolso, dá um beijo com a ponta dos dedos, pede que ela fique em silêncio, não chame a polícia, se não pode ser pior para ela, e se afasta sem olhar para trás. Ela enxuga o suor com as mãos trêmulas, afasta as lágrimas e prossegue, aliviada por continuar viva. As pessoas permanecem indiferentes, apenas algumas param e se acercam do camelô que brinca com a cobra, garante que é cascavel, mostra guizos, vende pomadas milagrosas para a cura do reumatismo, dor de cabeça, todas a dores do mundo.
A noite navega, escorrega, retorna. A rua é a mesma, as pessoas quase que as mesmas, no maroto vai e vem. A mulher baila de novo os pés pequenos e sensuais, retorna do trabalho e passa por ali diariamente. Já está refeita do susto, não deu queixa à polícia. Que adiantaria? Observa a chegada de um jovem, elegante na sua jaqueta de couro, vê um sorriso, alegra-se com a perspectiva de ser paquerada, encontrar o príncipe encantado.
O homem se aproxima:
— Boa noite!
— Boa noite!
— Desculpe-me a curiosidade. Não foi você que foi assaltada ontem?
— É sim, eu mesma. Como soube?
Ela está curiosa, não percebe os pés gigantes incriminadores.
— Fique sabendo que é muito feio usar joias falsas. Será castigada por isso, marcada para aprender.
O homem retira uma navalha, corta o rosto da bela mulher e se afasta assobiando. Nem olha a rua, que ganha desenhos de sangue.
Na praça da matriz
Março.
Veraneiam os pássaros nas palmeiras gigantes,
A grama repousa entre as pedras andantes,
Pelo ar estancado a frágil percepção,
De formas ausentes, sem coração, sem paixão,
Seres sem vida, elipse imóvel sob as árvores,
Seguros na penumbra,
Os bancos de pedra,
Refletem uma outra fisionomia,
De homens sem alegria,
De seres destroços,
Mudos em seus frágeis ossos,
Ninguém se senta mais na praça,
Ninguém descansa,
Da longa caminhada na praça sem flores azuis.
Março.
Na praça deserta,
Espelham-se sombras e lembranças,
De antigas andanças,
De uma infância triste e incerta...
Imagens
Não dê excessiva importância à repetição,
De tuas feições na tela, mármore ou fotografia,
No zap, instagram ou facebook,
São meras ilusões os seus diferentes looks,
Reflexos de uma frágil e passageira alegria.
Dê importância apenas ao seu coração,
A estes momentos breves e roubados à emoção,
Somente ampliam a calunia e o esquecimento.
Dos celestiais e heróis são os monumentos...
A nós corresponde o efêmero,
Somos feitos do fermento que se escapa.
Do amplo rio, por instantes,
Percebeste a face do eterno?
Onde está agora a tua imagem?
No açoite? No escuro inverno? No fogo do inferno?
Ou na desilusão da efêmera miragem?
Sempre substituídas, prescindíveis,
Tuas feições se perdem no vazio da noite...
Sobre o autor
João Carlos Catalão é natural de Cafelândia-SP e reside hoje na cidade de Sud Mennucci-SP, onde é diretor-proprietário do Jornal Sud News, há 26 anos. Professor universitário aposentado, escritor, poeta e jornalista, tem três livros publicados: “João Sem Nada” (poesias), “Almas Perdidas” (contos) e “Linhas do Tempo” (poesias). Participou de 12 antologias de poesias e contos no ano de 2020, além de diversos concursos de literatura. Graduado em Letras, tem Mestrado em Educação.
Habitar Palavras - Biblioteca Sesc Birigui
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