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O desafio do século
DENISE NATALE E SALETE SILVA
Ninguém pode descrever com exatidão como serão as relações trabalhistas dos próximos anos. A única certeza é que passarão por profundas alterações. A mudança será de tal porte que se constituirá na marca do começo do século que está por vir, simultaneamente causa e efeito dos novos patamares em que as atividades econômicas se colocarão.
Sem risco de exagero, pode-se dizer que o trabalho no século 21, começando já neste último ano do século 20, terá de ser visto sob uma ótica tão nova quanto aquela que surpreendeu o mundo na chegada da Revolução Industrial.
Um estranho fenômeno está intrigando os brasileiros: há claros sinais de que a economia se revitaliza, mas o desemprego não cede. Com efeito, em determinados setores as fábricas voltaram a contratar e as lojas mantêm seu pessoal na ativa, mesmo depois do pico do fim de ano e Natal. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) confirma dados da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e prevê, para 2000, a criação de 550 mil a 700 mil empregos diretos na indústria. O Produto Interno Bruto pode se expandir pelo menos nos 4% previstos, diz Lauro Ramos, economista do instituto. E mais emprego na indústria sempre significa incremento de vendas no comércio, diz Shyrlene Ramos da Silva, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mas o número de desempregados não diminui, pois a quantidade de empregos é insuficiente para acomodar cerca de 1,5 milhão de jovens que tentam, a cada ano, entrar no mercado.
No primeiro quadrimestre deste ano, outros dados, oficiais, apontam para o crescimento da economia, o que sinalizaria, segundo alguns técnicos do governo, para a estabilidade na queda das taxas de desemprego ou pelo menos o esboço de alguma reação. Não é, porém, o que prevêem os especialistas. Para eles, a taxa de desemprego no país não vai sair dos níveis atuais. O ano passado cerca de 8,2% da população economicamente ativa estava desempregada ou, pelo menos, sem emprego formal. Afinal, o que está acontecendo na economia?
Na opinião do sociólogo José Pastore, especialista em relações do trabalho e desenvolvimento institucional, pesquisador da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (USP), é verdade que se nota a reação favorável das empresas que começam a contratar, mas é melhor ter cautela em relação ao assunto: "Desempregar é rápido, mas empregar é muito mais demorado", afirma.
Pastore assinala, como a maioria dos estudiosos do assunto, que mesmo o crescimento de 2,5% a 4%, apontado por estimativas oficiais, seria pequeno para trazer de volta ao mercado todos os que perderam seu emprego e atender os que chegam ao mercado, a cada ano. Mas já representa um grande passo, pois poderá significar, segundo o professor, a geração de 1,5 milhão de postos de trabalho. Caso se repita nos próximos cinco anos, o Brasil poderá atingir a meta de 8 milhões de postos estabelecida no Plano Plurianual do governo federal.
Números otimistas, sem dúvida. Que não combinam, porém, com outras previsões, mais assustadoras. Desde os anos 90 o Brasil enfrenta o que muitos especialistas consideram uma verdadeira epidemia de desemprego. Estudos indicam que até o final deste ano 8,3 milhões de brasileiros estarão desempregados, isto é, 10,4% da população economicamente ativa. No IBGE, a estimativa é um pouco menos alarmista: 9,8% seria a taxa de desemprego no país, no fim de 2000.
Nos anos 90, as maiores taxas de desemprego foram verificadas em seis regiões metropolitanas (Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre). Essa foi, diga-se de passagem, a pior década para o desemprego nos últimos cem anos. São Paulo, no centro dessa questão, em 1998 teve 8,58% de sua população desempregada. A situação melhorou muito pouco no ano seguinte, quando 8,2% das pessoas não tinham emprego formal. Somente a indústria de transformação fez desaparecer 1,4 milhão de postos de trabalho, embora uma parte disso tenha migrado para o setor terciário.
O Brasil, porém, não está sozinho. Em 1999, em todo o mundo havia 150 milhões de desempregados. Os brasileiros ocupavam o nada honroso terceiro lugar, com seus mais de 8 milhões de desempregados, vindo logo depois da Rússia, com 9,1 milhões, e da Índia, com 40 milhões. No início da década, a situação do país era melhor, pois estava no oitavo lugar, mas em 1997 já havia chegado ao quinto posto. Esses dados foram analisados no estudo "Desemprego na economia global: Dimensão, hierarquia e evolução no último quartel do século 20", do economista Márcio Pochmann, professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho.
