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Campos, dunas e lagoas: abrigo e reprodução de muitas  espécies / Foto: José Paulo Borges
Campos, dunas e lagoas: abrigo e reprodução de muitas espécies / Foto: José Paulo Borges

Por: JOSÉ PAULO BORGES

A placa à beira da estrada anuncia: “Os ventos daqui vão gerar energia para o Brasil”, uma referência às grandes estruturas metálicas que estão sendo erguidas no extremo sul do estado do Rio Grande do Sul, beirando o Uruguai, dividindo a paisagem com plantações de arroz espalhadas pelos dois lados da pista. São mais de 200 quilômetros de cabos e torres de transmissão de energia até Santa Vitória do Palmar, onde caminham as obras do Parque Eólico Minuano – que também abrange o município de Chuí. O parque faz parte do Complexo Eólico Campos Neutrais, da Eletrosul, considerado o maior da América Latina, que terá potência instalada de 583 megawatts, energia suficiente para atender ao consumo de 3,3 milhões de pessoas, mais que o dobro da população de Porto Alegre.

A perspectiva de contar, num futuro próximo, com a alternativa de uma energia produzida por fonte totalmente renovável e limpa, que não produz qualquer tipo de poluente, deixa animados empresários, autoridades e a população. Mais ainda depois da notícia de que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) autorizou, no início de dezembro de 2014, a operação do complexo eólico. Mas há um porém: no meio do caminho existe um santuário ambiental, a Estação Ecológica (Esec) do Taim.

O Ibama já informou que “a dinâmica hídrica da área, essencial para a manutenção do ecossistema local, foi preservada”. Esclareceu também que programas ambientais vão monitorar o deslocamento de aves na região do complexo eólico. Mesmo assim, ambientalistas alertam que será “inevitável que o empreendimento cause efeitos na biodiversidade, como a criação de barreiras ao deslocamento da fauna – especialmente para as aves migratórias – e na disponibilidade de habitats naturais”. Como a região do Taim funciona como um corredor aéreo para aves migratórias, os especialistas advertem: “Muitas espécies dessas aves poderão ter suas rotas interceptadas pelas torres que fazem parte do complexo, bem como pela grande quantidade de linhas de transmissão”. Informam ainda que o ecossistema onde a Esec Taim está inserida é extremamente importante para as espécies de aves migratórias, “por seu papel como área de descanso, crescimento ou nidificação”. Por fim, alertam: “O comprometimento de uma rota de migração pode colocar as espécies em risco de extinção”.

A Estação Ecológica do Taim possui uma área total de 33 mil hectares, nos municípios gaúchos de Santa Vitória do Palmar e Rio Grande, e está incrustrada num vasto mosaico de banhados e lagoas, campos e dunas, bichos e plantas, praias oceânicas e lagunares, formado há milhares de anos durante os últimos, e geologicamente recentes, avanços e recuos do Oceano Atlântico. Neste processo, grandes extensões do oceano ficaram retidas, dando origem ao maior sistema lagunar da América do Sul, composto pelas lagoas Mangueira, Mirim e dos Patos, além de banhados e lagoas menores. Esta formação se estende até os Bañados del Este, na província de Rocha, no Uruguai, e integra a Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, de importância reconhecida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) devido a presença de espécies ameaçadas de extinção e endêmicas.

“Terra de ninguém”

São muitas as lendas sobre a origem do nome Taim. Os indígenas – charruas, minuanos e guaranis – que chegaram à região há cerca de 2.500 anos, e mais tarde foram dizimados pelos colonizadores europeus, teriam batizado o local em reverência à deusa Itaí, ou para lembrar um rio estreito que deságua na lagoa Mirim. A versão mais aceita, porém, atribui o nome ao grito “tahim, tahim” produzido por tachãs, aves habitantes de brejos e banhados que se destacam pelo chamado alto, feito por um indivíduo ou pelo casal, em dueto. O tachã grita a qualquer momento do dia, avisando sobre sua presença ou alertando sobre a existência de intrusos.

