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De volta ao marco zero

Arquitetos, especialistas e autoridades apontam, em artigos exclusivos, alternativas para a recuperação da memória histórica e econômica do Centro de São Paulo

José Eduardo Cardozo é advogado, professor de direito da PUC-SP e presidente da Câmara Municipal de São Paulo
Embora um programa de revitalização das áreas centrais como o Reconstruir o Centro, elaborado pela atual administração da cidade, deva, necessariamente, prever uma série de medidas nos mais diversos setores - entre elas a organização do comércio ambulante (para o qual, por sinal, tramita na Câmara Municipal projeto de minha autoria), geração de empregos, reordenamento do transporte público, atendimento aos moradores de rua, limpeza pública, iluminação, segurança, remodelação de calçadas, turismo, recreação e cultura - gostaria de centrar fogo no problema da moradia. Não só porque se trata de um dos mais importantes na busca da melhoria da qualidade de vida da população e da própria cidadania, como também porque habitação é, em grande medida, a base de sustentação de um programa de recuperação das zonas centrais de nossa cidade.
Uma forte política habitacional, como revelam os estudos da Comissão de Habitação na Área Central de São Paulo, presidida pelo vereador Nabil Bonduki, é uma ferramenta capaz de reverter a prática urbana implantada na cidade desde o começo do século passado, de segregar e criar zonas social e funcionalmente separadas. Essa prática provocou, entre outros problemas, a excessiva necessidade de deslocamento casa-trabalho, pois o Centro, apesar do processo de deterioração agravado particularmente a partir da década de 1980, continua a ser uma região altamente polarizadora de empregos - é responsável por 600 mil empregos, ou seja, um em cada três em serviços e um em cada cinco no comércio - enquanto grande parte de sua população teve de se deslocar para a periferia, onde a "cultura" dos órgãos promotores de habitação preferiu implantar unidades habitacionais - entre 1980 e 2000, a área central perdeu cerca de 230 mil habitantes.
Hoje, ao contrário, a solução da questão habitacional não é vista mais como a simples produção de unidades, mas amplia-se o conceito de que produzir habitação é produzir cidade e é nests perspectiva que se insere o problema habitacional no Centro de São Paulo. Viabilizar moradia digna nas áreas centrais não é simplesmente responder à reivindicação justa dos movimentos de moradia e da população de baixa renda dos cortiços, mas tornar efetiva uma proposta para a cidade que reduza as desigualdades urbanas e a segregação social. Na verdade, a aplicação dessa política nas zonas centrais, habitualmente mais dotadas de infra-estrutura urbana, acaba trazendo benefícios para toda a cidade porque, além de prescindir da necessidade de expansão da infra-estrutura, contribui para a preservação das áreas de proteção ambiental e reduz a demanda de transporte.
De fato, como mostram os estudos da Comissão de Habitação na Área Central (da Câmara Municipal) e as ações dos movimentos de moradia, a implantação de uma política habitacional no Centro não é um bicho-de-sete-cabeças. Há recursos - somente a Caixa Econômica Federal dispõe no PAR (Programa de Arrendamento Residencial) de verba de 800 milhões de reais para serem gastos em dois anos, de preferência na área central. Há um parque imobiliário significativo: além de cerca de duzentos prédios altos vazios, já foram identificados terrenos públicos e privados, vazios ou subocupados. Há uma população carente de habitação digna. O que falta é uma articulação maior entre as esferas do governo para garantir o acesso aos imóveis subutilizados, subsídio para a população de baixa renda, além de mudanças na legislação destinadas a agilizar e baratear a produção habitacional. É aqui que o novo plano diretor da cidade, cujo projeto a prefeita Marta Suplicy deve enviar em breve à Câmara, terá papel fundamental para enfrentar o desafio de recuperar o Centro sem exclusão social; bem ao contrário: na defesa de maior qualidade de vida e da plena cidadania para toda a população.


Helena Menna Barreto Silva é urbanista e vice-presidente da Comissão Procentro
Embora presente em alguns discursos, a preocupação com a habitação esteve ausente das iniciativas de reabilitação do Centro até o ano passado. O plano Reconstruir o Centro, apresentado pela prefeitura em maio deste ano, dá um destaque especial ao programa Morar no Centro, considerado essencial para viabilizar um processo que também garanta a inclusão social.
O aumento de moradores será fundamental para garantir a diversidade de funções (lazer, comércio, indústria, cultura, residências) que tem sido a marca do Centro desde o início do século passado. Ele permitirá que a região volte a ser freqüentada também durante a noite, otimizando a infra-estrutura instalada. Trazer a população de volta para o Centro é hoje essencial também para o desenvolvimento equilibrado da metrópole, sendo a melhor forma de combater a expansão sobre áreas sem transporte, sem infra-estrutura ou de proteção ambiental.
