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Arte e Gênero

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

Arte e gênero

O termo queer, antes utilizado de forma pejorativa, com definição equivalente a “estranho”, foi ressignificado no início da década de 1990 pela Teoria Queer, que problematiza gênero e sexualidade para além dos binômios: mulher/homem, bom/mau, homo/hétero. Recentemente, temos nas artes brasileiras exemplos de realizadores que ultrapassam esse chamado binarismo. Diante disso, quais as especificidades das subversões do gênero e da sexualidade na produção artística brasileira? Analisam o tema Sara Panamby, que pesquisa e cursa doutorado em artes na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e Matheus Araujo dos Santos, mestre e doutorando em comunicação e cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.


Perspectivas Qkcuier

por Sara Panamby

Quando citamos em conversas cotidianas as palavras “gênero”, “sexualidade”, “corpo” e “política”, há uma série de imagens previamente coladas no imaginário comum, da ordem do dia, impregnadas de preconceitos e ideias fixas sobre suas definições, principalmente por quem não tem proximidade com essas discussões. Aqui, nesta conversa entre mim e você, proponho, antes de tentar defini-las, utilizá-las como gatilhos disparadores para pensar sobre arte queer, campo do fazer artístico que vem se tornando mais visível nas últimas décadas, recentemente inserindo uma série de artistas nos circuitos institucionais. É interessante observar que o crescimento dessas produções e discussões tem se dado visivelmente nos países (em regiões como América Latina, África e Oriente Médio) que não protagonizavam essa cena anteriormente e que trazem para o discurso críticas baseadas nos estudos de raça, de coloniais, feministas e interseccionais, complexificando e pluralizando os debates sobre o que cabe nessa ideia. Inclusive o próprio termo queer, palavra da língua inglesa, tem sido problematizado dando surgimento a outras nomenclaturas: kuir, cuir, e aqui proponho outra provocação com a grafia QKCUIER.

Considerando numa primeira leitura (talvez mais hegemônica sob aspectos geopolíticos) suas origens norte-americanas e europeias, a arte queer compreende um universo de produção em cinema, artes visuais, artes cênicas, literatura, música, produções poéticas realizadas em vários períodos, mas intensificada a partir dos anos 1980 e hoje problematizada com outras questões, que discutem gênero e sexualidade atreladas ao que se convencionou chamar “estudos queer”, elaborados por pensadores como Paul Beatriz Preciado, Judith Buttler, Donna Haraway, entre outros fortemente influenciados pelos estudos feministas e anarquistas, bem como pelos filósofos da diferença e da desconstrução, como os franceses Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guatarri e Jacques Derrida. A questão da performatividade e da linguagem figura em grande parte desses escritos. Entre artistas que fazem parte desse escopo estão Annie Sprinkle, Hannah Wilke, ORLAN, Valie Export, Nan Goldin, Ron Athey, Franko B., La Pocha Nostra, Leigh Bowery, Diane Arbus, Kenneth Anger, Bruce La Bruce, Derek Jarman, Tom of Finland. Aqui cito apenas algumas referências do eixo norte e alerto que é um campo muito mais amplo do que o apresentado neste breve texto. Essas apenas são pistas para a abertura de muitos leques de possibilidades.

Podemos circunscrever o pensamento queer como uma vertente teórico-prática que problematiza gênero e sexualidade como ferramentas fundamentais de organização social e culturalmente forjadas em contraposição à ideia de corpos “naturalmente” concebidos, bem como os sistemas de identificação de gênero e sexualidade baseados em binômios: mulher/homem, negro/branco, bom/mau, normal/bizarro, homo/hétero. Tal binarismo diz respeito diretamente ao modo como se constroem as sociedades ocidentais de histórico colonial, envolvendo todos os espectros da vida: econômico, social, cultural, relacional, subjetivo, normatizando, ou seja, padronizando os corpos e identidades a partir de modelos blindados do que é julgado “correto” e “aceitável”. Dado que tais sociedades, como a em que vivemos, se fundamentam em estruturas de controle da vida via poderes arraigados no patriarcalismo, colonialismo, produção e capitalização de bens (em quaisquer esferas de existência: de produtos físicos a virtuais, ideias), as teorias queer propõem mudanças de paradigmas tendo em vista corpos que não estão dentro dessas normas e que são excluídos do convívio como monstruosidades abjetas. São identidades desviantes, mutantes, outras, que a partir de sua existência colocam em xeque o modo de funcionamento das sociedades que as apartam.

