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Grande orquestra e sua bela casa

Um dos momentos mais aguardados: concerto de abertura de temporada / Foto: Poline LYS/Folhapress
Um dos momentos mais aguardados: concerto de abertura de temporada / Foto: Poline LYS/Folhapress

Por: CECILIA PRADA

Fundada oficialmente naquele alvoroço criador que foi o ano do 4o Centenário de São Paulo, em 1954, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) – que até 1978 se chamou simplesmente Orquestra Sinfônica Estadual (OSE) – entrou de pronto em funcionamento e veio desempenhando, sob a regência e a direção administrativa das mais representativas personalidades da pauta musical brasileira, papel de relevo na formação de público e de várias gerações de instrumentistas. Mas teve de amargar dissabores e pacientar durante mais 45 anos para poder, enfim, ganhar uma sede própria e digna, com a inauguração, na noite de 9 de julho de 1999, da Sala São Paulo, na capital paulista.

Assim mesmo, não teve o grande hall sinfônico uma inauguração pacífica: segmentos partidários populistas patrocinaram uma intervenção ruidosa, nas próprias calçadas do edifício recuperado da antiga Companhia Estrada de Ferro Sorocabana, para reclamar, segundo diziam, do “caráter elitista” e do “desperdício de verbas públicas” para satisfação – esbravejavam – de meia dúzia de burgueses endinheirados e pedantes. Vozes isoladas que se perderam por aí, abafadas naquele momento histórico pelos setores mais cultos da nacionalidade, que haviam vindo prestigiar o evento – a começar pelo próprio presidente da República de então, Fernando Henrique Cardoso, que mais tarde, de 2005 a 2013, ocuparia o cargo de presidente do conselho de administração da Fundação Osesp.

Registra a crônica da metrópole o momento que foi decisivo para a criação da sede de sua mais famosa e antiga orquestra: no velório do maestro Eleazar de Carvalho, em 1996, no Theatro Municipal, o trompetista Gilberto Siqueira, em saudação de despedida àquele que fora o elemento estrutural da sinfônica desde seus primórdios, lembrou que infelizmente o grande músico morrera sem ver realizado seu sonho, “ter um lugar para a Osesp crescer e florescer”. Estava presente o governador Mario Covas, que a partir daquele momento, passou a investir na ideia de reestruturar a orquestra e dotá-la de uma sede própria.

Passados 15 anos desde sua inauguração, a sede da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo acrescentou à sua função principal uma série de outras, todas ligadas à música erudita e estruturadas dentro da Fundação Osesp – contando hoje também com uma Orquestra de Câmara, vários Coros (Sinfônico, de Câmara, Infantil e Juvenil) o Quarteto Osesp, o grupo de Solistas da Osesp, uma Academia de Música, uma série de Programas Educacionais, uma editora de partituras e o Centro de Documentação Musical Maestro Eleazar de Carvalho. Além de sua programação oficial de concertos – cerca de 200 por ano – acolhe também um grande número de recitais de orquestras, regentes ou solistas de todas as partes do mundo, que incluem São Paulo em suas turnês.

Tanto em 2013 quanto em 2014, sua programação apresentou cerca de 85 regentes e artistas convidados de prestígio internacional. A renovação dos músicos que compõem a orquestra principal e as secundárias é feita por meio de concursos internacionais do mais alto nível de exigência. Simultaneamente à sua programação local, realiza também, todos os anos, o Festival de Inverno de Campos de Jordão, no interior de São Paulo, evento criado pelo maestro Eleazar de Carvalho para estimular os jovens instrumentistas profissionais nos moldes de acontecimento similar realizado também anualmente em Tanglewood, nos Estados Unidos.

“Lugares da Música” é o tema da programação musical da Sala São Paulo neste ano – tão vasta e tão abrangente das várias atividades desenvolvidas de 25 de fevereiro a 12 de dezembro, que ocupa as 151 páginas da revista especializada que as expõe. Um tema que, segundo apresentação do diretor artístico da instituição, maestro Arthur Nestrovski, pode ser entendido sob quatro enfoques distintos: no literal, como homenagem a todos os edifícios, “como o nosso”, destinados à prática musical em suas formas mais variadas; com abrangência de cidades, bairros, ruas e mesmo casas conhecidas pela sua significação na história da música; como mote da temporada, servindo de estímulo para a reflexão sobre os lugares da música na atualidade, tanto do ponto de vista social como econômico, como presença física ou virtual; e por fim, também como ponto de partida de uma reflexão pessoal sobre o que sejam esses “lugares da música” para cada um de nós, com sua força de encanto, consolo, justificação e explicação de nossa aventura humana.

