Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Esporte
Futebol dos deuses

No momento em que o surpreendente São Caetano renova as paixões no futebol, vale a pena voltar no tempo para relembrar as peripécias de nossos craques

Há quem diga que as recentes vaias dirigidas à seleção brasileira são sintomáticas. Denotam, entre outras coisas, um distanciamento do público com o escrete; quem sabe, dizem os exagerados, sejam os estertores de uma paixão incandescente, talvez a maior, dentro do rol das generalizações, que pespegaram no brasileiro.
Futebol. Sem sucumbir ao pedantismo de invadir a seara sociológica e todas as implicações que acompanham a trajetória do esporte no país, é impossível desvincular a bola da história política brasileira ou mesmo destituir do futebol seu quinhão na moldura de várias das identidades fragmentadas que fazem desta terra uma nação.
Mas o propósito deste texto é bem mais prosaico. Serve como um suspiro de nostalgia ingênua em meio ao futebol profissional (ou pseudoprofissional, no nosso caso). Talvez possa funcionar como uma boa versão para explicar os descaminhos da bola de hoje, que corre enviesada, longe da várzea (e portanto da alegria de origem). Talvez, apareça como contraluz à tendência gelada e impiedosa dos cifrões, que sabe-se lá não ajudam a aprofundar o fosso entre a arquibancada e seus deuses.
Voltando às vaias recentes, elas não se justificam por si só. Afinal, às vésperas da gloriosa campanha de 1970, antes de embarcar para o México, a seleção foi duramente apupada em pleno estádio do Morumbi. Sim, o público paulista mostrou-se tão inclemente com Pelé, Rivelino, Tostão, Clodoaldo, Jair, Gerson, como trinta anos depois com o mau futebol de Rivaldo, Cafu, França, Vampeta e Adriano. Mas nessa curta lista de nomes talvez esteja a chave de toda a diferença. Pelo menos essa é a opinião de Nilton Santos, bicampeão mundial, denominado pela sabedoria mundial dos gramados, com toda a justiça, de Enciclopédia: "A explicação é essa aí. "Onde estão os Didis, os Zizinhos, os Gersons, os Garrinchas? Hoje o que prevalece é a força física. Antes não, você tinha que ser amigo da bola, tratá-la com carinho, como se fosse uma amiga. E depois, o jogador era um sujeito comum: jogava, saía na rua, namorava. Tinha história para contar. Hoje em dia, o jogador não vive mais".
E com a mesma destreza de sua canhota, o Enciclopédia resume o descrédito a que sucumbiu nosso futebol. Vivemos sob a égide de um profissionalismo de fachada, que oculta quantias milionárias, é extremamente desigual, enriquece alguns poucos malandros fora das quatro linhas e vem construindo uma celeuma difícil de desfazer. Pois, então, voltemos no tempo. Por que não falar do futebol na sua essência primeira? Falar do público, do couro e das pernas, elementos transcritos doravante pela letra simples de cronistas e poetas, sem frivolidades.

A origem do torcedor

No início havia o nada: era uma várzea vazia esperando que o salvador lhe trouxesse a bola. E lá pelos fins do século passado não é que um tal de Charles Miller teve a feliz idéia de apresentá-la a seu rincão de direito? Então, simplificando, fez-se o futebol no Brasil. Futebol que de pronto caiu na graça de todas as gentes. Mas para acompanhar a pelota e as pernas que a conduziam, era necessário o público, ou, no vocabulário ora institucionalizado, o torcedor. No entanto, nos idos da década de 10, essa espécie ainda era recente no repertório da cidade de São Paulo, e ao cronista, bom observador, coube descrever a atitude extravagante das massas que acompanhavam uma partida. Vejam: "Existem aspectos muito curiosos o nosso futebol. Ninguém que não esteja habituado às partidas desse esporte pode jamais imaginar o que é por exemplo um 'torcimento'. É a coisa mais curiosa e mais divertida desse mundo. Preso de emoção intensa a um lance qualquer do jogo que torna iminente um gol, o torcedor alheia-se inteiramente de tudo, e é apenas nervos tensos. Nesses rápidos instantes, vale a pena de se ver e apreciar um grupo de torcedores. Com os olhos fixos na bola e nos jogadores que a impelem, o torcedor vai realmente se torcendo, se torcendo, e quando, por fim, é marcado o gol, vem uma explosão formidável de entusiasmo e quase delírio, gritos, sapateado, chapéus ao ar, o diabo (…) E é interessante notar que eles acreditam seriamente que o seu 'torcimento' influi na sorte do seu partido (…)" (Football, texto de P., publicado em O Estado de S. Paulo, em 27/05/19, citado por Nicolau Sevcenko, em Orfeu extático na metrópole).
E logo o torcedor reconheceu seus ídolos máximos, dentre um espectro respeitável de craques que o destino nos proveu. Para reconhecê-los, Nilton Santos já entregou a fórmula logo acima: a intimidade com ela. O craque é amigo da bola. Duvidam? "Esta aqui, a bola, me ajudou muito. Ela ou as irmãs dela, não é? É uma família, e sinto gratidão por ela. Na minha passagem pela Terra, ela foi o principal. Porque sem ela ninguém joga. Comecei na fábrica Bangu, trabalhando, trabalhando, até que encontrei minha amiga. E fui muito feliz com essa aí. Conheço o mundo inteiro, viajei muito, muitas mulheres. Isso também é uma coisa gostosa, não é?" Esse testemunho é de Domingos da Guia, o Divino: maior zagueiro brasileiro de todos os tempos, que jogou nas décadas de 30 e 40, principalmente no Flamengo. Domingos é pai de outro monstro sagrado, Ademir da Guia, imortalizado pela pena de João Cabral de Melo Neto. O depoimento de Domingos faz par com o testemunho de Didi, o príncipe Etíope, como bem cunhou Nelson Rodrigues: "Eu sempre tive muito carinho por ela. Porque se não a tratarmos com carinho, ela não obedece. Quando ela vinha, eu a dominava, ela obedecia. Às vezes ela ia por ali, e eu dizia: 'Vem cá, filhinha', e a trazia. Eu pegava de calo, de joanete, e ela estava ali, obediente. Eu a tratava com tanto carinho como trato a minha mulher (...)" (ambos depoimentos recolhidos por Roberto Moura e citados por Eduardo Galeno, em Futebol ao sol e à sombra). Didi jogou no Fluminense e no Botafogo, na década de 50 foi bicampeão mundial e é o inventor patenteado da folha seca, um chute que tomava um efeito imprevisível, tal qual a trajetória de uma folha seca ao sabor dos ventos.