Sendo assim, corpos heterossexuais, de pele branca, do sexo masculino ocupam lugar de fala e existência privilegiado em relação a mulheres, lésbicas e de pele negra, ou mulheres trans negras, por exemplo. Muitas pessoas costumam dizer que a pontuação destas bem como outras diferenças se trata de “mimimi de minorias” ou, ainda, que os grupos não normativos desejam instaurar uma “ditadura gay”, como muito se lê nas redes sociais e textos midiáticos. Entretanto, tais questionamentos se fundamentam na opressão real sofrida por esses corpos silenciados pela história oficial contada pelos “vencedores” e pelos “heróis da humanidade”. Estudos e produções poéticas sob a ótica desses outros paradigmas procuram visibilizar memórias apagadas e evocar as vozes que se calaram. O estupro de escravas negras por senhores de engenho brancos nas colônias, o atual massacre de pessoas negras nas comunidades periféricas, os assassinatos diários de pessoas trans, o feminicídio, a violência doméstica, a caça aos terreiros de candomblé e mães de santo, desapropriações ilegais de terras quilombolas, o espancamento público de homossexuais, apropriação cultural indevida. São inúmeras agressões sofridas ao longo do tempo caladamente e tratadas de maneira muitas vezes jocosa por quem não sente na pele. Mais do que uma “onda jovem”, trata-se de um processo de emergência de corporeidades, de comunidades que são aviltadas por convocar a bestialidade aos olhos de uma sociedade adormecida para seus problemas mais graves. E nesse bestiário cabem muitos: trans, negros, mulheres, lésbicas, gays, gordos, cadeirantes, idosos, trabalhadores sexuais, pessoas com modificações corporais radicais, imigrantes. Há uma manada de diferentes empoderando-se de seus corpos. Nas atuais redes brasileiras de criações qkcuier, podemos citar uma série de nomes que transitam entre a produção artística e teórica, entre instituição e autonomia, borrando fronteiras: Jota Mombaça/Monstra Errátika, Jaqueline Gomes de Jesus, Indianara Sofia Fênix, Marisa Lobo, Michelle Mattiuzzi, Miro Spinelli, Coletivo Coiote, Bartira Dias, Pêdra Costa, Solange Tô Aberta!, Verônica Decide Morrer, Camila Bacellar, Cíntia Guedes, Angela Donini, Kleper Reis, Mc Carol, Mari Alla, Antropofagia Icamiaba, Taís Lobo, Lidi Oliveira (Pagu Funk), Thiago Soares, Yuri Tripodi, Dani d’Emília, Sapatoons, Violeta Pavão, Wellington Romário, Ama Negrot, Cíntia Mendonça, Matheus Santos, Viviane V., Anarcofunk. Corpos que pensam e falam e performam suas existências no mundo de forma atravessadora, tocam feridas.

Há que se dar a devida importância a espaços como Aloca! (SP), Âncora do Marujo (BA), Casa Nem e cursinho pré-vestibular Preparanem (RJ), Casa 24 (RJ), eventos acadêmicos como Bem-Me-Cuir (UERJ-RJ), Desfazendo o Gênero (encontro anual itinerante), seminários e núcleos de estudos de gênero. Às ruas, bares, espaços de encontro e manifestação livre das subjetividades e dissidências de gênero que inicialmente serviam como palco para performances como as de Madame Satã, Cláudia Wonder, Cacá di Poli, Cia. Os Sátiros, Teatro Oficina, Victor Piercing, Dzi Croquettes, alguns nomes que devem ser citados como fundamentais referências na construção da trajetória QKCUIER brasileira. São possibilidades de formação e desenvolvimento de afetos a partir de redes autônomas que fortalecem a resistência desses corpos, trazendo para o debate em esfera social mais ampla e chegando mesmo às políticas públicas. Existe uma potência da arte QKCUIER como lugar de (des)construção política em busca de processos que abarquem e abracem existências múltiplas.

