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Anjo extraordinário

Foto: Wilnei AJB
Foto: Wilnei AJB

Entre vitórias e reveses, Garrincha é um dos personagens mais emblemáticos do futebol e da crônica esportiva brasileira

O futebol ganhou inúmeras designações na crônica esportiva ao longo do tempo. Considerado pura arte, desperta emoções extremas, num bailado em que vilões e heróis se alternam num ritmo singular, entre dribles e defesas, até chegar a hora do gol, que estufa as redes ou se perde no tapinha do goleiro. Para além das aproximações com a poesia, a dança e a expressão da cultura nacional, o fato é que o esporte no Brasil é referência pelos nomes que ostenta. E nesse rol, um dos mais talentosos craques é Manuel dos Santos, o Mané Garrincha, ou o anjo das pernas tortas, o melhor jogador da Copa do Mundo de 1962.

Natural de Pau Grande, distrito de Magé, município da região metropolitana do Rio de Janeiro, teve sua característica física mais pronunciada detectada logo ao nascimento, em 1933: a perna esquerda sinalizava para fora e a direita para dentro, com diferença de 6 centímetros de uma para a outra.

A vida do menino, contra todas as previsões, seguiu de maneira extraordinária, conduzida pelo arrebatamento que provocava enquanto jogava e dava caldo quente para os cronistas. “Garrincha foi extraordinário personagem para a crônica futebolística”, diz Francisco Bicudo, professor de jornalismo esportivo na Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo.  “Não por acaso foi um dos principais personagens dos textos de Nelson Rodrigues, o grande contador de histórias boleiras do nosso país. Esse encanto se dava não apenas pela genialidade dele com a bola nos pés, pela estética, pela plasticidade, a capacidade de decidir uma partida em segundos, mas também pela sua sinceridade ao mesmo tempo inocente, ingênua e profundamente sábia.”

Origens

Na infância de pés descalços e caçando passarinhos, foi chamado de Garrincha pela primeira vez pela irmã mais velha, Rosa. Garrincha ou garricha é o nome que se dá à cambaxirra, “um passarinho pequeno, bobo, marrom, que canta bonito e não se adapta ao cativeiro. Pau Grande vivia cheio deles. O apelido pegou e, aos 4 anos, Manuel já era Garrincha para os pais, irmãos, amigos e visitas”, conta Ruy Castro na biografia Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado Garrincha (Companhia das Letras, 1995). Esse gosto pela liberdade do passarinho se via também nas opções do futuro jogador, que não teve bola de futebol até os 7 anos, apenas improvisações feitas de meia velha, bexiga de cabrito e borracha.

Começou a trabalhar adolescente, aos 14 anos, nos idos de 1947, na fábrica América Fabril. Não conciliou o trabalho e os estudos, cursando apenas até o segundo ano primário, mas tinha no futebol um companheiro de conversa frequente. Não jogava menos que uma pelada por dia.

Com passagens pelo time organizado pelo irmão Baleia, o amador Palmeira F.C., em 1949 integrou o juvenil S.C. Pau Grande e de 1949 a 1950 fez jornada dupla, atuando pelo time da cidade e o Cruzeiro do Sul, de Petrópolis. Em 1951, defendeu o Serrano, outro time de Petrópolis. Aos 19 anos casou-se com Nair, que era 3 anos mais nova e já esperava o primeiro dos 8 filhos que teria com o jogador. Nessa época, 1953, Garrincha passou a vestir a camisa do Botafogo, clube em que permaneceu por mais de 10 anos.

No auge

Revelada pelo Botafogo, a estrela de Garrincha se destacou na fria Suécia, o mais populoso dos países Nórdicos, na Copa do Mundo de 1958. Do Brasil ainda provinciano, Mané e seus companheiros de seleção foram parar no país vizinho da Finlândia e da Noruega. Porém, sem cerimônia, jogaram como se estivessem em casa.