Bola na Lagoa

Salvo algumas exceções, como Lima Barreto, Oswald de Andrade e Graciliano Ramos, avessos à prática do esporte bretão, o futebol caiu nas graças dos literatos. José Lins do Rego certa feita levou uma reprimenda de Graciliano, quando estava hospedado na casa do compadre: "Leônidas é um ídolo maior do que Dostoiévski nesta casa. É Diamante Negro a qualquer momento da conversa". Paulo Mendes Campos e Décio de Almeida Prado deixaram para posteridade suas argutas observações. Mas foram os irmãos Mário Filho e Nelson Rodrigues que inauguraram, o primeiro, e imortalizaram, o segundo, a crônica futebolística. Mário Filho deixou um legado precioso: foi o pai da imprensa esportiva especializada, escreveu entre outros o Negro no futebol brasileiro, um senhor tratado de sociologia, além de emprestar seu nome ao Mundão, ao Maior do Mundo, ou simplesmente ao Maracanã. São deles essas palavras: "Quando o Flamengo marcou o segundo gol, antes mesmo que o garoto do placar colocasse o dois ao lado do nome do Flamengo, a gente olhou para o relógio: faltavam seis minutos. Começou uma voz gritando 'faltam seis minutos' e, aí, o Flamengo foi para cima do Fluminense. Para o Fluminense bastava o empate, para o Flamengo era preciso a vitória. O Flamengo atacava, o Fluminense jogava a bola na Lagoa (Lagoa Rodrigo de Freitas, atrás do campo do Flamengo). Não se tratava de recurso da bola fora. Bola fora não adiantava ao Fluminense. Noutro campo, a história desse Fla-Flu seria diferente. Bola fora volta logo, na Lagoa demorava. E o Flamengo jogou n'água guarnições inteiras de remo para apanhar a bola na Lagoa (…)." (retirado de O Fla-Flu da Lagoa, publicado em O sapo de Arubinha, sobre Flamengo 2 x 2 Fluminense, 23/11/1941, no Estádio da Gávea, na decisão do Campeonato Carioca).
Nelson Rodrigues, fluminense doente, escreveu anos a fio em O Globo e A Gazeta Esportiva. Inventou jargões fabulosos, como "óbvio ululante", "Sobrenatural de Almeida", "complexo de vira-latas", que até hoje repercutem em bocas anônimas, já instituídos como patrimônio público. Profetizando o reinado de um tal Pelé, mal saído das fraldas, surgido de uma epifania em 1958, Nelson alinhavou as seguintes palavras: "O que nós chamamos realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: é a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola, e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram 'Quem é o maior meia do mundo?'. Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: 'Eu"' Insistiram: 'Qual é o maior ponta do mundo?'. E Pelé: 'Eu'. (...)." (crônica publicada em A Gazeta Esportiva, de 8/03/1958, a propósito de Santos 5 x 3 América, em 25/02/1958. Foi o primeiro texto de Nelson sobre Pelé e a primeira vez que o craque é chamado de rei. Excerto de À sombra das chuteiras imortais).
Pois é, torcida brasileira, futebol é isso, ou pelo menos deveria ser.


Um prêmio à bola - Os dois lados da moeda

A Outra Face da Bola foi o vídeo produzido pelo Centro de Vídeo, premiado em novembro passado no Sport Movies & TV - 18º International Festival 2000. Segundo Silvana Morales, coordenadora do projeto, o intuito da produção foi mostrar como o futebol, além de ser uma alternativa de ascensão social, não pode prescindir de educação. "Concorremos na categoria "Esporte para Todos" e o trabalho do Sesc vai ao encontro dessa proposta, ou seja, do esporte participativo, sem imposição de resultados". E o futebol de competição, o esporte do profissionalismo, é na sua essência muito perverso: privilegia alguns poucos que além do talento tem que contar com a ajuda da sorte. O vídeo mostra o futebol que, apesar de tudo, sobrevive nas várzeas e nas praias, outrora famigerados "terreiros de craques". Através de depoimentos de antigos jogadores, bem e malsucedidos, fica claro o paradoxo entre o grande espetáculo, concorrido por um público fanático, e os arrabaldes esquecidos onde joga quem quer, no mais puro exercício dessa paixão. "No Sesc, fica claro que o esporte deve servir de apoio à cidadania, ao respeito, além, claro, de ser gerenciado do ponto de vista educativo".