Queer. Kuir. Cuir. Qkcuier. Estamos sempre em mutação e somos muitos.
 

Nas atuais redes brasileiras de criações qkcuier, podemos citar uma série de nomes que transitam entre a produção artística e teórica, entre instituição e autonomia, borrando fronteiras. Corpos que pensam e falam e performam suas existências no mundo de forma atravessadora, tocam feridas.


Sara Panamby é bacharel em performance pelo curso de comunicação e artes do corpo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), mestre em artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (PPGARTES-Uerj), onde também faz doutorado em artes. Em sua produção artística, trabalha com limites psicofísicos por meio de práticas de modificação corporal e rituais revisitados, além da criação de personagens por processos de colagem.



Contexto brasileiro

por Matheus Araujo dos Santos

A palavra queer, de origem inglesa, designa o que é estranho, exótico, raro. Desde o século 20 ela passa a ser usada como ofensa contra dissidentes sexuais e outros sujeitos que apresentem alguma ameaça ao regime sexopolítico vigente.

A partir do final dos anos 1980 e início dos 1990, nos Estados Unidos, o termo aglutina uma série de práticas estéticas, políticas e teóricas que apostam na positivação da injúria. O monstruoso e o abjeto passam a ser local de afirmação e de produção de novas estratégias de luta. O corpo é, então, entendido como arma contra os modelos heteronormativos que esmagam as existências anormais.

A crítica queer incide sobre as construções binárias de gênero e as formações identitárias monolíticas. Pensar em uma arte queer no contexto brasileiro exige um esforço de deslocamento do termo e o questionamento das reais potências de tal categorização. Neste texto, proponho três sugestões para uma aproximação queer das artes por aqui produzidas e descrevo alguns trabalhos artísticos que acredito levantarem a questão de forma potente.

I - Se quisermos nos aproximar das artes por meio de uma perspectiva queer não devemos seguir nenhuma espécie de cânone.

Não há possibilidade de uma história oficial. O queer surge nas fraturas nos sistemas e nos gestos que atentam contra o normal. A adesão a linhagens canônicas seria um erro, na medida em que produziríamos outra vez hierarquias e graus de importância, criando novamente um centro legítimo e suas margens não autorizadas.

Pensar as artes brasileiras por meio de uma perspectiva queer não significa, portanto, o mesmo que pensar em uma arte queer nacional, pois isso conduziria à produção de nichos que serviriam apenas ao mercado e às transações financeiras no campo das artes. Estaríamos produzindo outra normalidade, como afirma Helder Thiago Maia ao discutir as possibilidades de uma literatura queer em seu livro Devir Darkroom (2014).

Não existe arte queer em si; queer é sempre uma relação que não pode ser reduzida a um conjunto de obras ou de artistas, mas depende diretamente das possíveis fissuras causadas por gestos artísticos em determinado contexto econômico, político, sexual etc.

Partir de uma perspectiva queer significa dar atenção aos momentos nos quais essas práticas perturbam os discursos hegemônicos sobre gênero e sexualidade. Mas não só. Os gestos queer tendem também a uma quebra na estabilidade da própria forma, dirigindo-se não apenas a questionamentos temáticos, mas problematizando o próprio fazer artístico.

Na década de 1970, sob o regime da ditadura militar no país, os Dzi Croquettes confundiam espectadores e agentes da repressão com seus corpos híbridos e discursos afiados. “Não somos homens. Não somos mulheres. Somos gente como vocês”, diziam com um sarcasmo provocador de um riso muitas vezes confuso. As rigorosas técnicas de dança e encenação da Broadway serviam à mais profana celebração dionisíaca. As suas existências ameaçavam o sistema político e a ordem sexual, visto que o modo de vida Dzi ultrapassava as apresentações no palco e formava redes políticas e afetivas reais em um cenário de tomada militar.

