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Matérias da edição

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Ficção Inédita
Enxadeiros

Por Hélio Pólvora

De tão baixa, a neblina é um lençol desdobrado sobre a terra. Árvores e matos rasteiros recolhem gotas de água do alvorecer e cedo estarão a pestanejar sob o sol. Na casa de taipa esburacada à beira da estrada, por onde entra a neblina, Josefa sacode um vulto na cama de varas.

- Acorda, vei' Júlio.
O vulto encolhido resmunga.
- Acorda, vei' Júlio, que é pra ir trabaiar.
O vulto estende as pernas. Deixou de ser um feto tisnado, é um adulto queixoso.
- 'Tou com frio, Zefa.
E tenta puxar até o queixo, coberto por uma barbicha de pelos brancos, um roto cobertor negro de barras vermelhas, desses que se vendem à porta das lojas na cidade e custam pouco porque quase nenhuma lã.
Josefa, uma velha de saia de chita e pés descalços, apesar da friagem da manhã, dá-lhe um safanão no ombro. Não quer machucar o velho, mas tem de ser enérgica, se não ele fica na cama, volta a pegar no sono, adeus trabalho e adeus ganho. O patrão desconta dias perdidos na folha semanal.
- Acorda, peste.
Só então o velho Júlio abre os olhos, com o indicador remove a remela dos olhos, senta-se no varal, a perna lhe dói na altura do joelho. É o maldito nó no pau. Um dia, quando estiver disposto, ele afia o facão e aplaina o nó que lhe provoca agressões pelo corpo. Pinóia de vida. Diabo de nó mais duro.
Perto, um galo canta atrasado. Em redor da casa do velho Júlio não há galinhas ciscando, mas um cachorro sacode-se e gane, tentando catar com os dentes as pulgas no pêlo coberto de feridas. Matos raquíticos, ressequidos, carreiros abertos por formigas laboriosas no chão arenoso. Os frutos de uma jaqueira, compridos e pensos, parecem peitos caídos de mulher velha. O velho Júlio leva o caneco de água aparada do pote de barro até o meio do terreiro e leva o rosto. Com o caneco vazio a roçar o quadril, fica a cismar. O olhar vara a espessura dos matos, em vão. Tudo igual. Eta siô. Mundo besta, vida lerda.
Josefa, que estava a mexer no fogão de lenha, lhe traz um caneco de café preto e metade de uma broa dormida de muitos dias.
- Come, vei' Júlio.
O velho olha-a sem entender. O olhar vazio passa além da mulher, perde-se na neblina. A mão livre sobe até o queixo, coça a barbicha rala.
- Come, vei'Júlio, pra ir trabaiar.
- Só isso, Zefa?
- Come, vei'Júlio, que a mistura é só uma.
O cão fareja comida e se aproxima de cauda baixa, olhos tristes de pedinte.
- Arreda, infeliz - e o velho lhe dá um ponta pé no flanco.
O cachorro corre ganindo para o matagal. Josefa senta-se na pedra que serve de acesso à porta de frente da casa. Passará ali boa parte da manhã, a matutar ou tirando um cochilo, enquanto o marido, na roça, pega no pesado. Uma pontada mais forte no estômago vem lembrá-la que é preciso arranjar o de-comer. Josefa levanta-se, vai atrás de uma jaca madura, ou pega um anzol e tenta fisgar um caborje no ribeirão. Os peixes estão escassos, quase tudo é piaba. No rigor do verão a água empoça e os peixes maiores são apanhados no jereré ou no anzol de isca de minhoca. Se a busca falhar, sempre restam caroços de jaca. Cozidos com sal enganam a fome.
Nas plantações, o velho Júlio, que tem muitos anos nos ombros curvos (ou na cacunda, como dizem), arrasta a enxada. O patrão está perto. Aquele homem poderoso, que lhe paga o trabalho da semana no sábado, depois de fazer contas complicadas com um lápis retirado da orelha, não tem precisão de pegar no cabo da enxada. Mas para dar o exemplo, para fiscalizar melhor, mete-se entre os trabalhadores, sua o rosto meia hora, afasta-se, volta a capinar um tanto, vai beber água no cor'go. Velho Júlio cata nos bolsos em busca de fumo e palha para um cigarro.
- Vosmicê já enrolou três - adverte o patrão.
O olho é duro. O velho deixa o cigarro para depois e empunha a enxada. A terra, ali, até que está lisa e úmida, por causa das limpas constantes no mandiocal que protege o cacau novo, mas o velho parece puxar um pesado grilhão de ferro com lâmina cega. A enxada é detida em tufos grossos de espinhos, ou em tocos, e o velho, na ânsia de arrastá-la com as ervas daninhas, solta o cabo, perde o equilíbrio e rola pela encosta. Os trabalhadores riem, encostados aos cabos das enxadas, e o patrão, com ar severo mas um brilho de troça luzindo no olhar, pergunta, cortante:
- Vosmicê comeu hoje?
- Comi, inhor sim.
- Pois não parece. Está bambo, sem lastro.
Os trabalhadores riem e aproveitam a pausa para enrolar mais um cigarro. O patrão passeia olhos aprovadores pelas plantações. Outra enxadada travada, outro tombo, as risadas aumentam. Velho Júlio olha para o alto, mede a altura do sol no céu azulado. Ainda está longe o meio-dia. Faltam duas horas, falta uma? O velho pensa no instante em que o patrão suspenderá o serviço, com uma ordem seca, e o velho, sentado sob a verdura imobilizada, mergulhará os dedos na cuia de farinha e, com a cabeça pendida para trás, atirará porções de farinha no céu da boca.
Será que Zefa pegou algum peixe? Será que encontrou na armadilha junto da tangerineira um saruê enrijecido? Só de imaginar isso lhe dá água na boca.
No outro dia, bem cedo, a cena se repete:
- Acorda, vei'Júlio, pra ir trabaiar.
E depois de lavar a cara no centro do terreiro:
- Come, vei'Júlio, que a mistura é só essa.
- Está bem, Zefinha.

