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Reginaldo Prandi
Reginaldo Prandi
Sociólogo fala sobre intolerância religiosa e as influências das religiões afro-brasileiras na cultura do país.
Sociólogo e escritor, Reginaldo Prandi é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor sênior do Departamento de Sociologia da USP. Foi um dos fundadores do Instituto Datafolha, órgão de pesquisa do jornal Folha de S.Paulo, trabalhou em diversas áreas da Sociologia e hoje se dedica principalmente à sociologia da religião, com ênfase nas religiões afro-brasileiras, evangélicas e católica. Entre seus livros, estão Mitologia dos Orixás (Companhia das Letras, 2001) e Os Mortos e os Vivos (Três Estrelas, 2012), além de obras de literatura infantojuvenil e ficção policial. Em 2001, recebeu do Ministério da Cultura, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) o prêmio Érico Vannucci Mendes por sua contribuição à preservação da cultura afro-brasileira. Nesta entrevista, Reginaldo fala sobre a relação entre cultura, sociedade e as religiões afro-brasileiras.
O samba e suas variantes são herdeiros rítmicos da música sacra das religiões dos orixás. Qual a ligação entre o candomblé e o samba?
O ritmo do samba é uma herança dos ritmos do candomblé. Não existe um candomblé. São vários candomblés, que têm ritmos diferentes, danças diferentes, e que dependem do lugar da África de onde veio o grupo que funda um terreiro. Os terreiros bantos, por exemplo, têm até hoje um ritmo próximo do samba, enquanto outros terreiros têm um ritmo mais duro. De todo modo, é daí que vem o ritmo. Durante a cerimônia, se canta para os orixás. Depois, os mesmos músicos fazem muitas cantigas com brincadeiras, e é daí que nasce um novo estilo de música, que não é sagrada, mas que tem como base não só o ritmo, a harmonia e a forma melódica do hinário sagrado, mas tem como compositores gente que é dos terreiros.
Como é essa relação entre o sagrado e o profano?
A tradição do candomblé é música, dança e comida. Primeiro, para os orixás, depois para os humanos. Era muito comum, e ainda é em alguns lugares, primeiro haver uma cerimônia pública, e depois existe um cerimonial chamado ajeum, que significa “vamos comer”, e que é o momento em que se serve a comida preparada com as carnes dos sacrifícios. O ajeum encerra as atividades, porque é o momento em que os humanos estão comendo com os orixás. Em seguida, se faz um sambão. É o momento em que o espaço sagrado se transforma em profano, e aí vai rolar cachaça, dança etc. Isso é típico não só do candomblé, mas também das culturas tradicionais. Se você pensar na cultura interiorana, era assim. Primeiro, você fazia o terço, e depois servia quentão, paçoca, as comidas, e depois acontecia o baile. Era uma época em que tudo estava integrado. Não existia uma separação entre a religião, a sociabilidade e a diversão.
Muitos compositores da gênese do nosso samba tinham essa ligação com as religiões afro-brasileiras?
Os pais do samba eram todos ligados a terreiro, como Pixinguinha, João da Baiana e esse pessoal antigo. Mesmo quando eles vão introduzir temas de amor, aquela cultura do terreiro, do feitiço, de fazer uma oferenda, está muito presente nessas letras. É só mais adiante, no final dos anos 1920 e 1930, quando surgem novos compositores, como Noel Rosa, Almirante e Vadico, que o samba se desloca dessa temática de terreiro. Na música “Pelo Telefone”, por exemplo, você nota que é uma música feita por gente de terreiro porque fala de feitiço, tem um elemento mágico.
Depois, há uma negação deste lado do samba ligado aos terreiros?
Há uma disputa entre os compositores do morro e os compositores do asfalto. Tem uma música muito emblemática que mostra uma premeditação de tirar do conteúdo do samba essa temática ligada à magia, que é a música “Feitiço da Vila”, do Noel Rosa com o Vadico, que diz: “A Vila tem um feitiço sem farofa, sem vela e sem vintém que nos faz bem”. Isso é praticamente uma espécie de negação. Era um momento em que o samba ia ganhando a sua autonomia. É o momento, por exemplo, em que o Rio de Janeiro passa por uma grande reforma urbana, funda a cidade nova perto do sambódromo, transfere as favelas, acaba com a prostituição do mangue. Há uma grande mudança, e o samba vai sendo trazido para os salões da classe média branca. Você tem uma nova indústria cultural se formando. Nessa efervescência, o samba vai se descolando do terreiro e se tornando uma música universal.
