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Ficção Inédita
Ritual

Heloisa Seixas

Sabia que era perigoso. Caminhar sozinha numa cidade assim, desconhecida, e ainda por cima num país árabe, sendo ela uma mulher, uma estrangeira, era um desafio ao imponderável, um sorriso de escárnio diante da sorte - mas não pudera evitar. Saíra, simplesmente. Num impulso.
Deixara o hotel bem cedo sem dizer aonde ia, sem deixar qualquer mensagem para os companheiros de excursão, sem esperar por ninguém e muito menos pelo guia que os levaria para o primeiro passeio pela cidade. Talvez - agora pensava - tivesse sido tudo premeditado. Na noite anterior, quando vinham do aeroporto, ela já falara de cansaço, mostrando uma indisposição que não sentia, talvez preparando o terreno, de forma ainda inconsciente. Para que, de manhã cedo, reunidos no saguão para o passeio, os outros não estranhassem sua ausência. Ela ontem parecia indisposta, diriam. Com certeza decidiu dormir até mais tarde e, por isso, não está atendendo ao telefone.
Riu alto ao pensar nisso, chamando a atenção de duas mulheres de xador que passavam por ela na calçada. Atravessou correndo a avenida larga diante do hotel. Os carros, alguns muito antigos, passavam feito loucos, cortando-se uns aos outros, como numa cena de perseguição no cinema. Não havia faixa de pedestres naquela esquina. Assim que se viu do outro lado, a mulher olhou para trás. Observou a fachada ocre do hotel, o toldo que abrigava os hóspedes da chuva e do sol, a bela porta de vidro e metal trabalhado. Ali estavam a segurança, o conforto, a previsibilidade. Virou-se e seguiu em frente, afastando-se.
Andou pela calçada estreita sem prestar muita atenção aos prédios e casas que se erguiam de um e outro lado da rua, como se fizesse questão de esquecer o caminho. Perder-se numa cidade estranha era uma velha urgência que a acometia, sempre. Uma compulsão. Precisava daquela sensação de resvalar através de uma fronteira, de tocar um território desconhecido, talvez inóspito. Se possível, inóspito. Seu coração batia num ritmo sensual, as mãos suadas agarrando-se à bolsa, o medo pinçando-lhe o estômago, poderoso afrodisíaco. Era como fazer amor com um desconhecido.
A rua por onde caminhava, embora não tão larga quanto a avenida do hotel, parecia ser uma artéria importante, por onde passavam mais carros do que pedestres. Não era o que queria. Precisava embrenhar-se por ruas menores, esbarrar nas pessoas, sentir nas pernas o roçar de suas vestes ao cruzar por elas, perceber-lhes o hálito, o cheiro de suor.
Já trazia as faces vermelhas e a respiração alterada quando parou de repente, atraída pelo aspecto de uma rua transversal à sua direita, sinuosa e escura. E entrou nela, o coração batendo como nunca.
Olhou para cima, ouvindo o ruído dos próprios passos no chão de pedra. As construções quase se fechavam acima de sua cabeça, tal a estreiteza da rua. Sorriu, com um arrepio, ao pensar que as paredes pareciam debruçar-se à sua passagem, para vigiar-lhe os passos. Como se elas, as paredes, soubessem que ali estava uma intrusa.
Adiante, a rua era cortada por outra, igualmente estreita. A mulher enveredou por ela. Tampouco ali havia alguém à vista. Alguns metros à frente, um gato rajado surgiu e desapareceu por um portal, único sinal de vida no emaranhado de becos escuros. Mas ela foi em frente, sem qualquer temor.
Só depois de vários minutos de caminhada foi que ouviu um murmúrio, ao longe. E, curiosa, caminhou na direção dele. Num bairro assim, sombrio e cortado de ruelas tão estreitas, devia haver, em algum lugar, uma praça. E nela, com certeza, estaria concentrada toda a atividade humana.
Aos poucos, foi percebendo que o murmúrio aumentava. E, embora ainda não avistasse ninguém na ruela em curva que agora trilhava, sentiu no ar a presença de um cheiro novo. Respirou fundo. Era um aroma forte, encorpado, que misturava iguarias e urina, cujo rastro, se seguido, daria por certo em alguma feira ou mercado ao ar livre.
Não se enganou. Em poucos segundos, desembocou na praça.
Parou, encostando-se a uma parede de esquina, as narinas dilatadas, os olhos lacrimejando. Passou a mão no rosto, piscou. Em contraste com a penumbra dos becos por onde caminhara, o espaço aberto feria com uma luz agressiva, quase irreal. Sentiu-se um pouco zonza. Mas não só por causa da luz. O cheiro, ou a mistura deles, era agora quase palpável de tão forte. A atmosfera estava impregnada de pimenta e açafrão, de suor de animais e homens, do cheiro acre do cobre, de tecidos e tapetes empoeirados. E havia também o odor abafado das mulheres, sob cujos véus escuros parecia palpitar uma vida secreta - proibida.
Ficou por um instante assim, encostada à parede, os olhos fechados. Agora prestava atenção também aos ruídos, ao clamor que se erguia da praça, algaravia incompreensível e hipnótica. Sorriu. Vão achar que sou louca, pensou. Mas é mentira. Disseram isso um dia, mas é mentira.
Com os olhos bem apertados, para que a claridade feroz da praça não penetrasse por entre seus cílios, concentrou-se nos sons e nos cheiros. Mais nos sons do que nos cheiros. Até porque, em meio ao burburinho dos mercadores e fregueses da feira, surgia agora alguma coisa nova, deslocada, um ruído surpreendente. Apurou os ouvidos. Prestou atenção.
