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Notas de um cenógrafo

Grafia da cena: entreato do movimento e da luz no palco  / Foto: Reprodução
Grafia da cena: entreato do movimento e da luz no palco / Foto: Reprodução

Por: CECILIA PRADA

Em mais um de seus lançamentos cuidados, ricos em ilustrações e documentação e importantes pelo conteúdo, a Edições Sesc São Paulo apresenta o livro Cenografia Brasileira – Notas de um Cenógrafo, de J. C. Serroni. Ao mesmo tempo em que o homenageia pelos 35 anos de carreira, proporciona aos profissionais do teatro e ao grande público a oportunidade de conhecer melhor, detalhadamente, seus trabalhos – constitui também peça indispensável de documentação histórica do desenvolvimento da cenografia no Brasil e de seu entrosamento com os vários elementos da produção teatral.

Nascido na cidade paulista de São José do Rio Preto, em 1950, desde a adolescência José Carlos Serroni mostrou aptidões artísticas e interesse pelo teatro, tendo realizado exposições de pintura e gravura coincidentes com sua iniciação no teatro amador. Formou-se em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), em 1977, especializando-se em arquitetura teatral. Realizou projetos em várias partes do Brasil, e há mais de 20 anos é consultor dos teatros do Sesc. Entre seus projetos arquitetônicos destaca-se o do Teatro do Colégio Santa Cruz, em São Paulo, premiado pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) em 2004. Fundou, há 16 anos, o Espaço Cenográfico, que abriga trabalhos experimentais na área e forma dezenas de profissionais que interagem, discutem e refletem sobre os vários aspectos do fazer cenográfico. Atualmente, concentra sua atividade em um projeto pioneiro de educação para o teatro, a SP Escola de Teatro.

Dividido em duas partes – a primeira, uma história da cenografia no Brasil; a segunda, o estudo da carreira de 31 cenógrafos profissionais –, Serroni em seu livro transcende o campo específico de sua arte, definindo-a, em estilo leve e fluente, como um recorte específico do período que vai do início do século 20 aos primórdios do século 21. Escolhe como divisor de águas, tanto da cenografia, quanto do próprio teatro brasileiro, a encenação, em 1943, de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, dirigida por Zbigniew Marian Ziembinski, com cenários de Tomás Santa Rosa Júnior. Pois até o início do século 20 a cenografia brasileira limitava-se a um trabalho decorativo de pintura em telões, que reproduziam de maneira real, mas muitas vezes alegórica, os locais domésticos ou públicos em que se desenrolava a ação das peças teatrais e óperas. Muitas vezes os cenários não tinham nenhuma relação com a obra apresentada, pois eram frequentes o aluguel e mesmo o empréstimo entre companhias de telões prontos e estereotipados.

Interação de espaço

Voltado, em sua atividade cotidiana, à formação de alunos, o autor, antes de entrar no processo de exposição histórica, dirige-se a eles em um capítulo onde dá sua visão própria da arte cenográfica, explicitando princípios, conselhos e cuidados. Uma reflexão sobre a linguagem específica dessa arte a partir de algumas definições de artistas famosos – escolhidas entre centenas, como diz, porque, para chegar a uma definição precisa “seria imperioso avaliar centenas de relações da cenografia com seus diferentes contextos”. Serroni não se contenta com a definição vinda do grego e usada durante muitas décadas, “Cenografia é a grafia da cena”, e nem com a do mestre Josef Svoboda, que, no entanto, reconhece como o mais representativo cenógrafo do século passado: “Cenografia é o entreato do espaço, do tempo, do movimento e da luz no palco”. E dá a sua própria: “Cenografia é a dramatização do espaço, sempre complementada pela atuação”. Para ele, o ator permanece como o elemento básico, imprescindível, insubstituível, do evento teatral. E exige do cenógrafo o envolvimento com todas as fases e elementos da produção do espetáculo, a começar por sua presença em todos os ensaios, por mais repetitivos que pareçam ser.