A criação do samba, ligada a essas religiões afro, era uma espécie de veículo para a cultura negra conquistar mais espaço no país?
Isso é em outro momento. Em um primeiro momento, o candomblé significou exatamente o contrário. Era uma forma de você, simbolicamente, recuperar uma origem perdida. Tanto é verdade que, se você observar a divisão de poder interna no candomblé, é um reflexo do que foi a antiga família africana, que foi destruída pela escravidão.
Como era essa divisão familiar africana tradicional?
A família africana tradicional era poligâmica. Um homem se casava com muitas mulheres. O chefe da família tinha poder de vida e morte sobre mulheres e filhos. Ele era o único proprietário da terra e administrava a forma como a família cuidava da economia. A casa dele chegava a ser uma verdadeira vila. Ele morava na casa principal e, a cada nova mulher, construía-se um novo cômodo para ela e os filhos. Quando esse chefe morria, não existia o princípio da primogenitura. Ele é que nomearia, em vida, um filho para dar prosseguimento. Assim, havia uma verdadeira guerra entre as esposas para que o filho dela fosse o chefe da família, porque a mãe do chefe também tinha um papel muito importante de controlar as mulheres da família. Outra coisa importante é que cada família se considerava descendente de um orixá determinado. Além disso, cada um herdava um orixá secundário que vinha da mãe. Os irmãos, portanto, podiam ter o mesmo orixá por parte de pai, mas orixás diferentes por parte de mãe.
Como essa estrutura se altera no Brasil?
No Brasil, essa estrutura foi destruída, e o candomblé resolveu isso atribuindo o orixá de cada um não pela origem sanguínea, mas pelo oráculo. Então a mãe de santo joga os búzios para saber quem é o seu orixá, mas o seu filho não vai ter o mesmo orixá. Mudou a forma de atribuição de orixá, que é mais religiosa do que familiar, mas se manteve a ideia do segundo orixá. Nos terreiros, há uma divisão de tarefas. Há uma pessoa encarregada da cozinha, de cuidar das crianças, organizar as festas, tocar nas festas... tudo isso, que era papel familiar, no candomblé virou papel religioso, mas o terreiro é uma espécie de miniatura do que era uma família.
Então o candomblé, ao ser estruturado, tenta reproduzir simbolicamente uma África que não existe mais?
Sim, ele reproduz uma África que não existe mais, uma religião que não existe mais e uma família que não existe mais. O negro, quando entrava em um terreiro, era como se estivesse entrando de novo na África por algumas horas, para depois voltar para o mundo exterior. Durante muito tempo o candomblé foi fechado em si mesmo, até que ele começou a ser descoberto pelos brancos, pela classe média, e começou a ser consumido como arte, como entretenimento. É nesse momento que o samba é uma forma importante. Hoje, o terreiro não é mais coisa de negro.
Quando o candomblé se abre?
Nos anos 1960. Era uma época em que os ingleses iam para a Índia buscar as raízes, as pessoas iam descobrir os xamãs mexicanos. Havia uma procura de raiz, de identidade, uma negação de que o único saber era o clássico, europeu, branco, universitário, e que existiam outros saberes igualmente legítimos. Se você pensar na Semana de 1922, é uma primeira reação contra esse predomínio dessa cultura branca, europeia. Isso vai se alongando e, na contracultura dos anos 1960 e 1970, isso realmente explode. No Brasil, há uma busca nos terreiros baianos. Nos anos 1970, Vinicius de Moraes, com sua parceria com Tom Jobim e Baden Powell, começa a descobrir essa sensibilidade. O momento simbólico disso tudo é o Festival da Música Popular Brasileira promovido pela rede Excelsior no Guarujá, onde Elis Regina canta “Arrastão”, que fala de Iemanjá, e ganha o primeiro lugar. E, nesse momento, aquilo que era uma coisa só de negro, umbandista, que era a festa de Iemanjá na praia, vai se transformar em uma coisa de todo mundo, que é a festa do Reveillon na praia. É nesse momento que Iemanjá se torna conhecida.
Essa tradição brasileira de as pessoas se vestirem de branco na virada de ano vem daí?
Isso vem da umbanda. A festa de Iemanjá, na Bahia, é no dia 2 de fevereiro, e aqui a umbanda fazia no dia 31 de dezembro. Isso ocorre num momento em que o candomblé e a umbanda vinham servindo de fonte para diversas manifestações culturais, no teatro, no cinema, na poesia, na literatura, nas artes plásticas.