Uma das causas do esvaziamento dos bairros centrais é a deterioração dos espaços públicos, cuja recuperação está prevista no plano. Por outro lado, além do descaso das administrações municipais anteriores, muitas ruas deixam a nu um quadro que resulta da situação econômica do país: desemprego, crianças e jovens sem alternativas de estudo ou lazer, moradores de rua que vão para o Centro porque nesse local são mais visíveis e estão mais próximos das suas soluções de sobrevivência. Para resolver isso são necessárias políticas sociais, incluindo a de habitação.
Para atrair novos moradores e melhorar a qualidade de vida dos que já moram no centro, é preciso oferecer novas unidades adequadas à capacidade de pagamento de quem quer ou precisa morar no Centro. Um programa de locação social está sendo montado pela prefeitura para atender pessoas em situação de rua, com renda muito baixa e idosos. Existem importantes recursos para a habitação popular da CDHU/BID e da Caixa Econômica Federal, especialmente por meio do PAR (Programa de Arrendamento Residencial). Com outras linhas disponíveis, o mercado privado atenderá também a outras faixas de renda, garantindo a necessária diversidade social no centro.
Ao município cabe a responsabilidade de rever as legislações urbanística e edilícia, buscando reduzir o custo de empreendimentos públicos e privados. As operações urbanas e os projetos de intervenção deverão ser examinados com a preocupação de criar oportunidades mais claras para os projetos habitacionais e reduzir os impactos negativos sobre a moradia dos mais pobres. Caso contrário, não apenas a valorização imobiliária decorrente dos investimentos públicos e privados tornará impossível fazer uma habitação social, como o processo de expulsão dos moradores de cortiços e moradias alugadas irá se acentuar, agravando o problema das favelas e dos moradores de rua.
Será importante que venham morar no Centro as pessoas que trabalham na região, porque muito tempo e despesas de transporte seriam poupados. Além disso, é importante atrair as pessoas que apreciem o que o Centro tem de diferente dos outros bairros da cidade: a diversidade social e de usos, a relação mais próxima e aberta entre o espaço público e os apartamentos. Os investimentos em produção ou melhoria habitacional poderão contribuir para a manutenção do patrimônio arquitetônico, tombado ou não, que hoje está sendo degradado ou demolido. A presença da população moradora permitirá zelar melhor pelos espaços públicos e pelos equipamentos, dando sustentabilidade às ações de reabilitação.

Horacio Calligaris Galvanese é arquiteto e diretor de desenvolvimento da Emurb (Empresa Municipal de Urbanização)
Está longe de ser exclusividade nossa a preocupação com os destinos dos centros de cidades. Recuperar, requalificar, redinamizar e reurbanizar são conceitos utilizados em um sem-número de cidades no mundo todo e significam, de um modo geral, dar novamente ao Centro uma vida e uma dinâmica que o tempo se encarregou de esvair.
Certamente, as características e o porte de cada cidade conferem níveis distintos de atividade urbana em seus centros, e a necessidade de neles intervir está na medida de um sentimento social de que é chegado o momento de recuperá-lo.
São Paulo vem vivendo esse momento e caminha a passos mais apressados no sentido de produzir fatos que apontem para uma recuperação da área central. De ações inicialmente pontuais, públicas ou privadas, atualmente já se busca integrá-las por meio de intervenções urbanas renovadoras e exemplares e de políticas articuladas. Até porque processos de requalificação do Centro não comportam condução única ou isolada. Têm de ser fruto de sinergia, de um desejo coletivo de recuperação de sua referência histórica maior. Para tanto, convém identificar ações que contenham dimensão estruturadora do processo de recuperação do centro. Eis algumas delas:
Espaços públicos - São Paulo vive uma crise do espaço público. Valorizamos mais os espaços privados do que os públicos, sempre reduzidos, mal cuidados, inseguros e cada vez mais apropriados por atividades de caráter privado, sejam formais ou informais. O resgate do conceito de espaço público como ambiente de sociabilidade e de integração social, qualificado, amplo, iluminado e seguro, é um elemento-chave na construção da cidadania e na recuperação da auto-estima da população. No centro, deve-se buscar a constituição de uma malha de espaços públicos qualificados, que articulem outras ações integradas de revitalização.
Segurança e mix de usos - Mais do que estatísticas de violência, o Centro vive uma sensação de insegurança. Políticas integradas de segurança que reduzam essa sensação são essenciais porque atraem a freqüência de novos usuários. Atualmente associa-se povoamento e ocupação plena do espaço urbano a melhores indicadores de segurança. No Centro, o fluxo frenético de pessoas durante o dia cede, à noite, ao completo vazio. O estímulo ao uso residencial acessível aos diversos níveis sociais e a atração de atividades de ensino, hotelaria, cultura, lazer e entretenimento estruturam uma lógica que além de intensificar a dinâmica urbana reduz a insegurança. No campo da cultura, já há ações importantes como a Sala São Paulo, a Pinacoteca e, mais recentemente, o Centro Cultural Banco do Brasil. Também a anunciada implantação do Sesc na 24 de Maio deve constituir-se uma importante âncora para o Centro Novo.