Nas relações de emprego a situação das mulheres sempre tem sido pior que a dos homens: sua participação no quadro de desemprego saltou de 31,8% em 1980 para 48,3% em 1998. Estudo promovido pelo Ministério do Trabalho reconhece que os mais atingidos pelas demissões foram as mulheres e os jovens com menos de 25 anos, inclusive quando são chefes de família. Isso teria motivado outros membros da casa a procurar trabalho.
Na opinião de Pochmann o desemprego brasileiro tem um perfil característico: é um fenômeno heterogêneo e atinge todos os segmentos da sociedade. Tanto é assim que, em dez anos, a porcentagem de desempregados na população com idade entre 25 e 49 anos aumentou 207%. Entre os que têm entre 15 e 24 anos, a expansão foi de 224%. O quadro é ainda mais cruel para os que têm mais de 50 anos, com a parcela de desocupação crescendo a números assustadores: 420%. Pochmann chama a atenção para o grau de escolaridade das pessoas desempregadas: o índice é mais expressivo para quem cursou mais de oito anos de escola (taxa 266% maior no período), em relação a quem tem menos de 1 ano (221%). A participação dos desempregados entre os que têm de quatro a sete anos de escolaridade cresceu 124% no período de 1989 a 1998.
"O desemprego veio para ficar", afirma Pochmann. E temos de aprender a conviver com isso. Não é, entretanto, um problema insolúvel, acrescenta o professor, e adverte que, do ponto de vista das prioridades na condução da política macroeconômica, é preciso mudar o sinal de ação política. "O emprego não tem recebido a devida relevância do governo, cuja atenção está voltada à estabilidade monetária. Para mantê-la, tem desenvolvido um conjunto de esforços que se mostra desfavorável à geração de emprego."
Quanto à estabilidade na queda do desemprego ou à possibilidade de reação, Pochmann afirma ser possível que os números "caiam levemente a partir do segundo semestre deste ano". Ele chama a atenção para uma outra séria realidade, que é a do crescimento do desemprego nas pequenas cidades do interior, uma vez que nos últimos anos se concentrava principalmente nas regiões metropolitanas.
Existe saída?
Se ainda não há emprego para todos, o que fazer? O tema está na pauta de discussão das representações das principais categorias de trabalhadores no Brasil, desde o primeiro quadrimestre do ano. O que se pretende, por ora, é repartir melhor as oportunidades atuais, até que novas vagas apareçam. Reivindicações com esse teor não faltam: jornada de trabalho reduzida, contrato de trabalho por prazo determinado, contrato temporário, fim das horas extras e remuneração dessas horas, extensão dos direitos aos trabalhadores do mercado informal e revisão do sistema de banco de horas.
As discussões em torno da jornada de trabalho esquentam as negociações entre sindicatos de empregados e de empregadores deste ano. A Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Força Sindical e a Confederação Geral de Trabalhadores (CGT) lançaram em meados de fevereiro uma campanha unificada pela redução da jornada sem diminuição dos salários. Reduzir na Constituição Federal a jornada de trabalho de 44 horas para 40 horas, argumentam os sindicalistas, é uma das melhores alternativas para criar postos de trabalho.
O assunto mereceu capa de uma das principais revistas semanais do país, há pouco tempo. A reportagem destacou dados do IBGE, segundo os quais o número médio de horas semanais de trabalho no Brasil, entre 1991 e 1998, os anos da crise do desemprego, aumentou em três horas. A média de horas semanais passou de 39 para 41, enquanto o rendimento médio mensal caía de 5,1 mínimos para 4,6.
O argumento para a reivindicação dos sindicalistas tem como base uma simulação feita por técnicos do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), segundo a qual seria possível criar 1,7 milhão de empregos em todo o país se o número de horas semanais de trabalho de cada funcionário caísse 10%.
