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Teatro
Construções cênicas
O diretor italiano Roberto Bacci, coordenador do Centro de Experimentação e Pesquisa Teatral de Pontedera, em oficina de dramaturgia no Sesc Araraquara, falou do seu particular processo de criação
Para mim, o teatro tem uma importância muito particular e se continuo trabalhando nele depois de trinta tantos anos é porque se trata de uma experiência de conhecimento e, principalmente, de autoconhecimento. Além de permitir o relacionamento com outras pessoas, o teatro é uma atividade à qual se pode aplicar uma autodisciplina. Nesse mundo, a ética e a disciplina são coisas muito aleatórias. A Itália e o Brasil não são diferentes quando se fala de sociedades nas quais se diz que estamos no máximo possível da comunicação; na realidade, essa comunicação se dá através da tela da TV, do computador e do cinema. Uma comunicação sem profundidade, sem presença e sem corpo, que nos deixa substancialmente sozinhos.
O teatro pode jogar luz na realidade. Dependendo de como é construído - o processo que utilizamos para fazê-lo - ele pode ser uma experiência que permite colocar perguntas concretas a nós mesmos. O espetáculo torna-se a construção de uma espécie de armadilha ao capturar o sentido. Uma armadilha que deve ter duas características fundamentais: ser invisível, para poder capturar o animal; e perfeita, para que funcione. Acredito que um espetáculo tem de ter, ele também, essas duas características. Não se deve ver sua construção e ele tem de funcionar em todos os seus detalhes da maneira mais adequada possível. De um modo que permita escorrer uma energia que, vibrando, chegue até os espectador. De maneira diferente a cada um deles. Os espetáculos que produzimos, por exemplo, não se destinam a um grande número de espectadores. Cada espectador deve ter uma pergunta diferente ao final de um espetáculo. Assim como, para mim, um espetáculo é uma pergunta pessoal. Levamos muito tempo para construir um espetáculo, no mínimo quatro meses de trabalho. Não partimos da mise-en-scène de um texto, mas de toda a construção da identidade de um espetáculo. Pode-se partir de um romance, como no caso do nosso último espetáculo (Ciò Che Resta, adaptação do romance A Montanha Mágica, de Thomas Mann e apresentado no Sesc Pompéia), pode-se partir de um tema ou, às vezes, até de um título que nos chame a atenção. Depois, inicia-se a construção de materiais e de ações num trabalho que todos os atores ajudam a criar. É um trabalho muito complexo e por isso exige uma relação muito forte entre os atores e o diretor. Dessa união surge uma quantidade muito grande de material que depois é usado, em parte, na construção de um espetáculo. O mesmo processo se reflete no espaço, que é construído lentamente, respondendo sempre, e cada vez mais precisamente, a questões como "onde estou" e "quem sou".
Outra coisa importante é a relação espacial com o espectador, uma relação diferente em cada espetáculo. Eis um exemplo que permite entender o quanto é particular esse processo de trabalho: uma vez fizemos um espetáculo chamado Irmãos dos Cães, que inclusive trouxemos ao Brasil. Esse espetáculo nasceu de uma frase tirada de um livro de Thomas Mann chamado História de Jacó. Era uma frase que estava na primeira página desse livro e que dizia "profundo é o poço do passado, insondável". Essa frase me remeteu a um lugar, um poço, que toda a humanidade sobe e desce. Como se toda a humanidade, de um certo ponto de vista e desde o início dos tempos, fosse como um único indivíduo. Uma espécie de poço sem fundo. Eu quis fazer um espetáculo partindo da imagem suscitada por essa frase no livro de Thomas Mann. Só havia um espaço que gerava todo o problema: o deserto. O próprio livro fala sempre em deserto e em grandes viagens através dele. Mas como criar um deserto no teatro? Naturalmente eu pensava muito na areia, só que areia no teatro é um verdadeiro desastre. É banal como imagem, se esparrama por todos os lados, é pesada etc. Posto isso, pensei que deveria criar uma imagem que tivesse o mesmo valor, não uma cenografia, mas uma coisa que fosse ligada à ação. Como sou filho de sapateiro e passei toda a minha juventude em meio a sapatos, havia na minha cabeça uma imagem de deserto ligada a sapatos. Além disso, na guerra entre Egito e Israel, me lembrei de uma imagem que vi na televisão: sapatos de soldados egípcios abandonados no deserto. Por outro lado, me lembrava das montanhas de sapatos nos campos de concentração nazistas. Associei todas essas imagens e cheguei à conclusão de que os sapatos são desertos de vida. Então, decidi encontrar um modo muito particular de criar um deserto de sapatos. Bem, escrevi uma carta e mandei para vários amigos meus espalhados pelo mundo e pedi a cada um deles que me mandassem um par de sapatos velhos e com a história desses sapatos. Ou mesmo textos e poesias que tivessem a ver com a história deles. Os sapatos começaram a chegar. Sapatos que haviam dado a volta ao mundo, sapatos usados somente um dia - talvez o dia do casamento -, um par de sapatos de Grotowsky, Eugênio Barba mandou-me um par de sapatos de cada um de seus filhos... Enfim, logo o teatro estava cheio de sapatos de todos os lugares. Cada vez que abríamos uma caixa, além do cheiro, nos deparávamos com textos e contos, alguns estranhíssimos, a respeito dos sapatos. Os atores começaram o processo de trabalho aprendendo como se limpa um par de sapatos. Pensando nos sapatos e nos atores fazendo esse trabalho de limpá-los, os atores começaram a dar vida a histórias que não existiam mais. O espaço do deserto começou, então, a se tornar uma ação. Os atores começaram a se tornar engraxates que limpam os sapatos de uma humanidade que não existe mais. Foi um trabalho longo, mas que oferecia múltiplas oportunidades que interessavam ainda mais aos atores. O deserto, os sapatos e a história que os ligava tornaram-se terreno fértil para outro espetáculo que não aparecia aos olhos do espectador. Mas, por outro lado, era muito interessante para nós que essa história permanecesse secreta.
Além desse, eu teria para contar dezenas de outros exemplos de processos de trabalho para se chegar a um espetáculo. Há sempre uma frase que costumo repetir aos atores: "para ir até onde não se sabe, há de se passar por onde não se conhece". Para isso é preciso ter disciplina, experiência e um grupo no qual há confiança recíproca. Quase sempre o espetáculo se constrói sozinho, mas é preciso saber como isso acontece. Grotowsky dizia que há dois tipos de diretores: os que compõem e os que vão à caça. Um não é melhor que o outro. Porém, o que tem de ser feito tem de ser bem feito.
Roberto Bacci esteve presente nas unidades Pompéia, São Carlos, Ribeirão Preto e Araraquara apresentando o espetáculo Ciò che resta