Acústica superior

Não poderia ser mais oportuna e inspirada a escolha do edifício da antiga Companhia Estrada de Ferro Sorocabana para abrigar, a partir de 1997, o Complexo Cultural Júlio Prestes – órgão da Secretaria Estadual da Cultura – onde a Osesp poderia, enfim, encontrar seu espaço permanente, na proximidade de outros edifícios históricos como a Pinacoteca do Estado e o Museu de Arte Sacra, já incluídos em um plano mais abrangente de revitalização cultural do centro velho da cidade. Projetado pelo engenheiro Christiano Stockler das Neves em 1925, pela suntuosidade de seu projeto arquitetônico o prédio levaria 13 anos para ser terminado. Foi inaugurado em 1938, mas, de certa forma tivera seus propósitos esvaziados, com a desaceleração do transporte ferroviário no país. Em 1997, já se esboçava sua decadência e muitas de suas esplêndidas áreas vazias costumavam ser locadas para a realização de festas e eventos vários. O tombamento pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) preservou a edificação e marcou sua nova trajetória cultural na cidade.

Muitos especialistas consideram a Sala São Paulo um dos espaços para concertos com melhor acústica no mundo, comparável à de muitas salas dos Estados Unidos ou da Europa, mundialmente conhecidas, como o Symphony Hall, em Boston, o Musikverein, em Viena, e o Concertgebouw, em Amsterdã. Na reforma empreendida há 18 anos, as mais avançadas tecnologias foram empregadas, como o uso de um gigantesco guindaste de 150 toneladas para transportar as imensas vigas até o teto, a 25 metros de altura (parte da estrutura que suporta o teto ajustável, notável característica arquitetônica exibida pela sala). Equipada com 15 painéis, cada um deles pesando 7,5 toneladas, fixos por 20 cabos enrolados, e controlados individualmente por meio de computadores, oferece variação de ajustes independentes, para que a acústica seja a melhor possível para cada tipo de apresentação musical.

O grande hall da antiga estação foi aproveitado para a sala de concertos do estilo Shoebox (“caixa de sapatos”), espaço até hoje considerado, tanto nas salas europeias quanto nas norte-americanas, ideal para essa modalidade de espetáculo. A construção de salas especializadas em concertos começou a ser propagada no século 19, mas teve no início do século 20 seu auge com a construção de salas em Amsterdã, Boston, Londres e Viena. Anteriormente, as orquestras sinfônicas deviam se adaptar às características dos grandes teatros, usados tanto para concertos como para óperas e espetáculos teatrais. A principal característica da moderna sala de concertos consiste na ausência do “fosso de orquestra”, que era obrigatório no teatro de ópera.

No dia 18 de julho de 1953, a cidade de São Paulo assistiu ao primeiro concerto de sua orquestra, no Theatro Municipal, sob a batuta de seu regente titular, o maestro, pianista e compositor João de Souza Lima (1898-1982), que contava, para aquele evento, com a participação de um dos mais famosos pianistas da época, Alexander Brailowsky (1896-1976). No mesmo ano o grupo realizou pelo menos mais quatro concertos. No entanto, a orquestra só foi oficialmente criada por um decreto do governador Lucas Nogueira Garcez, em 13 de setembro de 1954. Seguiram-se audições para seleção inicial de 56 instrumentistas, dentre os quais se incluíam alguns que marcariam o cenário musical brasileiro nas próximas décadas, como João Dias Carrasqueira, Natan Schwartzmann e George Olivier Toni.

Dali por diante, porém, a história da grande orquestra estadual seguiu um curso incerto, com alternância de grandes períodos de inatividade e periódicas “ressurreições” que conseguiram, a despeito do vaivém, mantê-la viva até seu glorioso período atual. Após o entusiasmo inicial, passou dez anos em estado de inércia, pois somente em 1964 teve novamente um regente e diretor artístico, o italiano naturalizado Bruno Roccella – nos quatro anos seguintes, já com um contingente de 81 músicos, ele realizou 22 concertos na capital paulista e apresentou-se em torno de 40 vezes em cidades do interior de São Paulo.