O raciocínio é o seguinte: os setores públicos e privados empregam 24 milhões de trabalhadores; desse total, 70%, ou seja, 17 milhões de pessoas, cumpre mais de 40 horas semanais de trabalho. Se a jornada desse pessoal fosse reduzida em 10%, as empresas teriam de contratar mais 1,7 milhão de funcionários para manter o mesmo nível de produção, sem precisar investir em tecnologia.
Os sindicalistas não param por aí. Reduzir 10% é a meta para este ano. Para 2001, a pauta de reivindicações já inclui a defesa de uma jornada de trabalho de 38 horas. Para 2002, de apenas 36 horas, uma hora menos do que o instituído pelo governo socialista francês a partir deste ano.
A estratégia dos sindicalistas tem por objetivo obrigar as empresas a elevar o número de turnos de trabalho. "Para as firmas que já funcionam em três turnos, nada vai mudar, mas as que trabalham em apenas um ou dois terão de criar pelo menos mais um", observa o diretor da Força Sindical, Ramiro de Jesus Pinto.
O número médio de horas trabalhadas na principal categoria filiada à Força Sindical, a dos metalúrgicos de São Paulo, é 46 por semana. A maioria dos 800 mil trabalhadores do setor, segundo Jesus Pinto, faz pelo menos duas horas extras semanais. "É justamente essas horas que queremos eliminar", afirma.
A reivindicação das centrais segue a linha da tendência mundial. Segundo dados da Força Sindical, os países desenvolvidos e alguns classificados como emergentes já adotaram jornadas de trabalho menores. Na Itália, são 36 horas. Nos Estados Unidos, 40. Na Dinamarca, 37. Venezuela e México também já baixaram para 40 horas semanais. "Até no Paraguai os empregados trabalham em média uma hora menos que os metalúrgicos de São Paulo", compara o diretor da Força Sindical. Na Argentina, a jornada é mais extensa, de 48 horas. Mas o presidente argentino, Fernando de la Rúa, assumiu o governo prometendo criar medidas para reduzir o índice de desemprego, que já chega a quase 14%, segundo o governo, ou a 20%, segundo consultores. Continua sendo uma de suas promessas, agora já sob forte cobrança de largos setores da sociedade, baixar de forma substancial a atual jornada de 48 horas, para facilitar a vida dos quase 3 milhões de desempregados.
A pressão sindical sobre essa questão intensificou-se internacionalmente. Até mesmo na França, o premier socialista Lionel Jospin, que já impôs à iniciativa privada uma jornada de trabalho de 35 horas semanais, tem sofrido acusações de retardar a prometida "modernização do Estado". Além das reformas fiscal, dos sistemas de aposentadoria e da poupança, a sociedade francesa quer uma jornada de trabalho de 35 horas semanais também para o setor público.
Tese simplista
Empresários brasileiros reconhecem a tendência mundial, mas exigem dos trabalhadores uma contrapartida, especialmente a redução dos salários. Nem mesmo incentivos fiscais, como os concedidos às empresas francesas que se anteciparam à diminuição da jornada de trabalho, seriam suficientes para convencer a classe empresarial brasileira.
"É inexeqüível reduzir as horas de trabalho sem reduzir salários, e de forma compulsiva", diz o vice-presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Nildo Masini. A simulação do Dieese que mostra a possibilidade de criação de 1,7 milhão de empregos com a redução de 10% da jornada de trabalho é simplista demais, na opinião do empresário, para quem, na prática, o resultado não será o esperado.
Segundo Masini, encarregado pela entidade do encaminhamento de questões relacionadas com emprego e trabalho, uma prova de que os cálculos dos sindicalistas são incorretos é o comportamento dos índices de emprego nos últimos 12 anos. A Constituição de 1988 reduziu a jornada de trabalho de 48 horas para 44 horas. "Imaginava-se que o nível de emprego iria subir a partir daí", afirma. Não foi o que ocorreu. Segundo dados da pesquisa de emprego da Fiesp, no início de 1988 a taxa de desemprego aberto era de 3,8%. Hoje, esse índice é de 7,6%. Para Masini, a explicação é muito simples. Mão-de-obra é insumo importante para a indústria. Se seu custo sobe, as empresas buscam alternativas, e a principal delas é o investimento em máquinas, equipamentos e tecnologia.