Ainda que uma perspectiva queer (hoje profusa em aparatos teóricos) nos evidencie as rupturas na ordem sexopolítica causada pelo grupo, categorizá-los como arte queer seria abrir mão do que neles há de mais potente; o questionamento de identidades fixas que limitam as possibilidades de experimentação e intervenção no mundo.

O queer – como se dá a conhecer como paradigma estético, teórico e político – emerge cerca de duas décadas após as ações dos Dzi. Aceitá-lo como molde interpretativo estanque das poéticas desenvolvidas no Brasil e na América Latina, seja no passado seja no presente, parece pouco potente tendo em vista o nosso contexto marcado pela colonização, exploração escravagista e processos de miscigenação amparados por projetos estatais de embranquecimento. O quadro geopolítico brasileiro é formado por uma série de questões às quais o queer não pode passar imune.

II - O queer deve ser deformado pelo contexto geopolítico do Brasil.

A difícil tradução da palavra para línguas latinas denota o problema do seu uso na conjuntura sul-americana. Parte dos ativistas, teóricos e artistas já se deram conta disso. Outra parte parece reproduzir a tentativa de transformar o queer em uma identidade entre tantas outras, prontas para a venda e o consumo. Processo que pode lhes garantir um espaço reservado em instâncias como a Academia e o Museu: Teoria Queer, Arte Queer, Shopping Queer.

Assumir a existência de uma arte queer Brasileira sem nenhuma reflexão sobre como determinados saberes e práticas nos são impostos é, para além de estar a serviço das forças capitalistas, continuar a reproduzir o processo de genocídio epistemológico ao qual fomos submetidos desde as invasões europeias. É preciso deformar o queer. “Diga ‘queer’ com a língua para fora”, sugere o ativista Felipe Rivas: cuir... quier... kuir.

III - Práticas kuir são práticas marginais.

Em 2014 na cidade de Rio das Ostras/RJ, a artista Raíssa Vitral enfia uma bandeira do Brasil na vagina, que depois é costurada, aprisionando em um gesto violento o símbolo da pátria. A ação do Coletivo Coiote provoca horror em muitos que a assistem. No dia seguinte, o jornal O Globo publica uma matéria cujo título inquire: “Performance ou Crime?”. Em seguida o aparelho judicial é acionado na tentativa de condenação do que por muitos foi entendido como um ritual satânico. Na internet, chovem bravatas. A artista tem sua imagem e endereço divulgados e é ameaçada de morte.

O kuir é o crime. É o atentado violento que revela as estruturas de opressão, explicitando quais corpos são perseguidos, violados e exterminados em uma sociedade guiada pelo machismo, a heteronormatividade e o racismo.

O kuir é o marginal; mendigo, prostituta, drogado, menor assaltante, assassino, índio, travesti, preto, punk, imigrante ilegal. As práticas artísticas guiadas por uma perspectiva kuir devem estar conectadas a toda essa rede non grata.

Em 2015, em Veneza, o artista Jota Mombaça demarca em um mapa-múndi as fronteiras do Brasil, Estados Unidos e Europa. Com o próprio sangue, estabelece os limites territoriais e escreve em letras garrafais THE COLONIAL WOUND STILL HURTS (A CHAGA COLONIAL AINDA DÓI). Não há possibilidade de paz.
 

A difícil tradução da palavra queer para línguas latinas denota o problema do seu uso na conjuntura sul-americana. Uma parte já se deu conta disso, mas outra parte parece reproduzir a tentativa de transformar o queer em uma identidade entre tantas outras, prontas para a venda e o consumo.


Matheus Araujo dos Santos é graduado em comunicação pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (Facom-UFBA) e mestre em comunicação e cultura pela ECO-Pós-UFRJ, onde atualmente desenvolve pesquisa de doutorado. É pesquisador do Grupo de Pesquisa Cultura e Sexualidade (CUS-UFBA) e do Núcleo de Pesquisa e Produção de Imagem (NUPPI/IF-MA