2

Tinha cara de índio. E jeito manso, dissimulado, de bugre de verdade, desses nascidos e criados nas brenhas, lá nos cafundós dos infernos.
Chegou-se sorrateiro e me pediu uns dias de trabalho.
Calculei-o de alto a baixo: atarracado, um tampa-de-binga. Porém um touro. Aquela carnação era músculo puro, e retesado.
O bugre pareceu adivinhar o que eu tinha no bestunto. Estendeu as mãos, palmas para cima.
- Sou bom de enxada, vosmicê vai ver.
Mãos grandes, um calo só. De tão grossas parecia difícil dobrá-las. Ora, eu precisava de serviço. Resolvi experimentar o bugre.
E do mesmo modo que tinha chegado, com a roupa do corpo, apenasmente arregaçando as pernas da calça até o joelho, o bugre entrou na roça e empunhou a enxada. E eu logo vi que o instrumento lhe era familiar, corria ligeiro em suas mãos como pena amestrada de doutor, cantava bonito como teclado de piano ferido por dedinho mimoso de donzela prendada.
O serviço do bugre rendia. Não era desses que rodam no mesmo lugar, enrodilhado, cascavelando aqui, cascavelando ali. Inhor não. Punha sustança nos arremessos, nos empuxes. A enxada cavava fundo, uma escavadeira. Raçudo, o bugre. E calado, mais que calado, fechado. Seria minister bater naquela boca como se bate em porta pra que ele corresse a taramela interna. Me alembro que só suspendeu a vista, aquele dia inteiro, umas três vezes, para olhar o céu, medir o curso do sol e perguntar:
- Não tem jaca madura por perto?
- As jacas acabaram.
Numa das vezes, em vez de perguntar, o bugre observou, fungando o nariz achatado:
- Estou farejando jaca.
Silêncio. No intervalo do almoço, enquanto os outros desatavam o pano com a farinha e a lasca encardida de jabá, o bugre disse que ia andar por ali, tinha ouvido barulho de arroio minando.
- O índio 'tá com fome - disse um trabalhador.
- É, e não trouxe merenda.
- Não 'viu que ele perguntou muito por jaca? Pois 'tá com fome - insistiu o trabalhador.
Bem - o que eu podia fazer?
Em pé, o bugre parecia um toco chamuscado em queimada. Grosso, desses que espalham raízes fundas na terra. E sempre fechado, encalacrado, lá em conversas consigo mesmo ou com o morubixaba de sua tribo perdida. No seu rosto não perpassava sequer a nuvem esfiapada de um pensamento. Até que veio o sábado, com o pagamento da semana - e ele, com a mesma calça e camisa, a mesma cara enfezada, aquele tique de repuxar o bigode ralo prum lado, sumiu-se com os companheiros de turma pra fazer o saco em Rua-de-Palha.
Voltaram no lusco-fusco, como sempre acontecia. E às quedas, como de hábito. O bugre, camisa aberta no peito, pés que eram marretas engessadas pela lama dos caminhos, mas de olhos buliçosos e chamejantes, em vez de entrar na sua casa-de-palha veio me procurar.
Eu estava sentado no alpendre, ele se chegou e tomou assento no chão, as costas apoiadas no balaústre. Seus olhos me procuraram. Estavam afetuosos, úmidos, eram brasas esmaecidas que, no entanto, alumiavam bem. O rosto sorria.
- Senhor bom, me deu trabalho - disse o bugre.
Balancei a cabeça: era verdade.
- Eu tinha fome, três dias comendo besteiras nos matos - disse o bugre.
- Ah, lá isso eu imaginei.
- Senhor não imaginar tudo - disse o bugre.