Os sindicalistas admitem que a explicação tem fundamento. "Há alguns anos uma metalúrgica de São Paulo precisava de 5 mil funcionários para produzir 1 milhão de peças por mês. Hoje, com 2 mil empregados está capacitada a produzir o dobro. Isso ocorreu em todos os setores, devido à introdução de novas tecnologias", reconhece o diretor da Força Sindical.
Uma saída para o impasse, defendem os sindicalistas, é a redução dos encargos sociais, o que se espera que possa ocorrer por meio de reformas tributária e fiscal. Incentivos, como o dado pelo governo francês, poderiam estimular a iniciativa privada a apoiar a adoção oficial de uma jornada de trabalho menor.
Os empresários são mais céticos com relação a isso. Experiências como a francesa e as de outros países europeus não têm servido de modelo para as propostas empresariais. "A realidade na França e em países europeus é muito diferente da nossa", compara Masini. O argumento dos empresários, aliás, é que Lionel Jospin cumpriu sua primeira promessa, a de reduzir a jornada de trabalho para 35 horas, mas não a segunda: criar 700 mil postos de trabalho.
O presidente da Confederação Nacional da Indústria, Carlos Eduardo Moreira Ferreira, que foi presidente da Fiesp, utiliza dados coletados pela entidade para argumentar que um número gigantesco de empresas não tem condições de reduzir a jornada de 44 horas para 40 horas. Usando números do levantamento feito pela entidade, apenas 5% dos empresários, aponta Moreira Ferreira, acham que não haveria nenhum impacto na posição de competitividade de sua empresa se a jornada fosse reduzida sem baixa correspondente nos salários.
Esse percentual subiria para 29% se a redução de jornada fosse acompanhada de queda no valor dos salários e no custo dos encargos sociais. Nessas condições, cerca de 24% dos entrevistados afirmaram que suas empresas fariam novas contratações. Mas 61% deles se disseram céticos em relação à medida. Entre os otimistas, 47% acham que a empresa encontraria mão-de-obra qualificada no próprio local em que está.
O levantamento mostra ainda que 76% dos empresários consideram que a redução de jornada aumentaria seus custos de produção, por ter forte impacto no recrutamento, treinamento, administração do pessoal, alimentação, transporte e assistência médica. Além do mais, apenas a redução de jornada, segundo os entrevistados, afetaria pouco o uso de horas extras, pois para 69% deles esse expediente é usado principalmente por motivo de sazonalidade.
O melhor caminho, diz Moreira Ferreira, são as negociações individuais, ou seja, empresa por empresa. Essa alternativa, diz ele, já deu certo na Alemanha, Holanda, Itália, onde os acordos se deram entre empresas e sindicatos e, em alguns casos, até mesmo entre setores e sindicatos.
A dança das horas
Outra experiência, iniciada há três anos, que vinha sendo vista como uma alternativa para conter a onda de desemprego especialmente nas fábricas do interior de São Paulo e do ABC paulista, foi o banco de horas. Pelo sistema, quando a demanda cai e os estoques se acumulam, o trabalhador fica em casa, recebendo normalmente, e quando a demanda sobe e a produção precisa se acelerar, trabalha mais horas, se necessário, sem receber extra. Teoricamente haveria empate entre ganhos e perdas.
A expectativa de retomada da economia, entretanto, e o acúmulo de horas devidas pelos trabalhadores às empresas levaram sindicatos e empresas a repensar o sistema. Para renovar o acordo com as fábricas, os sindicalistas fizeram imposições, como a abertura de discussões sobre redução da jornada de trabalho e o aumento de taxas de Participação nos Lucros e Resultados (PLR).
Fábricas como Volkswagen, Scania e Karmann-Ghia são algumas das empresas em que o banco foi instalado. No final de março, na Volkswagen, por exemplo, os trabalhadores deviam em média 16 horas à fábrica. Nem a redução dessa dívida pela metade foi suficiente para convencê-los a aceitar a renovação do contrato.
Para especialistas do assunto, como Márcio Pochmann, os trabalhadores sabem que fazer horas extras lhes é mais compensador que manter um banco de horas. Sentindo-se menos ameaçados pelo fantasma do desemprego, desde o começo do ano 2000, os trabalhadores parecem dispostos a deixar de lado esse sistema.