Na época do Império, a região, então chamada “Campos Neutrais”, foi alvo de disputas entre Portugal e Espanha. O Tratado de Santo Idelfonso a declarou “terra de ninguém”: território proibido para a criação de povoados bem como o estabelecimento de acampamentos e tropas. Em 1821, o Taim foi anexado ao Brasil e ocupado pelos gaúchos – os nativos do local, gente com pendores guerreiros e forte influência de espanhóis e portugueses.

Convivem no Taim hoje em dia comunidades formadas por pequenos núcleos rurais que sobrevivem, principalmente, dos recursos locais: pesca, cultivo do arroz, pastagens, florestas renováveis de pinus e eucaliptos, além da pecuária. Agrovilas conhecidas como “granjas” complementam as comunidades do local. Um dos testemunhos mais significativos da história dessa gente é a Capela de Nossa Senhora da Conceição, a “Capilha”. Construída pelos espanhóis no ano de 1785 e reconstruída em 1844 à beira de uma praia estreita da lagoa Mirim coberta de dunas, atualmente a Capilha está fechada e apresenta-se quase em ruínas, enquanto aguarda a concretização de um projeto de restauração.

Conforme a legislação ambiental brasileira, a Estação Ecológica do Taim é definida como “de relevante interesse ambiental”. Criada em 1986 com o objetivo de preservar a natureza, a reserva está regulamentada por lei e nela a visitação é permitida apenas com fins educacionais. A realização de pesquisas científicas no local precisa ser autorizada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), autarquia vinculada ao Ministério do Meio Ambiente e que administra a reserva. A Esec Taim destaca-se como lugar de abrigo, alimentação e reprodução de diversas espécies, e também como um dos criadouros de maior significado ecológico do sul do Brasil, abrigando espécies que correm o risco de desaparecerem. A diversidade de aves na reserva chama a atenção. Algumas delas vivem na unidade o ano todo, boa parte, porém, são viajantes voadores de passagem pelo local, vindos de lugares remotos do Cone Sul e do Hemisfério Norte. O colheireiro e os flamingos de penas rosadas, por exemplo, vêm do Chile, já os maçaricos encontram no Taim abrigo e comida depois de uma longa viagem desde o Canadá.

Existe por lá mais de 230 espécies de aves, entre marrecões, cisnes brancos, cisnes-de-pescoço-preto, tarrãs, maçaricos e gaviões. Reduto de répteis e anfíbios, no banhado do Taim, o maior de todos, avista-se, com relativa facilidade, o jacaré-do-papo-amarelo e a tartaruga-tigre-d’água. A capivara é extremamente abundante, e o graxaim-do-campo é mais visível ao entardecer. Animais ameaçados de extinção, como a lontra e o gavião-cinza, encontram refúgio em áreas mais remotas da reserva ambiental.

A flora é perfeitamente adaptada a essa região costeira salpicada de áreas alagadas. São mais de 200 espécies, desde os capinzais e arbustos dos campos e dunas, até os capões de mata de restinga. Muitas das plantas que brotam no Taim são consideradas medicinais, outras, como a orquídea, têm valor ornamental reconhecido, sendo que a distribuição da flora responde a fatores como vento, solo, água e à temperatura típica da região. Os banhados desempenham papel importante para a manutenção do equilíbrio ecológico de toda a região. As funções desses charcos incluem desde produção de alimentos, estocagem de nutrientes e conservação da biodiversidade, à contenção de enchentes e controle da poluição. 

Depois do raio, o fogo

Com relação à presença de répteis, há o registro de mais de 20 espécies, sendo que algumas se encontram na lista nacional de ameaçadas de extinção. Quanto aos anfíbios, já foram catalogadas 18 espécies. De acordo com pesquisadores, o banhado do Taim é propício ao desenvolvimento de anfíbios, de formas e quantidades variadas. Quanto aos mamíferos, especialistas apontam a existência de mais de 40 espécies, incluindo algumas ameaçadas de extinção, como o gato-do-mato-grande.

