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Por que a criança pequena se interessa tanto por uma caixa de papelão vazia? 

Por Ana Luiza  Gallo, educadora do Espaço de Brincar  do Sesc Santo André 

Caixa de papelão vazia, pote de plástico, tampinhas coloridas... Quando eu era criança, o papel de embrulho dos presentes que eu ganhava era tão mágico e interessante quanto o presente em si. A fita de cetim que enfeitava o embrulho poderia ser mil coisas: uma cobra, um cinto para a roupa da boneca, um enfeite para o meu cabelo, uma atadura para amarrar na patinha do bichinho de pelúcia que ficou dodói... Eram infinitas as suas possibilidades criativas. E, se eu cansasse da fita e a largasse num canto, no dia seguinte ia olhar pra ela de outro jeito e inventar outras coisas!  

Minha avó não se conformava: “ela tem tanto brinquedo, mas está brincando com a caixinha da pasta de dente!”. Sim, minhas bonecas tinham casas super legais compradas nas lojas, mas eu fazia questão de esvaziar uma gaveta para montar lá dentro daquele quadrado  um “quarto” com caixinhas vazias, rolo de papel higiênico vazio, tampinhas, palitos (como se fosse um projeto arquitetônico). Eu fechava a gaveta... E quando abria tinha que tirar tudo de lá e montar o quarto de outro jeito, com os “móveis” em outra disposição. Depois, tentava colocar uma cama de casal ao invés da de solteiro (duas caixas de pasta de dente juntas) para ver se cabia... Puxa, não coube! Pra caber na gaveta vou ter que inventar um outro armário – e lá ia eu pela casa atrás de outra caixinha vazia. Enquanto isso, os móveis cor-de-rosa da casinha de bonecas super deslumbrante estavam ali, noutro canto, parados, esperando pra serem brincados num outro momento.  

Meu irmão uma vez ganhou um avião que andava sozinho, acendia luzes e fazia barulhos, fazia movimentos engraçados com as asas, de tempos em tempos abria automaticamente a portinha para entrada dos passageiros. E fechava a portinha, lentamente. De fato só faltava voar com a energia “mágica” daquele par de pilhas que meu pai colocava dentro daquele buraquinho. Duas semanas depois o avião sensacional espetacular estava ali, num canto, esquecido, e meu pai não se conformava que um brinquedo caro estava sendo menos brincado do que aquele outro brinquedinho de um real que ele trouxe da padaria porque a moça do caixa não tinha troco.  

Sabe o que é?! Hoje, já adulta, eu digo pra você, adulto, o mistério desse enigma: é que aquele avião era um brinquedo que se brincava sozinho. Era pomposo, impressionava... Mas depois de algumas vezes brincando com aquilo meu irmão cansava e ia brincar de voar de outro jeito, com outras coisas – ou apenas com o próprio corpo, uai, por que não?! Se tivesse vento, então, bastava sentir aquele movimento na sua pele e imaginar. Os móveis da minha casa de boneca eram de plástico firme, suntuosos, cheios de detalhezinhos e formas bonitas... Mas eles já vieram prontos. Eu não precisava brincar de fazê-los, era só colocar a boneca em cima deles e pronto, estava resolvida a questão. A caixinha de papel vazia que eu colocava dentro da gaveta poderia ser o que eu quisesse! E dali a cinco minutos poderia ser outra coisa. E depois poderia sair da gaveta e não ser mais um móvel do quarto que eu estava inventando (imaginando), dava pra inventar uma NOVA coisa com aquilo – talvez uma asa de avião pra brincar com o meu irmão, se juntasse com aquela garrafa vazia dava uma asa certinho. O sofá da casa de bonecas... Era um sofá da casa de bonecas. Acabou, encerrado o assunto! Preste atenção no enredo dessa história: o sofá é um sofá.

Essas caixas vazias, tampinhas etc. nós, educadoras, chamamos de material não estruturado. Também conhecido como  material de largo alcance. As suas possibilidades criativas são infinitas! Basta olhar o objeto de outro ângulo ou segurar de outra maneira e ele já propõe em si mesmo uma outra coisa, um outro movimento, um outro significado. Propõe um novo enredo de uma história mágica. E, afinal, a brincadeira está no brinquedo ou está na pessoa que brinca?   

Teve um tempo em que a minha escola pedia pra eu levar as tais “sucatas” pra que elas não virassem lixo e pudessem ser brinquedos ou coisas legais. O material não estruturado pode ser a sucata também, mas vai mais além: no Espaço de Brincar do Sesc Santo André a gente sempre oferecia uma coleção de tecidos dentro de um baú azul. Tecidos! Apenas tecidos. Um é de cetim, brilha... Outro é de algodão, pesado... Outro parece um elástico que estica. Um é macio, o outro é áspero, um tem estampa de flores e o outro é azul e enorme, então pode ser o mar. O amarelo voa fácil, então posso amarrar no pescoço e daí vou ser um rei poderoso com um manto enorme! Dá movimento com o meu corpo quando eu corro... Eu pareço gigante! Aquele retalho pequenininho cabe dentro da casinha de bonecas de madeira, pode ser uma toalha de mesa. Não, hoje eu preciso mais de um tapete... Não! Hoje é a FESTA da rua e esse paninho vai enfeitar o telhado da casa!!!   

Se abrir uma gaveta da cozinha da sua casa, você vai achar coisas suficientes para criar uma história inteira (ou várias). Para bebês, esse tipo de experiência ensina mais sobre a vida do que aquele brinquedo pomposo que faz tudo sozinho e que nem precisa de “ajuda” da imaginação (ou do gesto e do movimento do corpo da criança) pra ser legal. Os significados que a gente pode inventar para um pedaço de tecido são muitos, não acabam nunca! A imaginação não para de brincar coisas com aquilo. Mas aquele sofá cor de rosa TÃO lindo... É um sofá. Se eu virar ele de cabeça pra baixo vai ser um sofá invertido. O brinquedo que se brinca sozinho perde a vida muito rápido.  

Eu convido você a escolher um objeto da sua casa e tentar transformar ele em outra coisa. Ouvir o barulho que uma colher faz ao bater numa panela vazia e perceber se é igual ao barulho que faz quando a panela está cheia. Virar as coisas da sua casa de cabeça pra baixo pra ver o que parecem. Tatear alguma coisa com os olhos fechados pra sentir se é gelado, se pesa, se é liso ou se tem um buraco. Convido a olhar pra cima na hora do banho e imaginar uma chuva caindo daquela coisa - que de repente já nem se chama mais chuveiro! Eu convido você, adulto e adulta, a brincar com material não estruturado – e vale lembrar que pode ter uma criança junto... Ou não! Adultes também têm o direito de brincar, de colocar vida nas coisas mais absurdas. E renovar essa vida quando tudo estiver chato.

Este texto foi escrito para a Semana Mundial do Brincar 2021, cujo tema foi: Casinhas das Infâncias
(participação do Sesc-SP na iniciativa da Aliança pela Infância)

 

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