Avesso a regras, Garrincha provocava calafrios na equipe técnica. Seu comportamento imprevisível talvez o tenha afastado dos dois primeiros jogos do mundial. Mas, no fim, a dupla infernal formada por Pelé e Garrincha venceu o campeonato. Na copa seguinte, a de 1962, realizada no Chile, a dupla ficou desfalcada. Pelé se contundiu em um treino, e Mané brilhou, trazendo mais um título para o Brasil.

Para José Miguel Wisnik, professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), ensaísta e autor do livro Veneno Remédio – o Futebol e o Brasil (Companhia das Letras, 2008), Garrincha levou a um extremo incomum as possibilidades do drible, “que é finta, negaceio, movimento que se dá e não se dá, em fração de segundo, confundindo a expectativa do adversário e explorando essa confusão instantânea. Sua curta carreira, que esplende entre 1958 e 1962, sua decadência trágica, suas famosas pernas tortas, fazendo do déficit uma vantagem, contêm esse momento de afirmação gloriosa e fulgurante da face positiva desse complexo, dando um toque popular profundo às formulações cosmopolitas da bossa nova e da arquitetura de Brasília, que lhe são contemporâneas. Garrincha é a alegria do povo e sua não aristotélica prova dos nove”, analisa.

Na mira

O bicampeonato mundial trouxe, também, uma história de amor que ultrapassou os limites do futebol. Quem não é fã do esporte conhece, mesmo que de relance, a paixão intensa entre Garrincha e a cantora Elza Soares, que foi convidada para ser a madrinha da Copa do Mundo. Em meio às homenagens pela conquista da vitória, com o jogador estampando as capas dos principais jornais e revistas, a imprensa reservava um espaço para abordar de modo sensacionalista a relação entre os dois, oficializada depois da copa. 

Após as conquistas, o temperamento difícil associado ao vício do álcool ajudou a degringolar a carreira do ídolo, que tinha em desequilíbrio sua vida familiar. Após sair do Botafogo, fez parte da equipe do Corinthians em passagem relâmpago de 13 partidas, no ano de 1966, aos 32 anos. Era pouco ligado a dinheiro e às consequências da má administração de seus bens ou do conforto que o futebol lhe ofereceu. Por isso, andou de galho em galho, vestiu a camisa do Flamengo, Portuguesa, Olaria e do time colombiano Júnior de Barranquilha. Embora tenha despertado o interesse de Milan e Internazionale (times italianos), não chegou a ser contratado. 

Sem final feliz

A alegria dos campos deu lugar a um Garrincha desmotivado e solitário, morador do bairro de Jacarepaguá. Após o fim do tumultuado relacionamento com Elza Soares, casou-se novamente e foi morar no bairro de Bangu.

Um alento ao seu desânimo foi o convite que recebeu para ser “professor” da escola de futebol da Legião Brasileira de Assistência (LBA), voltada para menores carentes. O entusiasmo da oportunidade se desfez ante a dependência da bebida. Garrincha não passava muitas horas sem beber e faltava aos compromissos do trabalho, o primeiro com carteira assinada.

Internações eram frequentes e, como descrito em sua biografia, chegaram a quinze num período de quatro anos, umas mais graves do que outras, algumas realizadas em potencial risco de morte.

Em 1980, foi homenageado pela escola de samba Estação Primeira de Mangueira e desfilou em destaque no carro “Da pelada à Jules Rimet”, sob efeito de tranquilizantes, apenas três dias depois de receber alta de uma clínica localizada no bairro carioca das Laranjeiras. 

Garrincha morreu em janeiro de 1983, após frequentes internações e complicações decorrentes do alcoolismo. “De março de 1982 até o último dia de vida, passara por outras oito internações, todas dramáticas e desesperadas. Isto não quer dizer que, a intervalos, não tivesse bons momentos”, descreve Ruy Castro.

