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Um espetáculo que não pode parar

Circo dos Sonhos, em São Paulo: uma unidade fixa e duas  itinerantes / Foto: Regina Abreu
Circo dos Sonhos, em São Paulo: uma unidade fixa e duas itinerantes / Foto: Regina Abreu

Por: REGINA ABREU

Antigamente, a rotina tranquila das cidadezinhas era rompida quando a notícia corria de boca em boca: “O circo vem aí!” As crianças se agitavam, os adultos ficavam empolgados, e todos corriam para a rua principal. Começava o grande desfile. Na frente, vinham os palhaços, anunciando: “Hoje tem goiabada? Tem sim, senhor! Hoje tem marmelada? Tem sim, senhor! E o palhaço, o que é? É ladrão de mulher!” Atrás, desfilavam as bailarinas, os malabaristas, os trapezistas, os mágicos, os domadores e seus animais presos em jaulas sobre rodas, e o elefante, todo paramentado, fechando o cortejo.

Também nas grandes cidades, ainda hoje, com a desculpa de levar filhos, sobrinhos ou netos ao circo, não há adulto que não vibre com a coragem dos trapezistas, que não se encante com a beleza das bailarinas e que não ria com as trapalhadas dos palhaços: o circo continua sendo um “programão” para crianças de todas as idades.

Em 27 de março comemora-se o Dia do Circo. Mas, definitivamente, o circo mudou: não tem mais animais e o antigo espetáculo – que muitas vezes incluía, além dos números tradicionais, apresentação de peças de teatro e de duplas sertanejas – transformou-se em um show cuidadosamente produzido, que exige investimento, tecnologia e gestão aprimorada.

Para o público em geral, circo lembra coragem, aventura, romantismo. Desde a Idade Média e até muito antes, quando os saltimbancos se exibiam em praça pública ou nas cortes, os artistas já exerciam fascínio sobre as plateias e as transportavam para um mundo mágico. Parece tudo tão fácil, tão gracioso! E viver assim, sempre viajando, sem a rotina do relógio de ponto, que coisa boa... Pelo menos, é essa, em geral, a imagem que as pessoas fazem da vida no circo. É mesmo um sonho, mas que não foge da realidade que cerca todos os mortais.

Às vezes é tudo muito grande. A começar pela estrutura do empreendimento, que pode ser gigantesca, como a do Circo dos Sonhos, por exemplo. Estabelecido na zona leste de São Paulo, no estacionamento do shopping Mooca, tem capacidade para 3 mil espectadores e sua armadura suporta ventos de até 156 km/h – velocidade de furacão. Quatro mastros centrais e 132 retinidas – cordas do mesmo nome das amarras que seguram o navio no porto – amparam e amarram a lona, que é sustentada também pelos mastaréus e pesa 6 toneladas (tensionada, é como se ela pesasse 12 toneladas).

Uma empresa

Essa espécie de coliseu ainda é, muitas vezes, uma empresa familiar. É esse o caso do Circo dos Sonhos, que compreende três unidades: a azul, que é a fixa, estabelecida na capital paulista, e as duas itinerantes: a vermelha, atualmente em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, depois de se apresentar em Itapetininga, no interior do estado; e a lilás, em Cabo Frio, no Rio de Janeiro. A direção-geral e artística pertencem a Rosana Jardim, e toda a parte empresarial e de infraestrutura está sob os cuidados do marido, Luiz Antonio Jardim. O filho, Rody Jardim, é o diretor executivo, enquanto a irmã, Lyege, preferiu exercer a advocacia, e, portanto, não trabalha no circo.

Rody também cursou direito, mas preferiu continuar trabalhando com os pais. Ele diz que o circo é uma empresa e sua função é fazer a gestão do negócio. Ele cuida da parte técnica, que engloba a montagem e a manutenção, e também “do que aconteceu, acontece e acontecerá”, segundo suas palavras. Rody faz planejamento a longo prazo e procura driblar a dificuldade na captação de recursos, contando apenas com pequenos apoios. “Hoje, dependo 100% da bilheteria”, relata, e, apesar de ser uma estrutura cara, faz o necessário para proporcionar o melhor espetáculo, com todo o conforto. Recebe currículos de artistas do Brasil e do mundo – que, contratados por temporada, acabam ficando por bastante tempo. A explicação, segundo Rody: “Pago menos do que quero e mais do que posso”.