No entorno dessa unidade de conservação (UC) o solo é utilizado para diversos fins, principalmente o cultivo de arroz irrigado, que ocupa grandes áreas. Esse tipo de exploração utiliza, nos meses de verão, quantidade intensiva de água. A orizicultura irrigada promove sensível redução do nível das lagoas e charcos em um período de baixa precipitação e acaba afetando o nível de água no sistema Taim. Existem também na região duas grandes empresas reflorestadoras que trabalham com espécies vegetais exóticas: o Pinus spp. e o Eucalyptus spp.

Além de contribuir para a manutenção da biodiversidade e oferecer vasto campo para o desenvolvimento de pesquisas científicas, a Esec Taim desempenha importante papel para a agricultura regional, que tem o arroz como seu principal produto. O banhado do Taim, o maior da reserva, atua como controlador de água na região. Na estação de chuvas, por ter 20 mil hectares de área e contar com muita vegetação, ele retém bastante água. Já na época de seca, preserva o recurso para a utilização em atividades agrícolas e também para o consumo animal. A reserva é abastecida por quatro lagoas, que também servem como fonte de água para a agricultura. “O volume de água das lagoas determina a quantidade plantada nas lavouras”, sintetiza o oceanógrafo Caio Eichenberger, analista ambiental da Esec Taim.

O fato de dispor de grandes áreas alagadas não implica que o parque não possa correr o risco de incêndios. No início de 2013, o fogo, imagina-se que provocado por raios, se alastrou por áreas de difícil acesso do Taim, e, como tal, impossíveis de serem alcançados por carro ou embarcação. Nos seus mais de 25 anos de trabalho na reserva, Elemir de Quadros, agente do ICMBio, nunca tinha visto coisa igual. “Parecia que o fogo não ia acabar nunca, e a noite era assustadora”, recorda. “O pessoal que combateu o incêndio trabalhou mais de dez horas ininterruptas”. Os primeiros sinais do incêndio foram avistados na manhã do dia 26 de março, e as chamas ganharam força no meio do banhado. Rapidamente o fogo se alastrou, juntamente com os problemas.

Para evitar que o incêndio aumentasse, pelo ar, aviões agrícolas de empresas da região iniciaram o combate, despejando a cada voo 600 litros de água. Isso era quase nada. Com três dias de atraso, três aeronaves contratadas pelo ICMBio chegaram para entrar na luta contra o fogo. A cada dia, dezenas de voos eram feitos, agora com 6 mil litros de água em cada avião, que também se mostraram insuficientes. Brigadistas (policiais) foram convocados para o combate quase impossível por terra, trabalho que só podia ser executado em áreas mais secas. Mesmo assim, o enfrentamento no banhado foi determinante para diminuir os estragos. “No nono dia, São Pedro deu uma ajuda”, conta Elemir. No início da tarde do dia 3 de abril começou a chover, e às 16h30 o incêndio foi declarado extinto.

Atropelamentos

Foram mais de 200 horas de fogo que consumiu 5,6 mil hectares de vegetação da reserva, o equivalente a 12 mil campos de futebol. Especialistas estimam que a época em que o incêndio aconteceu contribuiu para evitar um dano maior àquele santuário. Segundo dizem, o prejuízo ao ambiente teria seria maior se o fogo tivesse se alastrado no período de reprodução das espécies. Quanto à flora, como o incêndio consumiu principalmente a vegetação acima do nível de água, a submersa resistiu. Quatro meses depois do triste acontecimento, metade da vegetação afetada havia se recuperado. “Animais de maior porte conseguiram escapar, já os de pequeno porte podem ter usado a água como refúgio, mas algumas espécies foram prejudicadas pela destruição de seu habitat”, avalia Eichenberger.

Não é apenas o fogo, entretanto, que coloca em risco a vida dos bichos do parque. Vez por outra eles morrem tentando atravessar a BR-471, rodovia federal que passa pelo parque vindo do município de Soledade a caminho de Chuí, depois de passar por Santa Cruz do Sul, Encruzilhada do Sul, Pelotas, Quinta (distrito de Rio Grande) e Santa Vitória do Palmar.