Intenção bem diferente é manifestada pelo setor empresarial, interessado em mantê-lo. "O banco de horas é importante por dar agilidade às empresas", analisa Nildo Masini. Com o banco, as fábricas resolvem facilmente problemas logísticos, como o de cumprimento dos prazos de entrega. Essa idéia é defendida pelo professor da Universidade de São Paulo Hélio Zylberstajn.
Mas as regras, concordam todos, de trabalhadores a acadêmicos, têm de ser muito claras. Nas montadoras, segundo os sindicalistas, muitas vezes o banco de horas é utilizado para compensar jornadas de trabalho interrompidas por causa da falta de peças, já que boa parte das fábricas trabalha com estoques muito reduzidos.
As discussões em torno da redução da jornada de trabalho esbarram também em uma questão importante numa economia capitalista, a das vantagens competitivas. O alerta é do economista do Dieese Antônio Prado. "Especialmente no Brasil, onde a instabilidade é muito grande, as empresas querem e precisam garantir suas vantagens sobre a concorrência", diz ele.
Nos anos 90, a produtividade industrial, segundo Prado, avançou 86%. Na economia brasileira de forma geral, no mesmo período, esse avanço foi de 65%. "Se reduzissem a carga de 44 horas para 40 horas, as empresas só estariam abrindo mão de 10% desse aumento de produtividade", afirma.
Perder competitividade é temor real das empresas e um fantasma a ser esconjurado. Além do aumento dos custos administrativos que a medida provocaria, as empresas não podem correr o risco de ficar sem a mão-de-obra de que necessitam. Isso poderia obrigá-las a importar trabalhadores ou treinar pessoas num prazo recorde e a custos altos. "Tais barreiras comprometem a competitividade, fazendo surgir o perigo, novamente, de destruir postos de trabalho em lugar de criá-los", argumenta Moreira Ferreira, que é também deputado federal pelo Partido da Frente Liberal (PFL).
O peso da informalidade
A redução da jornada de trabalho e o banco de horas são apenas detalhes de uma discussão mais ampla. O que está em jogo, na verdade, é a revisão da legislação trabalhista, com o objetivo de gerar mais empregos e também de adequar as leis laborais e sindicais à nova ordem econômica mundial e globalizada.
É assunto polêmico. Na análise das propostas de emenda à Constituição com o objetivo de mudar a legislação, há quem aponte como malefícios não só a perda de direitos sociais fundamentais já conquistados, submetendo-os à negociação direta entre sindicatos patronais e trabalhadores, como também a instituição de um regime jurídico diferenciado para os empregados de micro e pequenas empresas.
Entre os que condenam a flexibilização das leis trabalhistas, João Antônio Felício, secretário adjunto da Central Única dos Trabalhadores, é uma das vozes mais fortes. Ele entende que o modelo econômico adotado a partir dos anos 90 acabou repercutindo no mercado de trabalho. Assim, para tornar a produção nacional mais competitiva o empresariado precisaria reduzir seus custos de mão-de-obra e os encargos sociais, passando a exigir maior flexibilização das relações. Mas, segundo o sindicalista, a nova legislação não deve trazer benefícios ao trabalhador, assim como não aumentará a oferta de empregos nem estenderá os direitos trabalhistas conquistados para maior número de pessoas.
Defensores da flexibilização, como o sociólogo José Pastore, da Universidade de São Paulo, acreditam que uma parcela dos que hoje encontram dificuldade para entrar ou se recolocar no mercado de trabalho teria mais chances se as regras fossem outras. É que as empresas, com a aprovação dos sindicatos, poderiam passar a contratá-los com encargos sociais menos onerosos e mais flexíveis. Os contratos seriam mais realistas, na opinião do sociólogo, o que facilitaria a incorporação no mercado formal de trabalho de profissionais autônomos, subcontratados, terceirizados, etc.
O vínculo de emprego é hoje bem diferente do que existia há não mais de dez anos, comenta Luiz Gonzaga Bertelli, do Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE). Hoje, ele explica, os novos profissionais trocam a carteira assinada, que teoricamente garante aposentadoria e assistência médica oficiais, 13o salário, férias e Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, por novos contratos, em que pesam mais as ofertas de seguro-saúde, plano de carreira, bônus salariais por desempenho, etc. "O mercado é de menos vínculo e mais terceirização", resume.