Do cenógrafo em formação exige ainda que se situe conscientemente diante de sua escolha: “Que espécie de cenógrafo você quer ser?”, pois a cenografia teatral não é mais a única possível, devido aos avanços tecnológicos e à expansão do mercado de trabalho para setores como museografia, eventos e exposições, feiras comerciais, publicidade, carnaval, TV, shows, parques temáticos etc. Seja qual for sua área, o aprendiz deverá nortear-se sempre por alguns princípios fundamentais – Serroni costuma dar uma lista de dez “mandamentos” a seus alunos. Um dos principais é olhar para a cenografia como arte integrada onde a autonomia, o “estrelismo”, não pode prevalecer. É comum que os diretores teatrais digam que a cenografia não deve ser “percebida” pelo público – estaria assim desvirtuada de sua verdadeira função de complementaridade. Como diz o grande diretor e cenógrafo Gianni Ratto, em citação de Serroni: “O espaço cênico não tem limites: ele multiplica-se pela dimensão do texto e de suas personagens. Ele não pode ser medido por metros quadrados ou cúbicos; ele existe – infinito – onde uma palavra de poesia ressoa”.

A primeira parte do livro termina com dois capítulos, um dedicado exclusivamente à participação brasileira nas Quadrienais de Cenografia de Praga, na República Checa, e outro em que Serroni inventaria com minúcia de detalhes 15 importantes exposições de cenografia ocorridas no período 1980-2010, no Brasil e em alguns lugares do exterior. Demora-se na explicação das dificuldades intrínsecas existentes para tais iniciativas – “sendo a cenografia por natureza uma forma-para, sem autonomia estética [...] a transposição de um cenário para uma sala de exposições o condena ao empobrecimento de objeto imobilizado na vitrine”. Donde a necessidade de se criar “espaços instigantes”, que o visitante aborde como uma performance que está lá apenas para que ele a usufrua.

Carreira brilhante

Na segunda parte, ele faz uma retrospectiva de sua carreira, destaca o estímulo que recebeu de Dinorath do Vale, sua professora de desenho no colégio, bem como de José Eduardo Vendramini, diretor de teatro amador de sua cidade natal e que o convidou a pintar telões de cenário e até a atuar. Estuda os trabalhos de 31 cenógrafos de grande mérito que teve a oportunidade de conhecer, como contemporâneos, parceiros ou professores seus – como Flávio Império, um artista que considera “uma das maiores referências, na área” – e outros que conheceu apenas de livros e de estudo, mas que também o inspiraram. A lista, que por ordem alfabética abrange desde o italiano Aldo Calvo (1906-1991) ao brasileiro Santa Rosa (1909-1956), é precedida pelo destaque de mais três artistas (além do próprio Flávio Império): Gabriel Villela, Gianni Ratto e Luiz Carlos Mendes Ripper. Este, que conheceu no Teatro Ruth Escobar em 1977, ao apreciar sua cenografia para Torre de Babel, foi um grande teórico e exerceu muita influência no trabalho que, conforme Serroni, “hoje também tento fazer nessa área”. O italiano Gianni Ratto, nascido em 1916, foi uma personalidade de renome internacional, cenógrafo do famoso Teatro Scala, em Milão, diretor teatral, cofundador, com Giorgio Strehler, do Piccolo Teatro daquela metrópole italiana. Em 1954 resolveu viajar para o Brasil, sem informação sobre o que aqui encontraria no campo artístico. Apaixonou-se pelo país e radicou-se aqui de vez, desenvolvendo uma brilhante carreira na direção teatral e na cenografia. Faleceu em São Paulo, em 2005. Já Gabriel Villela, um mineiro nascido em 1958, como diretor desenvolve, desde 1989, uma linha de trabalho inspirada na atmosfera de circo-teatro em que foi criado, e, como cenógrafo e figurinista, procura continuamente na natureza, na vida cotidiana e nas nossas raízes culturais, elementos que possam enriquecer suas produções.

Merece destaque, no tocante à ilustração da obra, o enorme acervo de desenhos do próprio autor, reproduzindo cenografias dos profissionais que escolheu, e constituindo um fator a mais para que este lançamento das Edições Sesc São Paulo passe a figurar entre as referências obrigatórias da bibliografia teatral.