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Punks: 20 anos de rebeldia

Como anda o movimento nascido na Inglaterra que, no Brasil, surgiu nas periferias das grandes cidades, pregando anarquia e o fim do sistema?

Após a overdose de paz, amor e LSD, o movimento hippie, em sua fase final, transformou uma juventude ativa numa geração "à-toa". Na década de 70, caminhando na contramão desse grupo - em sua maioria de classe média - surge um outro grupo jovem oprimido pelas mazelas sociais, que extravasava uma rebeldia simples e crua. É o movimento punk, que desembarca da Inglaterra, inspirado por bandas inglesas como Sex Pistols e The Clash. O ideário revoltoso entra no Brasil através dos subúrbios paulistanos em 1976, época marcada por crise econômica e desemprego crescente.
No entanto, os punks ficaram latentes, confinados nos seus guetos originais, até 1982, data chave para a eclosão do movimento. Naquele ano, tem lugar no recém-inaugurado Sesc Pompéia o festival O Começo do Fim do Mundo, que reúne mais de vinte bandas da cena e atrai público de toda a cidade, engajado nos ideais das letras e do visual punk. Elisa Gargiulo, 20, vocalista da banda Dominatrix, conta que "o punk antes de 80 era meio dissipado, muito mais visual e baladas do que político. O festival já demonstrou uma organização maior, com intuito de mostrar uma identidade própria. Ao mesmo tempo, nos EUA, em Washington, o punk já adquiria uma configuração mais social e começava a ficar mais refinado".
"Havia muitas possibilidades de postura de todos que estavam aderindo ao movimento. Naquela época, usar uma jaqueta virada e cabelo moicano causava impacto. O punk permite que cada um seja cada um", comenta Redson Lopes, 38, integrante da banda Cólera, que se apresentou no festival e toca até hoje.
Quem é o punk?
Mas, afinal, passados vinte anos, o que caracteriza o movimento na entrada do século 21? "Hoje em dia o movimento não tem mais teor de classe. Poucos punks daquela época tinham estudo. Hoje vejo muitos punks de classe média, na faculdade. Eu tive experiências com um pessoal do cais e com bandas de classe média-alta, como o Holly Tree, e notei que todos estão integrados. É uma questão de comportamento", argumenta Antônio Bivar, 59, escritor e dramaturgo, autor de O que é punk e interessado pelo movimento. Para Rafael Covre, 25, da banda Flicts, "o punk sempre foi e sempre será aquela minoria pentelha, pedra no sapato, pronta a peitar, sacanear e destruir qualquer tipo de autoridade". Embora se fale muito sobre a diluição que o movimento sofreu, Elisa acredita que "desde aquela época até hoje vários discursos estão sendo inseridos dentro do que seria a cena punk, e está ficando uma coisa mais politizada e segregada no sentido de centralizar os mais diversos interesses". Atualmente há mais diversidade, o movimento está mais eclético. "Hoje tem até o chamado pop-punk, como o conjunto Green Day. Antes era uma coisa mais de grupo, de união, hoje parece que está mais individualizado", afirma Redson, do Cólera.
O que unifica os punks espalhados por São Paulo, pelo Brasil e pelo mundo sempre foi e ainda é a troca de informações e divulgação de idéias. Bivar conta que na década de 80 "eles se encontravam na Galeria do Rock, na rua 24 de Maio, Centro, e iam mostrar o que tinham arranjado sobre o movimento no mundo. Trocavam informações sobre discos, bandas, shows, fanzines etc. A circulação de informação era muito escassa, então se aproveitava tudo. Uma grande diferença entre as duas épocas é a tecnologia, que evoluiu muito. Hoje é muito fácil gravar um CD e divulgar uma banda. Acho que isso é superpositivo porque cria uma 'massificação punk'".
Mas Elisa aponta para o fato de que "se por um lado é legal atingir outras pessoas pra encontrar seus iguais, por outro, se perde a crítica. Antes saía um disco e todo mundo parava pra pensar e se falava naquilo por muito tempo. Hoje em dia existem bandas em série, coisas que a gente não consegue nem definir".
Essa questão conduz a uma outra que acompanha o movimento há muito tempo e, de fato, molda a essência do ideário punk: a luta contra o sistema. "Não acho que hoje se possa 'lutar' contra o sistema, mas sim ter a consciência do que está errado nele. E o movimento hoje acaba sendo contra o sistema porque não precisa dele. Os punks têm independência dessa mídia, da MTV, da revista Showbizz. Eles agora têm uma coisa muito valiosa para a circulação de informações que é a Internet, que os coloca em contato com o mundo", defende Bivar. No mesmo sentido, Redson opina que "se você é radicalmente contra o sistema, então você tem que sair da cidade, encontrar um grupo com os mesmos ideais e prover seu próprio sustento. É possível lutar contra as coisas que estão erradas e trabalhar honestamente para sobreviver".
Mesmo sendo da segunda geração do movimento, Rafael concorda que "com o tempo, a indústria cultural absorveu o punk e o esterelizou. Daí veio o punk 'enlatado' e coisas do gênero, mas surgiram muitas coisas boas também. As bandas que chegaram às grandes mídias não o fizeram por objetivo, e sim como conseqüência. A questão é se é possível chegar lá com integridade, ou seja, podendo usar o sistema mas sabendo o quanto ele está usando você".