Como uma parcela grande da população perdeu seu emprego formal a partir da primeira metade dos anos 90, sobrou-lhe a alternativa do trabalho informal – aquele sem carteira assinada, o famoso "por conta própria", caracterizado por condições precárias de segurança e, muitas vezes, remuneração insatisfatória. Nos anos 90, para cada dez empregos criados, somente dois eram assalariados, com registro formal.
O resultado é que hoje se calcula que quase 60% da força de trabalho viva na informalidade. "Esse número é absurdamente alto, chega a ser obsceno", admite Pastore, para quem a expansão da informalidade sem a devida contrapartida de contribuição à seguridade social constitui um grave foco de déficit público que pode comprometer a economia.
Hoje, de cada dez brasileiros, seis estão fora do sistema previdenciário, confirma o governo federal. De um total de 64,8 milhões de brasileiros que constituíam a população ocupada em 1997, apenas 27,9 milhões eram filiados à previdência. Entre os 23,8 milhões de trabalhadores por conta própria, o número baixa para 4,4 milhões de filiados, segundo dados citados pelo ministro Waldeck Ornélas, da Previdência Social.
Pastore aponta duas posições distintas na questão que envolve a informalidade de boa parte do mercado brasileiro. Uma é a daqueles que consideram o trabalho informal a salvação da nova economia, resultado das transformações tecnológicas e de formas modernas de trabalhar. Incluem-se nesse caso desde o profissional autônomo ou empregado menos qualificado até cientistas, artistas e técnicos, que trabalham por conta própria ou são subcontratados. Outra é a dos que vêem na informalidade uma grave ameaça à ordem social, uma vez que a Constituição Federal prevê a cobertura de saúde, aposentadoria e assistência extensivas a toda a população.
Qualquer que seja o ângulo por que se examine o problema, o país precisa encontrar uma maneira de assegurar proteção ao trabalho e garantir oportunidades para todos os cidadãos. Para isso, há de encarar com realismo e decisão a necessidade de uma profunda reforma nos atuais sistemas trabalhista e previdenciário, no que se inclui, obrigatoriamente, a discussão do trabalho informal.
Abaixo o stress
Nem todos querem ser felizes no trabalho, diz sociólogo italiano
Desenvolvimento sem trabalho e Ócio criativo são os sugestivos títulos de dois dos vários livros escritos por Domenico de Masi, sociólogo italiano de 62 anos que recentemente se tornou um mito no Brasil por defender idéias inovadoras sobre as relações de emprego e trabalho, consideradas por ele como formas de atingir a felicidade e o bem-estar.
Professor da Universidade de Roma, De Masi também preside a Sociedade Italiana do Teletrabalho, novo fenômeno laboral cujo conceito ele formula como "uma das possíveis modalidades organizativas, que se tornou mais eficaz graças aos modernos meios de comunicação e é auspiciosa por conta dos agora intoleráveis níveis de stress". A aceitação da proposta em larga escala, acredita De Masi, "poderá melhorar a vida e o trabalho de países inteiros, tornando mais felizes as pessoas". Mas a lentidão com que a idéia se difunde pelo mundo, lamenta o sociólogo, "e a tenaz resistência contra sua introdução legitimam a suspeita de que nem todos querem ser felizes no trabalho".
Como a atividade profissional pode gerar felicidade? Para começar, deixando-se a pessoa cumprir suas funções em casa, com o que já se evitará o stress da locomoção casa-trabalho-trabalho-casa, quase sempre cansativa e demorada. Grande parte dos empregados, mesmo no setor industrial, diz o professor, "poderia ficar tranqüilamente em casa, bastando-lhe como instrumento de trabalho um telefone, um fax e um computador". É essa a essência do teletrabalho, que "economiza tempo, melhora a produção e aprimora a qualidade de vida".
De Masi diz ter começado a pensar no assunto no fim dos anos 60, quando ouviu o termo pela primeira vez em um seminário. "O teletrabalho se manifestou em minha mente como uma idéia simples e ao mesmo tempo revolucionária; difícil de ser aceita pelos empresários, mas, apesar disso, fatalmente destinada a firmar-se por sua modernidade intrínseca e pelo bem-estar que proporcionaria aos trabalhadores. Eu tinha então a certeza juvenil de que a maioria das pessoas desejava ser feliz. Quase um quarto de século se passou e não posso dizer que o assunto tenha avançado. Mas, pelo menos, muita gente, em todo o mundo, já sabe do que se trata."