Personagem de uma vida na corda bamba, regada a alegrias e momentos de profundas dificuldades, o jogador protagonizou um drama que ecoa na memória brasileira recente. Ainda assim, passados 33 anos de sua morte, para alguns críticos, essa lembrança às vezes não se mostra tão generosa. “Pensando de maneira mais ampla, fazemos parte de uma sociedade que, na maioria das vezes, vive apenas e tão somente o presente, o aqui e agora, o imediato. Não temos a tradição de preservar e valorizar o passado e nossas memórias. Esse comportamento me parece também evidente no futebol. Os craques que foram fundamentais para ajudar a colocar o Brasil no Olimpo do esporte raramente são lembrados com o carinho, o respeito e a admiração que merecem”, opina o professor Francisco Bicudo. “Garrincha era pura arte, improviso, gênio do inesperado, artista dos toques refinados, capaz de driblar num minúsculo pedaço de campo, alguém que jogava por prazer e diversão e que fazia do futebol uma grande brincadeira, um espetáculo lúdico e apaixonante.”

 

Amigos boleiros

Pelé e Didi foram parceiros de Garrincha dentro das quatro linhas

Garrincha e Pelé

Brasil 3 X 1 Bulgária, no dia 18 de maio de 1958, no Pacaembu, foi a primeira vez em que Garrincha e Pelé jogaram juntos no mesmo ataque. Ninguém poderia adivinhar, mas aquela tarde de domingo era o começo de uma trajetória maravilhosa: a seleção brasileira jamais perderia uma partida com os dois em campo.

Garrincha e Didi

O meia-direita e Garrincha participaram do bicampeonato de 1958 e 1962 e eram companheiros de Botafogo. Didi aprendeu cedo a lidar com Garrincha. Observou que seu rendimento nos jogos era irregular: tanto podia ganhar um jogo sozinho quanto ausentar-se da partida.

Fonte: Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado Garrincha (Companhia das Letras, 1995)

 

Vida de jogador

Garrincha inspira nova obra do dramaturgo Robert Wilson, que segue em temporada até 29 de maio

Tema de livro, filme e agora argumento para peça de teatro. Garrincha (foto) é o novo espetáculo de Robert Wilson realizado em parceria com o Sesc. A colaboração artística entre o Sesc, a Change Performing Arts e Robert Wilson foi estabelecida em 2012, com a apresentação, no Sesc Belenzinho, do monólogo A Última Gravação de Krapp, de Samuel Beckett. Ainda em 2012, o programa trouxe ao Sesc Pinheiros os espetáculos: Ópera de Três Vinténs (Bertolt Brecht, 1928) e Lulu (a partir dos textos de Frank Wedekind O Espírito da Terra, 1895, e A Caixa de Pandora, 1904), com música de Lou Reed.

Em 2013, foi a vez da peça A Dama do Mar, com texto adaptado por Susan Sontag e elenco brasileiro, inspirado no original de Henrik Ibsen. O ano de 2014 reservou ao público o encontro de Mikhail Baryshnikov e Willem Dafoe, em The Old Woman (A Velha), também no Sesc Pinheiros.

Na coletiva de imprensa que marcou a estreia da peça, Robert Wilson agradeceu ao público brasileiro pela boa recepção de seus espetáculos no país, além de reforçar que essa plateia acompanhou de perto o desenvolvimento de seu trabalho, como se assistir às peças fosse uma oportunidade para conhecê-lo. Wilson também revelou o encanto que sentiu ao conhecer a história do jogador: “O movimento era essencial para Garrincha. Fiquei fascinado por esse personagem, que carregava em si tantas contradições”, afirmou. Os 16 atores que compõem o elenco são acompanhados por um sexteto musical durante a encenação.

Autor da biografia sobre o jogador, Ruy Castro diz que recebeu com “naturalidade” a notícia da montagem da peça e ilustra: “Minha filha me perguntou se a peça era baseada no meu livro. Disse que não, que era baseada no Bob Wilson”.

O espetáculo fica em cartaz na unidade Pinheiros até 29 de maio.
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