Já seu pai, Luiz Antonio, prepara o roteiro, chega bem antes ao local onde o circo será instalado e cuida da parte burocrática, incluindo a papelada atinente aos bombeiros, ao Juizado de Menores, ao alvará da prefeitura e à Polícia Militar. Muitas exigências; todavia, o encanto e o fascínio pelo circo permanecem os mesmos. Foi esse encantamento que arrastou Rosana Jardim para debaixo de suas lonas, e lá já se vão mais de 30 anos. Hoje, diretora-geral e artística do Circo dos Sonhos, ela conta que tudo começou quando, em férias, cruzou com um circo; gostou tanto que resolveu se envolver. Fazia trapézio, arame e trabalhou tanto na área artística quanto na administrativa. E, como parte da rotina circense, passou a viver em trailers, e só nos últimos dois anos se mudou para uma casa. E viveu muito bem daquele jeito: segundo ela, quem gosta não vê desvantagem em morar num reboque. “Ali casei, tive dois filhos e nunca parei de trabalhar”.

É uma história muito parecida com a de Marlene Olímpia Querubin, presidente do circo Spacial, que até o fim de março estará estabelecido no litoral paulista, na cidade de Praia Grande. “É um estilo de vida: adoro morar aqui e viver assim”, sustenta, acomodada na varanda de seu trailer equipado com todo o conforto da vida moderna, incluindo TV, micro-ondas, fogão de quatro bocas e máquina de lavar. Em 1978, Marlene cursava o quarto ano de engenharia em Cascavel, no Paraná, sua cidade natal. Conheceu o circo e caiu de paixão: largou tudo e foi embora com ele. Sua moradia é o circo; por isso, diz, “não mudo de casa por nada deste mundo”. O reboque proporciona uma vivência muito prática, sem lugar para tranqueiras e onde cabe apenas o essencial, justifica-se. A dona do Spacial casou, teve dois filhos, e, em 1985 montou o seu circo, genuinamente brasileiro e premiado internacionalmente. “Nunca me arrependi de ter dado uma guinada em minha vida e escolhido este modo de viver”.

Boas recordações

Os que trabalham em circo moram, invariavelmente, em trailers, motohomes, ônibus adaptados e em alojamentos montados em carretas. As crianças frequentam as aulas normalmente já que, por lei, as escolas devem sempre garantir essas vagas. Por isso, a transferência para escolas de outras localidades é feita a qualquer época e sem empecilhos, considerando que o circo é um empreendimento nômade, não para muito tempo num único lugar.

As pessoas não se dão conta, mas o mundo mágico dos picadeiros também é feito por pessoas especiais. Pessoas como Gilmar Pedro Querubin, 55 anos, o palhaço Pingolé, do circo Spacial. Abraçou a profissão por puro acaso (ou por sorte). Há 28 anos, quando trabalhava como bancário, o palhaço titular do circo ficou doente e não havia quem o substituísse. Até que alguém se lembrou de Gilmar, que sempre foi alegre e brincalhão, e o convidou para o trabalho temporário, só que, contrariando as expectativas, nunca mais se afastou do nariz vermelho, das calças enormes, do colarinho alto e dos sapatos quilométricos. Querubin casou-se com uma trapezista (que acabou de receber o diploma de curso superior) e com ela tem uma filha malabarista.

Caroline Aline Rigoleto Querubin, 24 anos, a filha do ex-bancário, nasceu no circo e, por parte de mãe, compõe a quarta geração circense. Fez faculdade de Educação Física, concluída em 2010, e lembra-se que teve uma vida escolar muito produtiva (nunca repetiu a série) e divertida: “Ajudou na minha formação como pessoa”. Estudando em várias escolas e por prazos indeterminados (dependendo do tempo em que o circo permanecia na cidade), diz que manteve contato com indivíduos diferentes, e essa era “a parte mais interessante”. Antes de sair de uma escola e seguir para outra, Caroline se reunia com outras crianças e, como uma forma de despedida, se apresentava para os colegas. “Só tenho boas recordações desse tempo: meu pai me deixava muito à vontade, ao passo que minha mãe me ensinava um pouco de tudo”, recorda-se. Foi assim que ela aprendeu a trabalhar com malabares aos 14 anos, o que, para o circo, não é cedo. Desde então vem treinando e explica que é preciso dedicação, força de vontade e persistência para dominar a arte. O ordenado é bom e compensa: “Pouca gente na minha idade ganha o meu salário”. A grande tristeza é não poder se apresentar para sempre, mas tem uma certeza: “Vou trabalhar no picadeiro enquanto der e, mais tarde, vou para a direção do circo”. Seu objetivo é viajar para o exterior com o Circo dos Sonhos, seu empregador atual.