Para o professor italiano, o modelo de "sincronização do trabalho – a unidade de tempo e de lugar em que são obrigados a estar milhões de trabalhadores – não mais corresponde nem à real exigência da produção nem ao anseio dos próprios empregados e de suas famílias. Ao contrário, provoca graves danos à economia e à própria sociedade".
A era pós-industrial, que vivemos agora, segundo conceituação de Domenico de Masi, já permite poupar os empregados do stress do rush criado por horas perdidas em ônibus, metrô ou trem e por congestionamentos nas ruas das principais cidades. Também possibilita evitar convivências forçadas com chefias atormentadoras e parceiros de trabalho nem sempre desejados. A empresa industrial organizada sob novos moldes permitirá que os empregados fiquem em casa, no seu bairro, durante o horário de trabalho, executando sua atividade profissional em estreita sintonia com a empresa, como se estivessem no escritório ou na fábrica. Executar funções em casa é o que já fazem muitos profissionais: juízes e advogados, jornalistas e pesquisadores, intelectuais e artistas, usando todos eles como instrumento de trabalho o telefone e o celular, o fax, o computador e a Internet. As vantagens do sistema são atraentes; as desvantagens podem ser eliminadas ou atenuadas por uma aplicação criteriosa e inteligente, banindo-se preconceitos e estereótipos que muitas vezes são acoplados ao trabalho a distância, assegura De Masi. Algumas de suas máximas:
• Teletrabalho não quer dizer todos sempre em casa. Só vale para setores que podem ser descentralizados por razões técnicas, organizacionais e até humanas. Pode ser limitado a alguns dias da semana e a algumas semanas no mês.
• Teletrabalho não é trabalho em casa. Pode ser feito na casa do empregado ou em unidades-satélites, mais próximas de onde moram os funcionários. Sob nenhuma hipótese se confundirá com trabalho informal ou clandestino.
• Teletrabalho não é sinônimo de informática. O computador é um apoio importante, mas em muitos casos pode até ser dispensável.
• Teletrabalho não é anarquia. Cada empregado atua segundo um plano operacional que o relaciona com todos os demais parceiros e com seus chefes e diretores. O controle se faz sobre o processo e sobre os resultados; tem, portanto, a vantagem de respeitar mais a dignidade do empregado.
• Teletrabalho não é isolamento. O menor relacionamento com colegas de trabalho pode ser amplamente compensado pelo aumento na relação com a família, os vizinhos e a comunidade.
• Teletrabalho não é solução para o desemprego. Ao contrário, exige novas formas de profissionalização, reciclagem e mesmo uma revolução mental. O treinamento para o trabalho a distância exige instrutores com mais especialização. Seu efeito sobre o desemprego é neutro, comparando-se as vagas que pode eliminar e os postos que pode gerar.
Entrevista a distância
Estas perguntas foram apresentadas pela revista por e-mail enviado ao professor De Masi, e respondidas da mesma forma, sem maiores formalidades e com muita cordialidade. Uma oportunidade de conhecer suas opiniões sobre o Brasil.
PROBLEMAS BRASILEIROS – Por que tantos brasileiros estão sem trabalho, apesar de o país viver uma fase de expansão econômica?
Domenico De Masi – Todos os brasileiros, da hora em que acordam, pela manhã, até quando se deitam, à noite, têm sempre muitas atividades – viver, comer, estudar, criar, procriar, divertir-se. Só algumas dessas tarefas são consideradas trabalho e são remuneradas. Ficam de fora outras, por muitos motivos – porque algumas atividades importantes, como a educação dos filhos, não são remuneradas em nenhum país capitalista, porque os trabalhos remunerados são reservados principalmente aos homens brancos e instruídos, porque a tecnologia substitui cada vez mais o trabalho humano e provoca a desocupação, etc.
O desenvolvimento econômico exige que se produzam crescentemente bens e serviços, empregando sempre menos o trabalho do homem. Esse é um fenômeno que procuro explicar no meu livro "O futuro do trabalho".
