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Beleza roubada

Território esquecido
por Miguel de Almeida

O descaso do poder público e o abandono por parte da sociedade transformaram o centro de São Paulo num local inóspito e inseguro. Para reverter o quadro, ações concretas indicam o rumo à requalificação da área

Alguma coisa acontece no coração das pessoas quando cruzam a Ipiranga com a São João. E não é poesia. Ou a lembrança de alguma canção. É a constatação dura e concreta de que a decadência urbana instalou-se na esquina e na antes gloriosa região central da Paulicéia. Cenário de romances modernos e rima de versos iconoclastas de poetas, o marco zero de Oswald de Andrade e dos paulistanos há cerca de vinte anos experimenta crescente esvaziamento econômico, cultural e de poder público, cedendo praças, prédios referenciais e patrimônio histórico ao tumultuado comércio informal dos camelôs, à desordem pública, ao abandono e ao descaso do deus-dará. Embora a mídia costumeiramente aborde o problema, e organizações da sociedade civil se mobilizem em defesa de uma imediata recuperação urbanística, passado todo esse tempo e a degradação tendo atingido um grau de calamidade, ainda não se observa, com a força necessária, uma política pública capaz de articular eficazmente os agentes dessa transformação.
Não que nos falte exemplos. Não é necessário buscar parâmetros internacionais, como Paris, Barcelona ou Chicago, que também experimentaram e superaram o despautério urbanístico. Os exemplos são próximos, vizinhos. Vinte anos atrás, o centro do Rio de Janeiro também era um retrato de abandono, miséria e descaso urbano; dez anos atrás, o Pelourinho, centro histórico de Salvador, encontrava-se em situação ainda mais lastimável, se comparado ao centro paulistano: prédios semidestruídos, grandes cortiços, imensos buracos nas ruas; cinco anos atrás, a região central de Recife era um cenário de prédios abandonados ou invadidos, além de apresentar um cheiro insuportável vindo do lixo não recolhido. Hoje, as três capitais - a propósito, nenhuma tão rica quanto São Paulo - ostentam a completa recuperação de seus centros históricos. O que anteriormente era abandono e sujeira hoje é referência turística mundial e orgulho das populações locais.
Em todos os casos, sejam brasileiros ou internacionais, as recuperações urbanas só se deram a partir do empenho decisivo do poder público. Não importam as esferas - se municipal ou estadual ou mesmo federal -, mas apenas após a manifestação explícita da vontade política das autoridades governamentais, por meio de projetos apoiados em incentivos ou isenções fiscais, é que os programas deixaram de ser episódicos, muitas vezes fruto de heróico voluntarismo, para se tornar uma realidade explícita e visível à população. Não que a tarefa seja de estrita responsabilidade dos governos; nada disso: sem a colaboração da iniciativa privada, as ações não encontrarão força para uma sustentação prolongada. É o que defende o empresário Abram Szajman, Presidente da Federação do Comércio: "É essencial que o poder público sinalize uma vontade de revalorização do centro, que estabeleça incentivos e flexibilize normas. No entanto, o que deverá sustentar a recuperação da área central é a volta dos negócios mais adequados a ela, como o comércio, turismo, hotelaria, serviços, escritórios de corporações e centros de cultura e entretenimento". Antonio Ermírio de Moraes, do grupo Votorantim, cuja sede fica defronte ao vale do Anhangabaú, tem opinião semelhante: "No problema do centro, a iniciativa privada tomou para si a praça Ramos de Azevedo e a colocou em ordem. Outros deveriam fazer a mesma coisa", afirma. Ermírio de Moraes também é crítico em relação à atual iniciativa das autoridades: "No momento elas não existem".
Regina Meyer, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e diretora do centro de Estudos da Metrópole, pensa da mesma forma: "Quem poderia criar uma situação nova para o centro, hoje, é o poder público, estadual e municipal. Para isso seria necessário que ambas as esferas de poder utilizassem aquela região para realizar suas atividades." Regina acredita que isso estimularia a presença de demais usuários e, inclusive, atrairia novos moradores. "Afinal, a vitalidade de uma área central é oriunda da multiplicidade de suas funções", aponta.
Mesmo quem veio para a região central investindo dinheiro em novos negócios também demonstra ceticismo ao verificar a contribuição do poder público. O empresário Álvaro Aoas reinaugurou em janeiro deste ano o lendário Bar Brahma, que esteve fechado por dois anos após a falência de seus antigos proprietários. "Tenho tido bastante apoio das autoridades. Apoio verbal", ele atesta. "O que quero da prefeitura é água e sabão. Você vê aqui um monte de lanchonete fedida, é uma coisa criminosa. A prefeitura tem de limpar isso. E o governo do estado deve garantir a segurança". Aoas lembra um fato: "Os ex-donos do Brahma quebraram, e isso tem a ver com a decadência aqui do centro", avalia. De seu lado, o novo governo paulistano começa a articular suas ações: "O centro recebeu por parte deste governo um cuidado especial", argumenta Jorge Wilheim, secretário Municipal de Planejamento Urbano. "Durante um mês mais de trinta profissionais, representando a maior parte das secretarias, reuniram-se para estabelecer um programa de intervenção. Este foi apresentado e debatido publicamente e orienta a ação de qualificação da área central."