“Lenda pessoal”

Depois de Roccella, novamente o silêncio, o quase esquecimento que durou até 1973 – isto é, quando finalmente encontrou o seu grande maestro, Eleazar de Carvalho (1912-1996), extraordinária personalidade de músico, um incansável batalhador que conseguiu sempre acumular funções de regente em várias orquestras do mundo, sem descuidar também de seus encargos como professor de músicos. Ele foi o formador de regentes como Claudio Abbado, Zubin Mehta, Seiji Ozawa e Charles Dutoit. Eleazar foi indiscutivelmente o maestro brasileiro que obteve, até hoje, maior representatividade no cenário internacional. De 1947 em diante, dividiu seus compromissos no Brasil com a regência das maiores orquestras do planeta, ora como titular, ora como convidado – entre as quais as filarmônicas de Berlim, Nova York e Viena, e as sinfônicas de Boston, Londres e Paris. Sobe a 61 o número das orquestras estrangeiras em que atuou, sendo 43 na Europa e 18 nos Estados Unidos, sem contar suas passagens pelo Japão e pelo Oriente Médio. No Brasil, foi diretor artístico e regente titular da Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB) em três períodos, da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) de 1973 até o ano de sua morte, 1996, e igualmente das sinfônicas da Paraíba, de Porto Alegre e do Recife.

Conta-se uma breve história a respeito da decisão de Eleazar de Carvalho de assumir a direção da Osesp, em 1973. Ela faz parte de sua “lenda pessoal” – a de um menino muito pobre, que fora colocado pela família em uma Escola de Aprendizes de Marinheiros. Um dia, quando limpava o convés, foi notado pelo comandante da embarcação, o capitão de mar e guerra João Avelino de Magalhães Padilha. Explica-se: Eleazar aproveitava seus momentos de folga para tocar flauta. O compreensivo capitão resolveu dispensá-lo do serviço para que pudesse estudar música. Cerca de meio século mais tarde, em 1973, o maestro, que desde 1947 já dirigia orquestras famosas no Brasil e nos Estados Unidos, teve a oportunidade de mostrar gratidão e respeito à memória do homem que o lançara no caminho da glória. Ao receber do secretário de Esportes, Turismo e Cultura do Estado de São Paulo, Pedro de Magalhães Padilha, o convite para tornar-se diretor da orquestra paulista, o festejado maestro primeiro recusara francamente, dizendo “Estou bem nos Estados Unidos. O Brasil não dá atenção à música clássica, à cultura”. Mas quando lhe contaram que Pedro Padilha era neto do capitão João Avelino, mandou novo recado ao secretário: “Digam a ele que estou indo imediatamente para São Paulo”.

John Neschling foi o sucessor de Eleazar e dirigiu a Osesp de 1997 a 2008, reestruturando-a com o auxílio de seu maestro assistente, Roberto Minczuk, segundo as diretrizes formuladas pelo seu antecessor. Sua tônica foi a reavaliação dos 97 instrumentistas que a compunham e a luta por salários de padrão internacional. Tanto que 44 dos antigos componentes foram confirmados em seus cargos e os naipes foram completados com 26 músicos contratados em Bucareste, Nova York, Paris e Sófia. Conseguiu assim elevar a qualidade profissional do grupo, tornando-o reconhecido pela crítica internacional como “uma das melhores sinfônicas do mundo”, como foi abundantemente provado nas turnês realizadas, a partir de 2000, na América Latina, nos Estados Unidos e em vários países europeus. Durante a gestão de Neschling, o número de assinantes da orquestra chegou a quase 12 mil e foram criados o Centro de Documentação Musical Maestro Eleazar de Carvalho, a Editora Criadores do Brasil e a Academia de Música da Osesp.

Infelizmente, um desentendimento com o governador do Estado na época, José Serra, acabou por levar ao seu afastamento do cargo, em janeiro de 2009. Em 2013, a convite de Fernando Haddad, prefeito de São Paulo, Neschling assumiu o posto de diretor artístico do Theatro Municipal de São Paulo – que inclui também o Coro Lírico Municipal e o Balé da Cidade –, cargo em que se mantém com grande êxito. No primeiro ano de sua gestão conseguiu introduzir seu programa com vistas a incrementar o número de assinantes de temporadas, atraindo um público de 150 mil pessoas.