Os vários punks

Ao longo desses vinte anos de história, muitas vozes dissonantes tomaram força dentro do movimento: as mulheres em produções de teor feminista, os vegetarianos straigth-edge, e até os homossexuais - antes vistos com reservas - fazendo o chamado de homocore. Mas o que se questiona a respeito da diversidade desses grupos é se isso não enfraquece o movimento. Por sua vez, Elisa afirma que "nos grupos segregados há subideologias. Por exemplo, o anarco-punk é amor livre acima de tudo, poligamia, enquanto o straight-edge defende sexo com responsabilidade e que não se deve magoar os outros. O movimento perdeu um pouco da força porque isso acaba criando uma dinâmica de grupo em que cada um acha que é mais político que o outro. Ninguém se ajuda e ninguém faz nada junto. Há uma briga pra saber quem é o dono do punk, como entidade". Mas para Redson "as divisões que dizem ter hoje dentro do movimento são muito mais por gosto sonoro, é uma questão mais pessoal. Criar grupinhos e gangues não tem sentido".
Além disso, desde o surgimento do movimento na cidade, muito se fala sobre os punks de periferia e os de outras áreas da capital. Segundo Bivar, "o movimento chegou primeiro aos subúrbios e periferias. Havia uma rixa entre os punks dessas regiões e os da capital. Uns queriam ser mais punks que os outros. Era uma coisa bem à-toa, sem motivo mesmo". A respeito da situação atual, Elisa comenta: "Os punks de periferia hoje organizam muitos eventos em casas de cultura em Osasco, Guarulhos. Não há muito diálogo entre os grupos. Mas a gente tem que ir de vez em quando, divulgar seu zine (espécie de revista) e quebrar a hostilidade. A minha balada não é ir a um show de punk com cem por cento de platéia branca, heterossexual, masculina. Eu quero diversidade, quero travestis em show punk, quero bandas de travestis, prostitutas, strippers".
O fato é que o punk, assim como os grandes movimentos da história, surgiu pela necessidade de esses jovens tornarem sua voz ativa. E se hoje as coisas parecem estar mais ligadas ao aspecto estético do movimento "é porque ainda não surgiu uma necessidade de se expressar com rebeldia realmente. Isso deve ser espontâneo", argumenta Redson.
Na verdade, toda essa discussão, que parece não ter fim, pode ser melhor compreendida com o depoimento de Elisa: "Antes a coisa era muito mais homogênea, era muito mais fácil só acreditar em regrinhas básicas, como " dane-se o capitalismo", "dane-se o sistema", "danem-se as multinacionais", e sem nenhum rigor muito filosófico. O punk é hoje muito mais uma cultura do que um movimento. Porque um movimento que sobrevive há vinte anos, está em todos os países e foi totalmente englobado pelo capitalismo, pra mim, ele achou seu lugar na sociedade, um locus sociale".


Meninas na cena - Atitudes femininas carregadas de política


Segundo Elisa Gargiulo, "foi em 1989 que se começou a falar sobre as mulheres dentro do contexto. O que fazer com elas? As meninas que estavam na cena punk eram namoradas de alguém. Elas não gostavam da cena, achavam machista. Elas resolveram tomar os canais de expressão. Começaram a surgir bandas, gravadoras e zines femininos. E veio a crítica. Os meninos achavam que estava se criando uma coisa à parte. Mas qualquer grupo marginalizado precisa ter autonomia pra ser aceito. Aqui no Brasil, o movimento Riot Grrrl, nome dado nos EUA, chegou e estourou mais ou menos em 1997. Hoje tem vinte zines de meninas para meio de meninos. Há mais produções feitas por mulheres. Elas conquistaram isso. A partir do momento em que há uma menina no palco, surge uma identificação: 'Poxa, eu passo por isso que ela está falando. Eu fiz um aborto, apanhei em casa, no emprego me pediram exame de gravidez'. As meninas trouxeram a vida cotidiana para um patamar político. 'O que acontece na minha casa é de extrema importância.' O movimento gay veio no vácuo, já que tinha tudo a ver com o gênero: virilidade, o que é homem e mulher, o que sou eu, quais são os papéis e vamos quebrá-los."