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Habitar Palavras: Wagner Alves

Ode à esperança da gente! 

Na rua, o barulho estridente das ambulâncias contrasta com o silêncio do desespero da minha tevê ligada no jornal da meia noite. Um homem morreu. Um carro bateu. Alguém me leu!  

De olhos fechados e garganta ressecada pelo medo, ainda posso ver as luzes das sirenes. Há jornais velhos do início da década enfeitando minha prateleira de memórias. Camila, minha amiga, esteve hospitalizada por um tempo. Um tempo. Um tempo que não se acaba. Porque Camila não pode se despedir. Camila se foi, como a ambulância que desesperadamente cruzou a rua. Camila se foi, junto a toda aquela esperança: é a década do amor! 

Permanece ecoando na rua esse barulho-cor de desespero. Maldita ambulância, me fez lembrar da vida. Seu grito é uma denúncia: há muita plasticidade no olhar.  

Olho que sente coração que vê. As luzes vermelhas colorem a rua, contrastam os pingos de chuva que caem. Que paradoxo: lá dentro, uma vida luta pra ser. Aqui fora, todas essas vidas prosseguem sem nisso pensar.  Matéria para o jornal.  

Vejo da minha janela toda a falta do que falar. 

A ambulância acusa-nos com sua ensurdecedora buzina de mascarados. Como me defender?  A verdade é sempre incomunicável.   

São cinco da manhã e das janelas vejo uma cidade atordoada pelo terror.  

Não poder ver o que me ataca. Sentir tanto ao passo que sentir nada. 

Ontem à tarde, eu comi o mundo. Devorei-o com a fome dos justos. Hoje de manhã, me senti indisposto. Sim, vomitei o mundo: não se pode devorar o que te devora. 

Do medo, o caminho não é a fuga. Para o medo, o caminho é a esperança.  

A mesma esperança que Julinho, marido de Camila, passa seu café agarrado a suas melhores lembranças. Esperança não é ausência de medo, a esperança é uma escolha. A escolha de caminhar. O medo é a opção por se paralisar. No medo, a esperança faz andar. No dilúvio, a esperança ensina a nadar. 

Afogado por tantos medos, tornei-me surfista de mim mesmo. Tiro onda nas esquinas do desespero e nas encruzilhadas da solidão. Solidão: Julinho me disse que a gente tem sente a gente mesmo. 

Sinto falta dos abraços quentes que alegravam meus invernos. Dos amigos bebericando as garrafas de vinho vazias. Sinto falta de sentir o cheiro do bolo na esquina de tua casa. Daquela gente toda suada correndo na praia. Sinto falta da vida como ela era. 

E continuo acreditando que a vida possa ser de novo. A vida. Um dia. Ser de novo. A vida. Sei que ela será, não a mesma, porque depois do incêndio, a floresta renasce mais forte e mais brilhosa, é certo. 

Por ora, fecho os olhos e me deito sob a esperança que me consola. Sob a luz da lua que quadriculada vejo dessa minha janela apertada, suspiro ares de alegria. A alegria é prima da esperança, me contou certo dia aquela minha tia. 

E, por isso, criança, te digo: espera-te em esperança! Tome a vida nas mãos! 
 

Adeus, meu querido tio 

Eu vou voltar. Não se preocupem, eu vou voltar. Disse meu tio após pedir para ser intubado. Eu estou muito cansado, vai ser melhor. Ele nunca mais voltou. Nunca mais. Nunca. Promessa não cumprida. Promessas. Ele nunca mais voltou. Não tem métrica. Não tem rima. E nem mesmo estrutura. Eu escrevo para me salvar. Das memórias. Da dor. De mim mesmo. A poesia da vida real corta feito caco de vidro.  

Cacos da vida despedaçada. Cacos de um futuro implodido pela iminência catastrófica. 

É difícil ver poesia na vida desencantada. Nos corpos enterrados. Nas esquinas lotadas. Nas máscaras abaixadas. Nos remédios vendidos. Nas festas clandestinas e em toda essa gente low profile.  

É difícil ver poesia nos corpos que se amontoam a espera de seu momento final. Corpo-adubo do futuro. 

Corpo-porvir. Vir a ser de memórias, dor e silencio. Corpo-amanhã. Corpo-fronteira.  