O início de tudo
É um tanto difícil precisar o momento em que se iniciou a decadência do centro paulistano. Tampouco é possível precisar se já atingiu o fundo do poço ou se já iniciou seu retorno à normalidade urbanística. Percebe-se que entre o final dos anos 1970 e início dos 80 ocorreu o estalo do processo de degradacão. "A perda de qualidade da região tem raízes históricas conhecidas e bastante semelhantes ao que ocorreu em outras cidades do mundo", retoma Wilheim. "Atividades imobiliárias, novas exigências de conforto, a disponibilidade de áreas a urbanizar, são fatores que levaram a uma migração das residências e outras atividades para bairros nobres". O ponto mais visível, junto com a saída de muitas empresas em direção a outros locais novos da cidade, é a invasão das barraquinhas dos camelôs. Não há duvida de que há uma questão social implícita e é preciso dar conta dela. Mas o fato é que aquele clima meio romântico de decadência, como escreveram vários poetas referindo-se à região, foi substituído por um ambiente efetivamente decadente e perigoso, desprezado pela população e pelas autoridades. Em certa medida, o desalento obedece a um paralelo com o temperamento novidadeiro da própria cidade. Acostumada a apenas construir, jamais a manter, a paulicéia e os paulistanos parecem demonstrar pouco interesse com sua história. Como conseqüência, sempre se encontram abrindo novas fronteiras - avenidas, novos centros urbanos etc. - sem dar continuidade à linha do tempo. "Temos um passado colonial, de ocupação predadora de territórios, e pode ser que, para nós da América Latina, as classes que têm poder de decisão e capacidade de investimento, com mais força, tenham essa tendência", avalia o arquiteto e professor Paulo Mendes da Rocha, autor do projeto de restauração do prédio da Pinacoteca de São Paulo, no Jardim da Luz. "Há uma tendência de caráter conservador, atrasado e retrógrado de abandonar essa região central e inaugurar novos lugares destinados não necessariamente à urbanização." Ele prossegue em sua análise, que possibilita entender um pouco a decadência do centro paulistano: "A cidade fica esvaziada, tenta sobreviver substituindo atividades; constroem-se edifícios caríssimos e distantes do centro inaugural e a sociedade se vê completamente desamparada para reerguer uma cidade com fantasias ilusórias. Acredito que essas atividades produtivas devem retornar ao centro por uma questão, acredito, civilizatória", afirma.
O proprietário da Baratos Afins, Luis Calanca, inaugurou sua loja nas Grandes Galerias, na avenida São João, em 1978. Especializada em rock'n'roll, ele foi o pioneiro do que hoje se convencionou chamar de "Galeria do Rock". Sua liderança reuniu cerca de outros duzentos lojistas dedicados à comercialização de produtos ligados ao gênero, como discos de vinil, CDs, camisetas etc. O que antes soava romântico aos olhos de Calanca hoje se tornou algo aborrecido. "Isso aqui está deprimente. O sindicato dos camelôs é mais organizado do que o sindicato dos lojistas. Você vê um guarda do CET intimidando um senhor dentro de um carro, que está esperando sua mulher sair do Extra Mappin, e esse guarda não vê que os bueiros se transformaram em estoque dos camelôs", ele sentencia. "A gente até vê que a prefeitura anda limpando as ruas, mas não adianta. Tem de dar educação a esse povo. É necessário organizar esses camelôs, colocá-los em algum lugar".
Camelôs e segurança - esses os dois problemas citados com freqüência por quem se interessa pela recuperação do centro. Assim como o empresário Antonio Ermírio de Moraes, o presidente da diretoria executiva da Associação Viva o Centro, Marco Antônio Ramos de Almeida, acredita que a iniciativa privada tem um papel importante a desempenhar na solução do problema. "A região não necessita de grandes investimentos públicos, mas sim de investimentos privados. Precisamos que a iniciativa privada venha e reforme seus prédios, restaure os edifícios tombados pelo Patrimônio Histórico. Mas a iniciativa privada muitas vezes não quer vir para a área porque ela se encontra tomada por camelôs, há problemas com segurança. Por outro lado, o poder público brasileiro está muito acostumado a construir coisas, mas não está apto a manter o que está pronto. O que o centro precisa essencialmente é de manutenção", afirma. Fundada há pouco mais de dez anos, a ONG Associação Viva o Centro identificou e criou projetos de recuperação urbanística em parceria com os órgãos governamentais municipais e estaduais. Dentro desse raciocínio, cinco anos atrás, a Viva o Centro criou o Programa de Ações Locais. A região central foi dividida em cinqüenta microrregiões. Hoje, 43 delas se encontram estruturadas.
Presidente da Ação Local Carmo, Hanneman Nobre Vieira, técnico do Sesc, conta que essa microrregião "sofria com os móveis abandonados nas ruas ou as casas abandonadas, que serviam como abrigo a delinqüentes e funcionavam como ponto de divisão do roubo deles ou como ponto de tráfico de drogas. Fomos atrás dos proprietários desses imóveis, para que tomassem providências, e os roubos diminuíram, porque os ladrões perderam os pontos de encontro".
Em quase todos os casos bem-sucedidos de recuperação urbanística de seus centros, seja no Brasil ou exterior, os equipamentos culturais - museus, centros, cinemas etc - tiveram um papel determinante. Seja pelo fato de atraírem grande número de pessoas, seja pelo fato de formar opinião, a cultura mostrou ser instrumento de renovação urbana. É um raciocínio comum aos urbanistas e planejadores de metrópoles: onde há gente, onde há movimento, há mais segurança. E os aparelhos culturais e de lazer têm demonstrado cumprir também esse papel com eficiência. Ocorreu assim no antes abandonado centro carioca, como no centro de Salvador: prédios tombados foram ocupados por centros culturais, esportivos, por teatros e hoje são pólos de atração econômica. Revitalizados, deixaram de ser problemas insolúveis e agora detonam tendências.