Fez uma pausa, estirou as mãos enormes.
- Senhor não poder imaginar tudo - disse com uma raiva súbita.
Me sobressaltei. Eu ali, na escuridão que caía sobre a pastagem, sozinho com o bugre dos infernos. Procurei o facão. Longe, pendurado na sala dos arreios. Pensei no revólver. Escondido numa gaveta, na camarinha.
- Apanhei muito - disse o bugre.
A voz me tocou pela brandura e por uma nota dorida, aguda, próxima do choro.
- Hoje?
- Hoje não. Antes.
E fez um gesto com os braços, abarcando o mundo, o tempo.
-O cabo de polícia me pegou. Me disse que era pra eu estender as mãos, abrir bem as palmas. Assim.
O bugre estirou as mãos, palmas para cima - aquelas mãos brandas, certeiras no manejo da enxada.
- Disse que era pra eu abrir bem, senão a palmatória me quebrava os dedos. Eu abri logo, eu proteger meus dedos, pois não?
- Quando foi o sucedido? Quem era o cabo?
Enrolou uma lenga-lenga que não decifrei direito, cheia de repetições, de peripécias que se contradiziam. De repente, parou de falar. Encostado nas tábuas roletadas do balaústre, ressonou. Parecia um toco, um tronco, um toro tisnado ali largado na varanda que semelhava uma barcaça e esta solta na maré do anoitecer. Que durma. Que cure a carraspana. Que acorde bom no domingo. Que descanse pras labutas da enxada na segunda. Que se fortaleça no sereno.
Os dias se repetiam, trabalho e somente trabalho, de noite o negrume cercando as casas, a solidão era espessa. Nos domingos descia sobre os campos a mortalha da mais pesarosa tristeza que já conheci. Tudo estagnado, com jeito de lodaçal, tudo baço. Calado, enfiado nos seus adentros, o bugre repuxava num tique nervoso o bigode ralo. Tinha os olhos apertados, trevosos. Nas horas de folga, sentado na pedra lisa que servia de degrau na porta de sua casa-de-palha, furava o solo com a ponta do facão.
Mas os sábados e domingos eram gastos, quase todas as horas, menos as de dormir, em fazer a feira na Rua-de-Palha e beber. Trazia sempre um litro de aguardente no embornal. Loquaz, quando bêbado e bebido, tropeçava nas palavras, repetia, dizia e desdizia-se, jurava e esconjurava. As mãos, aquelas mãos que acariciavam o cabo da enxada, tinham inchado, ele precisou aplicar salmoura.
- Vinte bolos, meu senhor. Vinte bolos aplicados com toda a força do braço do cabo de polícia.
-Mas por quê? Qual foi a sua arruaça?
O bugre ignorava a pergunta.
- Quarenta bolos, um atrás do outro, eu ia contando e gemendo. E teve um momento que não agüentei, o mijo escorreu quente pelas pernas, dentro da calça.
As lágrimas que lhe enevoavam os olhos correram, uma vez, pela cara achatada. Desciam lentas, como envergonhadas de rolar em cara de bugre macho que havia enfrentado onças. Uma delas parava no canto da boca, formando ali uma gota cristalina.
- O cabo batia - chorava o bugre. - Uma dúzia de bolos de arrebentar as mãos. Esta aqui que o senhor está apertando agora.
E me forçava a um aperto de mão esmagador. Noite escura, de raras estrelas, no céu a foice da lua nova. Os soluços do bugre quebravam o silêncio como pedras atiradas em poço fundo.

Hélio Pólvora é escritor e autor de O Rei dos Surubins (Imago) e A Guerra dos Foguetões Machos (Orabem, edição portuguesa).