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Personalidade
A caverna de José
O escritor português José Saramago, prêmio Nobel, esteve no Sesc Pompéia para o lançamento do livro A Caverna, pela Companhia das Letras. A seguir, trechos de sua palestra
Nesse meu último livro, A Caverna, há um trecho em que o narrador começa a refletir sobre o afeto, o amor. É a situação de duas pessoas que se aproximam no mesmo dia em que se vão separar, não definitivamente. Dessa vez, decidi, embora tudo fique em suspense, de não acabar um livro de morte, drama, angústia. E agora que eu disse essa palavra 'angústia', recordo-me que, no livro, o protagonista Cipriano Algor falou mais ou menos assim em uma conversa entre ele e sua amada: "Sou uma espécie em vias de extinção". Acho que não seria má idéia, não porque o tivesse dito eu, mas porque é uma evidência, todos os dias e todas as horas, que há no mundo espécies em vias de extinção. Espécies animais, até mesmo vegetais. Atividades que desaparecem. Línguas que vão morrer porque deixaram de ter quem as falasse. Existe uma espécie de crueldade, talvez não totalmente consciente, mas que talvez usurpe a própria natureza das coisas e a própria separação, de uma maneira incontrolada. Existe realmente a extinção de tudo o que eu acabei de dizer, mas também a extinção dos valores morais, daquilo que nós chamávamos valores de relação, de comportamento, valores de sociabilidade, de convivência, de reconhecimento mútuo, valores de respeito. Toda a minha conversa que tive em Portugal - onde andei a viajar pelo interior do país - em Moçambique e aqui no Brasil, quiseram as circunstâncias que fosse, sobretudo, sempre centrada na questão da transposição do mito da caverna à situação atual em que vivemos.
Em A Caverna, está presente intensamente o sentimento da ternura. Coisa nova no meu trabalho. A expressão evidente da sensibilidade são aquelas situações em que as pessoas não se importam de mostrar-se frágeis, de tirar a máscara de uma falsa segurança, de uma falsa força, de uma falsa superioridade, e isso se revela na fragilidade infinita que é no fim de contas a do ser humano.
Parece um tanto contraditório quando se sabe que sou um cético. Quanto às virtudes da natureza humana, defendo uma tese que não pode ser contrariada, não porque seja minha, mas porque corresponde às evidências de que o ser humano é o único ser cruel que existe no planeta. Não há mais crueldade no mundo senão a crueldade do ser humano. Não há mais tortura no mundo senão a tortura que o ser humano inflige ou sofre. É realmente assombroso como essa espécie que somos nós é capaz de inventar e criar em todos os campos - então portanto todas essas coisas que obviamente não existiam na natureza - como a Capela Sistina. Mas, por outro lado, fomos capazes de inventar algo que também igualmente não existe na natureza, que é a crueldade e a tortura. Então, a angústia deveria ser motivo de uma reflexão: como somos capazes do infinitamente belo e do infinitamente horrível, e fazer tudo isso coincidir na mesma espécie, na mesma cabeça humana.
É como eu digo: se Romeu tivesse os olhos da águia, nunca se enamoraria de Julieta, olharia pra ela e a pele vista pelos olhos de uma águia seria uma pele horrível. Então o mundo é aquilo que os nossos órgãos de apreensão permitem captar. Esses seres capazes de todas essas coisas são cruéis e torturam. Ouvi dizer que devemos amar-nos uns aos outros quando, afinal de contas, poderíamos ter realizado algo melhor: respeitar-nos uns aos outros. É possível que o respeito tivesse mais influência, mais ação que o amor.
Com o Ensaio sobre a Cegueira, Todos os Nomes e A Caverna, completo aquilo que chamei de "trilogia involuntária". Completa-se uma visão sobre o mundo, pessimista, como tão freqüentemente se diz, ou menos otimista do que deveria ser. Aliás, devíamos parar de dividir a humanidade em pessimistas e otimistas. Isso é desviar do que é fundamental: os fatos. Não é por ser encarado de uma maneira pessimista ou otimista que um fato muda. O fato é o fato. Se as coisas correm mal, creio que nossa pergunta deve ser: e por que o mundo não é melhor? De certa maneira ainda temos a vida nas mãos, ainda podemos organizá-la, reorganizá-la e desorganizá-la quantas vezes nos apetecer. Não creio que estejamos satisfeitos com o mundo em que vivemos. Também não creio em idealismos, nem liturgias, nem religiões, nem guias espirituais, em nada disso. Sou suficientemente materialista para saber que no dia em que a doença de Alzheimer me atacar, eu deixo de ser quem sou. Enfim, nossa razão é isso, esse instrumento de averiguar, saber, investigar, duvidar - não há nada pior do que as certezas -, essa coisa que nos leva a criticar, esse não-querer aceitar as verdades só porque dizem que as verdades são verdades, essa capacidade que criamos ao longo de um processo evolutivo de milhões de anos, até criar um cérebro. Apesar do Prêmio Nobel, tenho uma mulher a quem eu quero e me quer, tenho uma casa construída com livros, conhecido em todo o mundo, traduzido em 44 países, 36 línguas, o que é que eu quero mais? No dia em que eu sair deste mundo, eu só queria que tivesse na minha lápide, seria uma coisa assim: aqui jaz, indignado, fulano de tal, e depois, as datas. Indignado por quê? Em primeiro lugar por já não estar mais vivo, mas também por ter entrado num mundo injusto e ter saído de um mundo injusto.
E pensar que a gente vem a este mundo para fazer qualquer coisa e a primeira coisa é ser. E que depois vamos embora com essa espécie de remorso que nem sequer tem grande justificação, porque talvez não tenhamos feito tanto mal a ponto de ter remorsos, mas remorso de que nada valeu a pena. Sempre fomos educados a sentir uma culpa. E a nossa é a de simplesmente não sermos capazes de viver humanamente. Creio firmemente que as coisas se passaram assim: Deus criou o homem, e está claro que tendo criado o homem depois do Universo, criou o homem para o Universo; estivesse decidido a sua mais suprema criação, o ser humano, viria a colocá-lo numa galáxia insignificante, num canto do espaço, num planeta deste tamanho, colocar aqui o mais sublime que a sua imaginação de criador poderia uma vez ter concebido, o ser humano, a sua imagem e semelhança? Não. Deus pôs o homem em todo o Universo. Essa é minha teoria. Depois começou a ver o que se passava e percebeu que se não interviesse imediatamente, o homem daria cabo do Universo. Recolheu os nossos antepassados e colocou-nos aqui. Somos uma espécie de vírus mortal. A nossa diferença é que os vírus não se matam uns aos outros. Nós somos um supervírus que não só destrói aquilo que toca, mas se autodestrói.