Investimento público - O papel da intervenção pública em processos de revitalização urbana é essencial, pois sinaliza uma vontade política e acena aos outros atores sociais que o poder público cumpre a sua parte, satisfazendo um desejo socialmente manifestado. O plano Reconstruir o Centro, conduzido pela Regional da Sé, constitui um primeiro esforço. Além das já realizadas Sala São Paulo e Pinacoteca, há outras ações importantes em desenvolvimento e previstas, como a reforma da Estação da Luz e a implantação do Corredor Mário de Andrade na praça Dom José Gaspar à praça do Patriarca. Há também o Projeto Monumenta, que envolve os diferentes níveis de poder público e a iniciativa privada e que tem na região da Luz sua área de intervenção. Há ainda a Operação Urbana Centro, que permite a recuperação de imóveis tombados pelo patrimônio histórico, localizados na área central. Através desse instrumento pretende-se restaurar alguns edifícios públicos como estímulo sinérgico à requalificação do Centro.
Conforme a lógica do planejamento estratégico de cidades, "o futuro não se explica unicamente pelo passado, mas também pela imagem de futuro que se imprime no presente" (Michel Dodet). Assim pensando e com a imagem que se vai construindo do futuro do Centro de São Paulo, parece que o seu porvir é bastante promissor.


Decio Tozzi é arquiteto
A história da evolução urbana de São Paulo apresenta um processo singular de formação de áreas centrais de comércio, serviços e lazer. É o fenômeno definido como processo de "saltação do centro".
A escolha do sítio da cidade determinada pela sabedoria jesuítica desenvolveu a ocupação inicial do Centro na banda leste do vale do Anhangabaú, constituindo o tradicional triângulo histórico.
Com o advento do ciclo cafeeiro e a expansão do tecido urbano para o oeste, com a implantação dos bairros residenciais de Campos Elísios, Higienópolis, e para o sul, onde se desenvolvia o bairro da Bela Vista até o espigão da Paulista, a área central saltou o vale e configurou outro "centro" em torno da praça da República, antigo largo dos Curros, esboçando um fenômeno de binucleação urbana expresso na relação crescente entre o Centro Velho e Centro Novo.
A transposição física do vale, que era feita inicialmente pelas pinguelas nos caminhos entre as antigas chácaras, teve seu primeiro aumento de demanda atendido com a construção da ponte do Lorena e, posteriormente, com os viadutos Santa Ifigênia, do Chá e Maria Paula.
A cidade de São Paulo havia se expandido em torno desse centro caracterizando claramente o modelo urbanístico formulado pela Escola de Chicago, em que os bairros residenciais organizam-se em torno de um centro principal de negócios e serviços - CBD (Central Business District).
Essa era a configuração da cidade até a metade do século, período em que a industrialização e a substituição de importações propiciaram a formação de maior complexidade social onde os diversos estamentos sociais se distribuíam, alguns pelas áreas mais altas e outros por áreas de baixios e alagadiços.
Entretanto, a vida do paulistano era agradável nesse período provinciano que se estendeu até a década de 1950. Os moradores dos bairros residenciais, quando iam de bonde ou automóvel particular ao Centro, diziam: "Vamos à cidade". Eles iam freqüentar grandes magazines para compras, cinemas, teatros e casas de chá. O centro de negócios apresentava uma grande pujança, exibindo a expansão econômica de São Paulo.
Nos anos 1950, com o incremento do comércio no eixo da rua Augusta, iniciou-se o processo de um novo salto do Centro de São Paulo, transformando a antiga avenida Paulista dos casarões ecléticos em um pujante e animado centro de negócios e serviços verticalizado, o que inaugurou a nova imagem da cidade. Na década de 1960, com a inauguração do Shopping Iguatemi, configurou-se outro centro de negócios e serviços em São Paulo, o da avenida Faria Lima.
Enquanto historicamente esse processo de "saltação" do centro ocorria, acontecia a deterioração do centro tradicional, evidenciando todos os aspectos de degradação que até hoje se verifica.
No final da década de 1970, o Congresso de Vancouver lançou um manifesto pela recuperação dos centros históricos. Ao mesmo tempo, instalou-se em São Paulo um movimento de toda a sociedade pela recuperação do seu centro histórico.