Naquela manhã de sol e vento, em novembro de 2014, a tartaruga-tigre-d’água que atravessava aquela rodovia na altura da Esec Taim – com sua peculiar falta de pressa –, tinha uma chance em dez, pelo menos, de virar mais um número nas estatísticas de mortalidade animal registrada naquele trecho, provocada principalmente pelo tráfego de caminhões pesados carregados de grãos, ou transportando equipamentos para os parques eólicos em construção. Sorte da tartaruguinha que, na altura do quilômetro 545, justamente no instante em que ela tentava alcançar o outro lado da pista, o carro que trafegava por ali era dirigido por Eichenberger. O ambientalista não pensou duas vezes. Parou o carro no acostamento e correu para socorrer o bichinho, tomando o cuidado de manter seu corpo a uma distância segura do jato forte de urina que o animalzinho solta quando fica assustado. Nos dez primeiros meses de 2014, segundo levantamento de técnicos da Esec Taim, 198 animais, entre mamíferos, aves e répteis, foram atropelados no pedaço da rodovia federal que atravessa a reserva ambientalmente protegida. No entanto, esses números podem estar subestimados, porque muitos bichos mortos acabam não sendo contabilizados por terem sido retirados da pista por espécies que se alimentam de carcaças, ou por morrerem longe do local de atropelamento.

Ao cortar a Esec Taim, a BR-471 apresenta condições propícias para atropelamentos: pista simples e praticamente em linha reta, acostamento estreito e limite de velocidade média permitida de 60 quilômetros por hora que nem sempre é obedecido. Em 1998, numa extensão de aproximadamente 15,7 quilômetros, foi instalado o Sistema de Proteção à Fauna (SPF), composto por túneis para permitir a passagem de animais sob a rodovia, placas de sinalização para motoristas, telas próximas ao acostamento em partes do trecho, “mata-burros”, além de um controlador de velocidade afixado na metade do percurso onde não havia previsão de instalação de telas. O controlador de velocidade que havia sido implantado na parte central do trecho foi simplesmente depredado e diversos pontos do telamento derrubados. Fortes chuvas, em 2002, assorearam os túneis e vários pontos onde antes havia telas foram tomados pelo mato. Entre julho de 2011 e janeiro de 2012 foram realizados trabalhos de reparação dos danos e restaurados cerca de 80% da estrutura.

Levantamento do período compreendido entre 1995 a 2002 concluiu que o SPF não foi competente para a redução da mortandade da fauna, com as taxas de atropelamento se mantendo fixas, exceto para o ratão-do-banhado (Myocastor coypus), relata a analista ambiental do ICMBio, Rosane Nauderer. “O problema central é que os dados são insuficientes para uma análise conclusiva sobre a efetividade do sistema de proteção, visto que não existem registros de monitoramento dos túneis como alternativa à circulação da fauna, além de nunca ter sido realizado acompanhamento conjunto dos eventos de atropelamento e das condições de manutenção das estruturas físicas do SPF”, avalia a analista.

“Além disso, alguns grupos [de animais] têm maior probabilidade de continuar sofrendo atropelamentos, como as aves e os pequenos répteis e anfíbios, que dificilmente serão contidos em sua totalidade, pois são extremamente abundantes no banhado do Taim”, acrescenta a analista ambiental. As maiores vítimas de atropelamento são as capivaras, espécie abundante no Taim. No final do dia, é relativamente comum ver grupos do mamífero roedor atravessando a rodovia em fila indiana, liderados por um macho adulto e com as fêmeas logo atrás, seguidas pelos filhotes. “Contam-se diversas outras espécies de mamíferos, inclusive algumas ameaçadas de extinção, com registros de morte na rodovia. Este é um aspecto importante que deve ser levado em consideração na análise das causas de atropelamentos e na decisão por medidas de mitigação necessárias”, destaca Rosane.

Na tentativa de diminuir a incidência de atropelamentos, a Esec Taim e a Polícia Rodoviária Federal realizam barreiras conjuntas regulares na estrada. Durante essas operações, radares móveis flagram motoristas trafegando pela área protegida em velocidade bem acima da permitida. Há, inclusive, registros de veículos multados duas vezes.