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Encontros
Sem política cultural não dá!
por Renato Borghi
Fundei o Teatro Oficina em São Paulo, em 1961, juntamente com José Celso Martinez Corrêa. Lá estavam Célia Helena, Etty Frazer e uma série de companheiros. Alguns já se foram, outros estão por aí. Foi uma fase muito importante do teatro brasileiro. Iniciamos uma pesquisa de teatro realista, de teatro stanislaviskiano, e passamos para o teatro épico, para Bertolt Brecht, e partimos para uma forte atuação dentro da sociedade brasileira. Começamos falando de conflito de gerações e passamos para um aprofundamento com sociólogos, políticos e a participação dentro de um Brasil que estava dentro de uma conturbação social enorme. A esse respeito, nos posicionamos e amadurecemos politicamente. Daí o encontro do teatro épico, de Brecht. A montagem de Galileu Galilei (1971) foi uma resposta à ditadura, porque respondia diretamente à censura e, principalmente, à tortura. Andorra (montagem de 1964) dizia respeito ao bode expiatório, à omissão. O nosso repertório sempre foi muito discutido com a sociedade.
Acho lastimável, hoje, que tenhamos perdido um dos nossos interlocutores mais diretos - não por culpa dele, mas sim pela orientação pela qual o país está passando -, o universitário. Vivemos um momento no Brasil, nas décadas de 1960 e 1970, em que o universitário era também nosso comparsa no sentido de fazer revista no teatro para ver se tinha alguma bomba; de revistar o público, porque sempre havia ameaça, entre outras coisas. Esse comparsa foi diluído. Na década de 1980, ele começou a passar para a música popular, para o pagode, para isso e para aquilo, para o barzinho e para a cerveja, não se centralizando mais dentro do teatro. Mas não é um problema dele. O próprio ensino sofreu uma alteração muito grande.
Festival de dramaturgia
Tive a idéia de fazer um festival de dramaturgia contemporânea porque os autores dos últimos dez anos têm se apresentado quase que em estado de guerrilha. Um "pipoca" no porão do Centro Cultural Vergueiro, outro explode numa garagem, outro acontece em um lugar qualquer. Coisas rápidas, com alguns poucos fãs, alguns amigos que se interessam e, de repente, pronto! Tudo se esgota e não tem continuidade. Queria fazer um trabalho que jogasse um foco de luz e visibilidade dentro de uma corrente dramatúrgica. Isso fica ainda mais interessante pela própria diversidade existente entre esses novos autores. Nas décadas de 1960 e 1970, não havia tanta diversidade temática. Havia diversidade de estilo apenas. Afinal, a grande temática era o combate à ditadura e a promoção da volta da sociedade civil. Agora, não. Agora há uma captação daquilo que chamo de sentimento de mundo. Ou seja, como todos nós estamos nos sentindo hoje? Sinto uma grande mudança. Sinto que há uma dificuldade de relação, um individualismo, um enclausuramento, uma aposta numa empresa individual de sucesso. Há uma grande dificuldade de reunir as pessoas em grupos. E quando se reúnem, os grupos se vêem em compasso de espera para ver se acontece algo. Para ver se alguém salta de repente para uma novela das oito, que aponta com Hollywood, com apartamentos de cobertura, com morar na Barra da Tijuca... É todo um jeito de pensar que mudou. E se pensarmos no brasileiro que vemos andando por aí, percebemos que há um sentimento geral que só a dramaturgia pode captar.
Broadway Brasil
Os megaespetáculos que têm feito tanto sucesso no Brasil ultimamente são algo que sempre fez parte da sociedade brasileira: macaquear o colonizador. Qualquer coisa que seja da Broadway - Lès Miserables, Fantasma da Ópera etc. - é um grande mito no Brasil. Por isso as pessoas fazem de tudo para ver. Elas economizam dinheiro e se vestem com sua melhor roupa para fazer parte daquele evento social que é assistir a esses espetáculos. Aliás, nem são produções brasileiras. Os produtores são mexicanos que já trazem o espetáculo num molde. Isso eu acho terrível, porque o espetáculo tem de sair como foi dirigido na Broadway, com o mesmo cenário, a mesma marcação... Enfim, uma coisa absolutamente importada. Um fenômeno importado, aliás, que vai se sustentar por um bom tempo ainda aqui no Brasil. O Lès Miserables, por exemplo, está sempre lotado e com meses de antecedência. E se esses espetáculos ficam em cartaz em grandes teatros é porque têm público. Acho que a faixa social de uma alta classe média, de uma burguesia abastada, existe no Brasil. E ela adora ver coisas estrangeiras. Tem gente no Brasil que não vai ao teatro aqui, só no exterior. São pessoas que acham que teatro no Brasil é pouca coisa. Mas sempre houve isso, eu me lembro que na década de 1960, quando a Bibi Ferreira fez My Fair Lady, foi uma verdadeira loucura de público. Foi um dos grandes fenômenos de bilheteria no Brasil.
Arte contra a barbárie
A agitação cultural passa a ser tão importante quanto a manifestação artística. Está tudo despreparado. É preciso ter contato. Desde a paróquia com os fiéis, até as donas de casa, a comunidade etc., para que todos fiquem mobilizados e saibam que se trata de um produto importante. A agitação cultural segue um curso da maior seriedade. Eu mesmo dei a idéia para o Sesc criar um curso de agitação cultural. Para as pessoas saberem agir nos seus centros e mobilizarem as comunidades para uma coisa que realmente seja boa para elas. Até porque é uma questão de educar para o teatro. Na periferia, por exemplo, as pessoas podem até não saber o que é teatro, mas elas têm uma intuição e um desejo de participar. No momento em que você leva alguma coisa, eles assistem e a participação é muito forte. Além disso, há um desejo de compreender o que aconteceu em cena. Em geral, muitas vezes, nas casas de cultura, eu não conseguia ir embora depois do espetáculo porque ficava muita gente para conversar, para perguntar, para saber etc. Às vezes, ficávamos mais de três horas depois do fim do espetáculo conversando com as pessoas a respeito do que elas tinham visto e de suas dúvidas. Acho que o ideal de projeto é que nos apresentássemos na periferia não apenas para fazer um espetáculo. Mas sim estar lá e fomentar, por exemplo, a criação de grupos de dramaturgia, de direção, de cenografia. De repente, um de nós poderia ficar nesses lugares trabalhando durante uns seis meses até deixar o pessoal mais aquecido. Não há ninguém melhor para fazer a dramaturgia deles do que eles próprios.