O amor pela vida circense pode começar cedo: Maria Eduarda Ferreira, 7 anos, é filha de Inajá, que faz trapézio e força capilar (acrobacia içada pelos cabelos) no circo Spacial. Ela diz que quer ser trapezista quando crescer, assim como seu irmão, José Gabriel, de 11 anos. São sonhos que, a despeito de tantas outras profissões abertas pela modernidade, continuam povoando a cabeça de muitas crianças. Veja-se o exemplo de Rafaela Jardim, 20 anos, que começou cedo e hoje trabalha no mastro chinês e na corda indiana, e faz acrobacia e trapézio no Circo dos Sonhos. É ainda o caso de Jéssica Soares, 19 anos, que também faz acrobacias e afirma que o circo está no DNA da família.

Se nem sempre a família é do ramo, e a paixão pela profissão surge depois, há um fator em comum entre esses artistas: a juventude, condição que ditou o rumo profissional de Jhonatan Cáceres, Luana Martines Sousa, 25 anos, e John Oliveira, 27, todos trapezistas. E, da mesma forma, fez o encaminhamento de César Augusto de Paula Oliveira, Ingrid Raíssa dos Santos, Mateus Filipe de Jesus Silva Orion e Rodrigo Orion, todos com idades entre 18 e 25 anos.

Faltam espaços

A grande dificuldade, de acordo com Marlene, reside no fato de as cidades não se preocuparem em destinar um espaço com infraestrutura para a atividade circense, como fazem na Europa, por exemplo. Aqui, o circo precisa alugar um terreno particular e não conta com nenhuma assistência do poder público. Enquanto que no Canadá o Estado paga uma quantia milionária para o Cirque du Soleil apenas hastear a bandeira nacional, aqui não temos nada. A presidente do circo Spacial vai um pouco além com as suas reclamações. “Foi extremamente injusta a maneira como conduziram a proibição de animais no circo”, acentua, dizendo que o pessoal do setor não foi ouvido. Atualmente, essa proibição já vale para os estados de Alagoas, Espírito Santo, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo.

De autoria do senador Álvaro Dias, o Projeto de Lei n. 7291 de 2006, que pretende estender a proibição a todo o país, já foi aprovado pela Câmara dos Deputados. Marlene comenta que todo o conhecimento, acumulado ao longo dos anos, foi jogado no lixo. Além disso, os animais foram simplesmente confiscados, sem nenhum tipo de ressarcimento – alguns deles, como o elefante, lembra, “chegam a custar US$ 300 mil”. Segundo ela, “não é verdade que os animais eram maltratados”, um argumento que vai na contramão da decisão dos legisladores que pugnam pela proibição. Uma curiosidade: o finado circo Garcia – um dos expoentes desse ramo empresarial – tinha, em seu auge, há 20 anos, um avestruz, um camelo, 59 cachorros, 35 cavalos, 19 chipanzés, dois elefantes e 11 felinos, entre tigres e leoas.

A proibição, segundo Marlene, foi um baque muito grande, que abalou o circo e afetou os artistas, tanto emocional como financeiramente. Ainda por cima, como resultado, o público se afastou. Depois, sem nenhum tipo de apoio, os empreendimentos que atuam na área se reorganizaram, com recursos próprios. “O circo, como a fênix, sempre sobrevive”, avalia Marlene.

Como ninguém nasceu sabendo, nem passou a infância em circo ou se apaixonou pelo trapezista e fugiu com ele, existem hoje as escolas de circo – os circos dos Sonhos e o Spacial mantêm suas próprias escolas. No Brasil, elas começaram a surgir há pouco mais de 30 anos, e foram precursoras a Escola Picolino de Artes de Circo, em Salvador, e pouco depois, a Picadeiro Circo Escola, em Osasco, na Grande São Paulo.

Na capital paulista existem mais algumas escolas do gênero, como a do Espaço Escola Arena de Artes das sócias proprietárias Gláucia Manzzaneira e Marília Mattos, professoras de circo e dança. Ela completou um ano de existência e já conta com 152 alunos da cidade e de municípios vizinhos, com idades entre 17 e 35 anos, e que são orientados por 12 professores. Gláucia observa que o público descobriu que praticar técnicas circenses pode trazer benefícios físicos e psicológicos, motivando e melhorando a socialização, e é bem mais divertido, prazeroso e desafiador do que malhar numa academia.