Turnês internacionais

De todos os setores artísticos, o da música erudita permanece, no mundo todo, como aquele que mais manifestamente trata de excluir o trabalho profissional das mulheres. Uma das mais ostensivas controvérsias sobre esse tema aconteceu em 1983, quando o maestro Herbert von Karajan (1908-1989) travou à frente da Filarmônica de Berlim uma verdadeira batalha contra o preconceito tão logo revelou a disposição de contratar, temporariamente, uma jovem clarinetista, Sabine Meyer, e os músicos se recusaram a tocar com ela. A Filarmônica de Viena, que por várias vezes foi considerada a melhor orquestra do mundo, só em 1997 permitiu a entrada de mulheres em seus quadros: a harpista Anna Lelkes conseguiu sua efetivação no cargo após 20 anos trabalhando para ela como freelancer. Até hoje foram apenas quatro as mulheres admitidas. Em maio de 2008, Albena Danailova venceu as audições para se tornar spalla – primeiro violino de uma orquestra – e mesmo assim foi admitida como “temporária”.

São poucas as mulheres que, nos quatro cantos do planeta, conseguiram se tornar regentes. Uma delas, a americana Marin Alsop – que tem sido aclamada como “a melhor” de todas – honra desde 2012 a Osesp como regente titular. Conheceu a orquestra quando, como convidada, veio reger a Sétima Sinfonia de Gustav Mahler, considerada até hoje uma das peças mais difíceis dos repertórios. Marin fez uma apresentação de extraordinário nível artístico e encantou os músicos com sua personalidade. Em 2012, ao assinar um contrato de cinco anos – que partilha com a continuação de seu cargo permanente de diretora artística da Sinfônica de Baltimore –, Marin afirmou que seu objetivo é “tornar a Osesp a melhor do mundo”. Nesse mesmo ano, levou a orquestra a apresentar-se, com o pianista Nelson Freire, em um histórico concerto no Royal Albert Hall, em Londres, e com o violoncelista Antonio Meneses, no Concertgebouw, em Amsterdã. Foi um sucesso, tanto que alguns críticos estrangeiros colocaram a Osesp em quarto lugar entre as dez orquestras de maior destaque naquele ano. Em outubro de 2013, Marin regeu a Osesp em uma brilhante turnê de 15 concertos, pela Europa.

Nascida em Nova York, em 1956, Marin é filha de músicos, mas teve de lutar muito para atingir a posição que ocupa hoje. Estudou violino na mais famosa escola de música norte-americana, a Julliard School, mas quando quis se dedicar à regência, não a aceitaram. Contou, porém, com a proteção do maestro Leonard Bernstein, e conseguiu montar uma pequena orquestra de câmara. Em 1993, assumiu a Sinfônica do Colorado com tanto empenho que logo elevou a sua classificação – por esse motivo, em 2005 foi contemplada com o “Prêmio dos Gênios”, dado pela Fundação MacArthur.

Apesar disso, quando assumiu a Sinfônica de Baltimore, em 2007, foi obrigada a enfrentar uma verdadeira revolta dos músicos, que não queriam aceitá-la, mas derrubou a barreira. Esteve à frente também de outras orquestras, como a Sinfônica de Londres e a de Bournemouth, da qual foi regente titular de 2002 a 2008. Em setembro de 2013 foi a primeira mulher a reger a orquestra Sinfônica da BBC no Last Night of the Proms, um tradicional evento de encerramento do mais importante festival de música da Europa.

O mais notável na Osesp tem sido, desde seu início, a tarefa de formação de plateias de todas as classes sociais – em vez de tornar a música erudita, como temiam os populistas que atacaram a orquestra e sua nova sala, há 16 anos, dizendo se tratar de “privilégio de meia dúzia de ricos”. Hoje, 62% de seu público assiste aos espetáculos gratuitamente, ou desembolsa até R$ 15 por ingresso. A cada temporada, além dos concertos gratuitos, difunde amplamente seus programas sinfônicos pelo rádio, pela TV Cultura e até mesmo pela internet. Contribui muito para isso também o programa Osesp Itinerante, correalizado pelo Sesc São Paulo, mediante turnês pelo interior paulista. Em 2013, foram beneficiados com esses programas mais de 120 mil adolescentes e crianças e cerca de 900 professores.