Corpos-sementes. Sementes de um futuro melhor. Será?  

Café derramado na mesa sob o livro de fotografais velho que carrego para não me afogar em mim mesmo.  

Corpos possíveis. 

Ao menos na guerra se pode ouvir as bombas.  

Mas eu ouço com minha intuição, que na vida se chama inteligência: há poesia depois da poesia.  

Há possibilidades depois do impossível. 

Pego meu par de óculos na gaveta da escrivaninha e ajusto minhas lentes. Não quero não ver. Não quero fugir. Quero traçar linhas de fuga, enxergar futuros possíveis. Reencontrar-me com as memórias.  

Não cabe uma vida em um número. Corpo-número. Estatísticas da destruição.  

A vida é inapreensível. Hermética. Incalculável. É estranha. 

Não tem rima. Não tem estrutura. Nem métrica. Assim como é a vida. Esse amontoado de palavras é como faca que me corta na minha ligação primeira. É difícil ver poesia depois da poesia. Mas há. Basta aprender a ver. 

Assim como o escuro não é a ausência da luz, a dor não é a ausência da alegria: alegrai-vos.
 

Luto 

Me disseram que viver é fazer o luto. 

Quanto mais se vive, mais se aproxima da morte. 

A gente se prepara para o luto no minuto que nos aproxima. 

Mas eu corro atrás da vida, que é para morte não me pegar.  

Passo meu café, e na sala me sento no chão, com os pés fincados na vontade de aqui continuar.  

Maria, minha prima, fez seu luto na luta pelo luto que lhe foi tirado. 

Não pode se despedir de sua mãe, a pobrezinha 

Enterrada com caixão fechado e tudo mais. 

Desse luto, uma luta se fez. A luta de fazer ver  

No luto da luta, Maria me deu luz.  

A gente tem falado muito de luto, talvez porque estamos na espreita da morte 

Mortificados, assistimos com medo sem nada fazer. 

Mas em casa, quietinho, e distante  

Faço dessa minha solidão homenagem aos tantos que se foram 

E aos outros tantões que ficaram.  

Com máscara bem ajeitada, e álcool nas mãos, faço da luta do luto de Maria minha própria missão. 

Com tantos enlutados, não se preocupar com o luto é privilégio 

Mas daqui de casa faço da minha vida um tributo ao luto de tantos 

A luta de todos esses lutos é a luta da nação 

De todas essas pessoas, o que ficou foi motivação 

Para fazer diferente, para ser consciente  

Se não pelos que aqui estão, ao menos pelos que foram  

Fazer da luta do luto a luta de uma nação 

Mas eu corro atrás da vida, que é para morte não me pegar  

Aos que se foram, lhes prometo meu compromisso com um país que de vocês não esquecerá  

Seguirei correndo atrás da vida, para a morte não me alcançar. 


Sobre o autor 

Meu nome é Wagner, sou estudante de doutorado, ator e escritor. Minha história com a literatura se confunde com a história da minha própria vida. Comecei a escrever para me salvar de mim mesmo e da vida que se apresentava, ainda na infância, dura. Fugindo de psicólogos e dos divãs, encontrei na arte da palavra a possibilidade de existir entre o espaço-tempo da compreensão.

A literatura sempre foi minha medicina. Nos palcos, fui testando um montão de jeitos de ser no mundo e de criar mundos para poder ser. Na literatura, encontrei formas de me fazer palavra. Palavra: o início final da vida. Nomear as coisas é, de certo modo, preparar o solo. Gosto de pensar na escrita como um pedaço de chão, que cuidadosamente preparo para que eu possa plantar. 

Plantação familiar, coisa pouca, mas que dá sustento. Faz viver. A literatura me faz viver. É só quando me perco por entre as linhas brancas que gritam por narrativas ou suplicam solidão que consigo caminhar em direção a mim mesmo. A literatura sempre foi meu modo de me fazer presente na ausência dos minutos. Escolhi seguir carreira acadêmica, no doutorado em Antropologia, na medida em que escrever sobre a vida e os problemas sociais é a outra parte da literatura que me interessa. A realidade da vida que, de tão dura, parece fantasia. 
 

Habitar Palavras - Biblioteca Sesc Birigui

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