Gláucia e Marília sempre trabalharam juntas, e o circo era uma grande paixão. E a escola, por sua vez, era um sonho, que começou a ser viabilizado há cinco anos, quando Gláucia fez um curso de empreendedorismo. Hoje, a Espaço Escola Arena de Artes aplica a noção da sustentabilidade com o projeto “Areninha”, destinado a crianças de 4 a 6 anos. Há ainda outro projeto que objetiva dar atendimento a 120 crianças carentes, oferecendo uma alternativa profissionalizante e estimulando a socialização através da arte.

 


 

Arte milenar

É difícil precisar a real origem do circo. Há relatos de que as primeiras manifestações circenses surgiram na China, durante a dinastia Han, há mais de 3 mil anos a.C. No entanto, há registros ainda mais antigos, que indicam que a prática do contorcionismo já era utilizada muito antes, para o treinamento de guerreiros chineses. Foi durante o Império Romano, com o Circus Maximus, todavia, que o circo começou a tomar uma forma parecida com a que conhecemos hoje, de arena. Suas principais apresentações eram as corridas de carruagens e as lutas de gladiadores. Com o tempo, foram acrescentadas apresentações de animais selvagens. Após um incêndio que levou o Maximus à destruição, ergueram o Coliseu, cujas ruínas são hoje um dos principais cartões-postais de Roma.

Outro ponto interessante é que, ao mesmo tempo em que os soldados da cavalaria exibiam suas habilidades acrobáticas dentro das arenas, os marinheiros faziam exibições de equilíbrio nos portos e praças públicas. Surgiram assim os primeiros equipamentos aéreos, que nada mais eram do que cordas penduradas nos navios com destorcedores nas pontas, que os marinheiros utilizavam para criar e praticar os truques. Durante a Idade Média é destaque a manifestação de artistas de rua, chamados saltimbancos, que viajavam apresentando seus números circenses. Sempre de forma muito incipiente, já faziam apresentações de dança, malabarismo, pirofagia, teatro e, é claro, de números cômicos.

Foi no século 18, na Inglaterra, que surgiu o circo moderno, o Royal Amphitheatre of Arts, inaugurado em 1768 pelo ex-militar inglês Philip Astley para apresentações equestres. Baseado no princípio de que é mais fácil se manter em pé em cima de um cavalo galopando se este faz um círculo, por causa da força centrífuga, Astley decidiu-se por uma pista redonda, dando, assim, origem ao picadeiro. Por ser ex-militar, introduziu uma disciplina que até hoje se nota no circo, com uniformes, rufar de tambores e marchas.

Para deixar as apresentações mais interessantes e quebrar sua seriedade, eram alternados números de palhaços, malabaristas e acrobacias, um show de variedades que até hoje é a principal característica do espetáculo circense. Não demorou muito para que esse formato se espalhasse pelo mundo.

No Brasil, o circo chegou no século 19, trazido por famílias europeias. As principais manifestações eram apresentações teatrais com ursos e cavalos, além de shows de ilusionismo. Nessa época, os ciganos faziam apresentações circenses itinerantes nas ruas. Paulatinamente, no entanto, houve uma adaptação ao gosto do público brasileiro: os palhaços, por exemplo, que na Europa eram vestidos com roupas mais clássicas e não falavam em cena, se transformaram, ficando mais coloridos e exagerados.

Os conhecimentos das artes circenses eram sempre transferidos de pais para filhos pela característica extremamente familiar da sua estrutura. A hierarquia também é algo que se destaca, pois historicamente o circo surgiu de ideias militares. No começo dos anos 1980 surgiram as primeiras escolas de circo no Brasil.

Nessa época, mais precisamente em 1983, nasceu uma companhia canadense chamada Cirque du Soleil, que mudaria o olhar do grande público para os espetáculos circenses. Surgiram então rumores de que o circo estava se transformando e teríamos agora um Novo Circo ou um Circo Contemporâneo. Embalados pela grandiosidade da moderna indústria de fazer espetáculos, muitos artistas começaram a desenvolver trabalhos que tomam por base essa “nova linguagem”. Entretanto, a estrutura de um espetáculo circense sempre foi a mesma: um apresentador que conduz o público às grandes performances individuais e ao show de variedades. O Cirque du Soleil segue essa mesma estrutura, apenas mudou a figura do apresentador por personagens, que, trocando em miúdos, conduzem o espetáculo da mesma maneira. O que realmente ficou diferente, então? Em relação a algumas companhias, a mudança diz respeito ao investimento e à possibilidade de transformar um espetáculo de circo em uma grande produção.