Com reportagem de Julio Cesar Caldeira.
Miguel de Almeida é jornalista e escritor.


A região ainda pulsa - Centros culturais e de lazer revitalizam a área central

"A cultura tem esse poder de aproximar as pessoas pelos elementos simbólicos dos quais é um conjunto de materializações. O encontro se dá no compartilhar dos sonhos, emoções e sentimentos, no organizar a própria vida pela visão da beleza e harmonia, na descoberta e imaginação do lugar próprio de cada indivíduo no conjunto das relações com os outros, com a natureza e com o universo. Não tenho dúvida de que uma ação cultural democrática e de qualidade que se realize no coração da cidade terá esse poder de mudar as relações dos indivíduos entre si e ajudar a desenvolver os sentimentos de afeto e pertinência de cada um com relação à cidade que os acolhe", afirma Danilo Santos de Miranda, diretor regional do Sesc, já antevendo o papel do novo centro cultural e de lazer que a entidade vai instalar no antigo prédio da Mesbla.
Mas a paisagem central já começa a contar com espaços culturais criados recentemente com a idéia de participar da recuperação urbana. Inaugurado em abril passado, o Centro Cultural do Banco do Brasil funciona numa antiga agência, na rua Álvares Penteado, num prédio construído há cem anos. "Com a chegada do CCBB, estamos experimentando a abertura de novos restaurantes, cafeterias e lanchonetes aqui em nosso redor", conta, entusiasmada, Yole Mendonça, diretora do centro. "A área cultural gera empregos diretos e traz uma movimentação de pessoas que, por sua vez, traz outros investimentos e outras atividades", afirma.
Sensação semelhante tem experimentado o secretário de Cultura do Estado, Marcos Mendonça, que bancou toda a recuperação do prédio da Pinacoteca do Estado e a criação da Sala São Paulo, um complexo de música e ensino que ocupa as antigas instalações da Estação Júlio Prestes - ambas iniciativas na região central do bairro da Luz. Ele também transferiu a sede de sua secretaria da esquina da Consolação com a Paulista para o prédio restaurado. "É preciso proporcionar produtos culturais de qualidade e exclusivos, que possam fazer as pessoas virem ao centro. Depois é fundamental que tenhamos universidades que funcionem na área. Como é importante que as pessoas morem no centro, para que não fiquem se locomovendo de um bairro distante até a região", afirma Mendonça. "Estamos fazendo a nossa parte, com ações e não com discurso", diz, acrescentando ainda que acredita que o pior da decadência da região tenha chegado ao final. "As pessoas tomaram consciência de que é importante recuperar e revitalizar o centro", conclui.