Um simples olhar na história nos indica os caminhos e as diretrizes dessa operação de renovação, com ênfase à superposição de funções urbanas, em que habitação, comércio, serviços, produção, lazer e entretenimento formam um rico e ativo quadro de atividades urbanas e iniciativa privada com atividades intensas tanto de dia como de noite.
A higienização visual e arquitetônica visando a uma sinalização correta e à recuperação da exibição da bela arquitetura que se esconde atrás dos atuais painéis já está em curso e deve ser efetivada.
Incentivos de toda ordem certamente contribuirão para a renovação e algumas intervenções pontuais de impacto serão importantes, a exemplo da renovação e cobertura do calçadão da rua Oliveira Lima, em Santo André, que projetei em 1999.
Devemos registrar, entretanto, que nos últimos cinqüenta anos, enquanto ocorria o interessante processo dos centros de São Paulo, começava a se esboçar o desenvolvimento da área da calha do rio Tietê, que cumpre o destino histórico do nosso grande centro metropolitano, coração do eixo Rio-Campinas, à espera de seu desenho definitivo. O planejamento global dessa área constitui tarefa instigante, urgente e prioritária para o conjunto da sociedade paulistana.


Marcos Prado Louchesi é psicólogo social e técnico da Gerência de Estudos e Desenvolvimento do Sesc de São Paulo
O olhar outrora sonhador de um flâneur, preocupado em desvendar os encantos ocultos da metrópole, seria hoje substituído pelo desencanto do cidadão comum ao percorrer sua cidade e verificar que ela não é mais capaz de acolher um caminhar despreocupado. Os passantes se atropelam apressados demais para prestar atenção a alguma coisa além dos afazeres imediatos. Muitas vezes, as imagens que a cidade produz são agressivas e nos chocam. Perplexos ou admirados, somos determinados, em grande parte, por uma lógica econômica a reproduzir, com freqüência, a cidade como mercadoria, o que contribui para dificultar o olhar contemplativo daquele que procura se desviar da multidão para apreender a cidade fora de seu fluxo habitual e tentar entendê-la como esfera pública e cultural.
Ver a cidade além de sua funcionalidade imediata é privilegiar, antes de tudo, seu componente histórico e estético. É pensar a cidade como conjunto de lugares, como repertório simbólico associado a vivências da comunidade local, ou como sedimentação de valores grupais acumulados no tempo. É reconhecer que praças, parques, áreas de convivência e sociabilidade minguam diante da necessidade de alargamento e construção de túneis e grandes avenidas. A desvitalização do espaço público e o alargamento da esfera privada passam a forjar uma cidade apartada, que evita o contato e a mistura social ao promover o isolamento espacial dos mais aquinhoados em loteamentos e edificações de alto padrão e elevados custos.
A criação de lugares para uso e atividades exclusivas e excludentes, na maioria das vezes, é uma prática adotada pela maioria dos atores sociais envolvidos na produção da vida urbana. Até que ponto nossa urbe delineada por tendências tão desalentadoras poderá reverter o seu destino para abrigar o sonho acalentado por um projeto transformador?
O ambiente da cidade é o local desencadeador das identificações culturais que emergem para articular as diversas representações sociais. A migração constante entre pessoas de estados e países diferentes, observada em São Paulo, determina uma metamorfose constante das identidades culturais.
É necessário que a dinâmica urbana favoreça o encontro dessas experiências humanas diferenciadas, desencadeadas nos diferentes espaços que a cidade produz. "Torna-se necessário retomar determinados fundamentos que regem o ideário da cidade moderna como princípio constitutivo da diversidade social, que se manifesta, por exemplo, na ocupação das ruas, praças e demais espaços públicos das grandes metrópoles, mas que também se traduz na configuração de uma vida pública, regida por relações políticas e democráticas em que diferenças sejam devidamente arbitradas" (Frúgoli, H., Centralidade em SP, p. 229).
Nesse sentido, uma agenda mínima para a discussão de iniciativas culturais que visem à revitalização urbana deveria contemplar intervenções destinadas a intensificar o papel comunicativo dos habitantes da metrópole, ampliar a ressonância de sua fala e aumentar o diálogo entre a cidade e o cidadão. Levar em conta as oportunidades que cada habitante da cidade terá para reatar formas de vida social desativadas é uma condição necessária para o exercício da dimensão pública em meio ao caos urbano.
Recentemente, na região central de São Paulo, o poder público e a iniciativa privada têm estado juntos em projetos relativos à preservação histórica, melhoria do design urbano e criação de espaços culturais como tentativas de melhorar a paisagem desolada de uma das mais deterioradas regiões da cidade.
Tomara que tal acumulação de "capital simbólico" possa ressignificar a região, trazendo efeitos benéficos para a melhoria das condições de vida das pessoas que, em muitos casos, mantêm uma relação de amor e ódio com a cidade.