Não havia dúvida. À sua direita, crescia um som agudo, coletivo. Levou algum tempo até conseguir identificá-lo vagamente, ou ao menos encontrar uma comparação no qual se encaixasse. Era como se dezenas de índios de cinema se aproximassem batendo a mão na boca em movimentos rápidos, prontos para o ataque. A imagem a fez rir, mais uma vez. Mas o som persistia, cada vez mais claro. E ela, sem poder mais resistir à curiosidade, abriu os olhos.
De um dos lados da praça, localizou a fonte do ruído. Parecia uma procissão. A mulher descolou-se da parede e deu alguns passos à frente, tentando ver melhor. Notou que as pessoas à sua volta faziam o mesmo e que o rumor dos mercadores baixava. A praça parecia preparar-se para receber em silêncio o estranho cortejo.
À frente, montado num cavalo ricamente enfeitado de borlas e pingentes coloridos, estava uma criança. Um menino. Vestia uma roupa de seda bordada, com pedrinhas que reluziam ao sol. Seus cabelos, escuros e lisos, estavam colados à cabeça e também brilhavam, com um tom avermelhado, como se tivessem sido banhados em hena. Em torno do menino, vinham, a pé, dezenas de pessoas, homens e mulheres, também em trajes de festa. Era da boca das mulheres - só das mulheres - que saía o estranho som de batalha, agora reinando único, ante o silêncio da praça. As mulheres estalavam as línguas contra a boca num movimento incessante, fazendo vibrar o som agudo emitido na garganta. Era inquietante ver aquelas línguas movendo-se febris, as pontas vermelhas como pequenas cobras que aflorassem dos lábios pintados de carmim escuro.
Mas a procissão não terminava aí. Atrás do primeiro grupo, vinha outro, depois mais outro e muitos mais, cada um se fechando em torno de uma criança montada num animal, com as mulheres sempre emitindo aquele estranho som tribal. Apenas a riqueza das roupas e o porte do animal variavam, provavelmente de acordo com as posses da família. Havia meninos montados em belos cavalos de raça, com seu pêlo reluzente e o andar compassado. Já outros iam em cima de burricos que mal sustentavam seu peso.
Mas eram muitos os detalhes comuns a todas as crianças. Não havia meninas, só meninos. Todos pareciam ser mais ou menos da mesma idade e estavam vestidos, se não com luxo, pelo menos com capricho. Traziam os cabelos emplastrados de hena e todos - este último detalhe a mulher observou agudamente - tinham o olhar perdido, vazio, como se estivessem sedados ou bêbados.
Hashish, disse uma voz atrás dela. A mulher virou-se. Um rapaz louro, de faces afogueadas e olhos de um azul transparente, conversava com um amigo na calçada. Haxixe? A mulher aproximou-se do estrangeiro e, em inglês, perguntou-lhe se sabia o que era tudo aquilo. Uma cerimônia coletiva de circuncisão, ele explicou. E as crianças tinham o olhar estranho porque, antes do ritual, eram sedadas com chá de haxixe para não sentirem dor.
A mulher agradeceu com um sorriso polido. E afastou-se. Para não sentirem dor, murmurou.
Deu outra vez uns passos à frente. No cortejo, aproximava-se agora um menino montado numa espécie de pônei, cujas patas pisavam o chão de pedra com enorme insegurança. Era um rapaz franzino e sua roupa, feita de tiras de algodão colorido, apesar de muito engomada, tinha costuras que revelavam já ter sido usada muitas vezes, quem sabe por irmãos mais velhos, em rituais anteriores. Mas, apesar de seu aspecto pobre, o menino tinha um porte altivo e um olhar ainda mais incendiado que os demais, como se delirasse.
Os olhos da mulher se fixaram nele. À medida que se aproximava, balançando sobre o cavalo de andar incerto, ela o observava cada vez com mais atenção, em concentração máxima, fascinada sobretudo por aqueles olhos absurdos, saltados, de córneas ressecadas, estriadas de veias. Era impossível dizer que cor teriam. Toda a íris fora contaminada pela pupila, que se tinha expandido como um tumor, ou uma galáxia. Presa na observação da criança, a mulher percebia seus próprios olhos se dilatando também e quase podia sentir a pupila que se abria em pequenos saltos. Sua cabeça agora girava, assim como as pessoas em volta, assim como a própria praça, com suas cores, seus cheiros e estranhezas. O único ponto fixo eram seus olhos, ancorados nos olhos do menino, enquanto em torno o estalar das línguas das mulheres crescia, tornava-se feroz, reverberando em estilhaços metálicos, que rodopiavam no ar, junto com tudo o mais.
Até que, de repente, alguma coisa se deslocou.
A princípio, a mulher não entendeu o que era. Lentamente, o menino virava a cabeça em sua direção, como se farejasse, como se a pressentisse. Durante um tempo desmesurado, seus olhos se moveram, caminhando para ela - até que a encontraram.
E, então, o menino sorriu.
Ela recebeu o sorriso como um golpe. Compreendeu.
Em sua alucinação, ele a reconhecera. Olhava-a com a certeza de que ali estava sua igual. Sabia - como só os loucos sabem - que a mulher havia transposto uma fronteira. Talvez sem volta.

Heloisa Seixas é autora dos livros Pente de Vênus e Através do Vidro (Editora Record), entre outros