PB – Como introduzir a sua tese sobre o teletrabalho, sem dúvida uma das maiores marcas no próximo século, num Brasil onde há tanta desigualdade econômica, social, cultural e de educação?
DM – O teletrabalho serve principalmente para tarefas do tipo intelectual, que permitem à pessoa trabalhar em casa, individualmente, mas ligada pelo computador à empresa ou a quem contrata seu serviço. Isso significa que o principal obstáculo à difusão do teletrabalho no Brasil é o analfabetismo. Também por isso, o analfabetismo é a maior praga do país.
PB – Por que o senhor se interessa tanto pelo Brasil? E, se me permite, o que mais o fascina e o que mais o assusta em nosso país?
DM – O que mais me assusta é a miséria, o analfabetismo. O que mais me fascina é a capacidade de acolher, a sensualidade, a amizade, a estética, a facilidade de convivência. Aliás, a sua mensagem, pela Internet, é um belíssimo exemplo disso...
Aliada ou inimiga?
Justiça Trabalhista pode prejudicar indiretamente os empregados
(Extraído do artigo "O pobre trabalhador brasileiro de salário mínimo", de Ruben Almonacid e Humberto Spolador.)
Para que se paguem bons salários e se dêem outros benefícios, o trabalhador tem que oferecer um serviço desejado e não ser uma fonte de dor de cabeça. A legislação atual e a forma como funciona a Justiça do Trabalho têm tornado o empregado uma fonte de preocupação. Hoje existem todos os incentivos para que funcione uma indústria de ações trabalhistas:
• Existe uma grande quantidade de advogados disponíveis para tocar ações trabalhistas;
• Eles funcionam na base dos resultados auferidos, não exigindo nenhum aporte inicial do trabalhador;
• As demandas são gratuitas ou extremamente baratas;
• A Justiça Trabalhista é relativamente rápida em produzir resultados, sendo uma boa fonte de renda para o trabalhador e para o advogado que o representa;
• Não há punição por fazer-se demandas absurdas ou mentirosas;
• O trabalhador não tem de provar nada;
• Quem entra com ação trabalhista não tem nada a perder: ou ganha alguma coisa, se a ação tiver sucesso ou empata e nada gasta, porque as custas normalmente lhe são perdoadas ou arcadas pelo advogado;
• O trabalhador tem cinco anos para entrar com a reclamação e pode entrar mais de uma vez.
A simples ameaça de uma ação trabalhista leva o empregador a aceitar acordos que em condições normais seriam absurdos, porque oneram a contratação de funcionários e tornam sensato não criar o posto de trabalho, por muito conveniente e necessário que seja o empregado (se substitui por máquinas, se terceiriza, se importa o produto de países que não discriminam contra a mão-de-obra, se deixa de fazer o trabalho, etc.). Num país como o Brasil, com abundante mão-de-obra e baixos salários, que poderiam ser fontes de vantagens comparativas, se economiza mão-de-obra porque a legislação torna seu uso desnecessariamente caro. Por outro lado, existem milhões de pessoas em condições e com desejo de trabalhar, mas que não conseguem qualquer tipo de emprego.
A mobilização de advogados de ambas as partes é dispendiosa e seu custo deverá, em condições de equilíbrio, ser pago pelos empregados (o salário e/ou o nível de emprego precisará cair, para cobrir essa despesa). Os custos da Justiça do Trabalho, que envolve uma quantidade grande de recursos humanos e materiais, o pagamento de juízes, que são extremamente caros, a construção de prédios luxuosos e ainda a possibilidade de desvios de dinheiro, como no caso da construção da sede do TRT em São Paulo, e que são pagos com as receitas gerais do governo também saem, em última instância, do bolso do trabalhador.
A intenção por trás da legislação trabalhista é proteger o trabalhador, que normalmente é a parte mais fraca na relação. Mas, na prática, ela produz efeitos opostos aos desejados. A situação é análoga à que existia décadas atrás, com a legislação sobre contratos de locação. Nesse caso, a preocupação da lei era de proteger o locatário, que também é normalmente a parte mais fraca na transação. Os aluguéis não podiam ser reajustados, os locatários não podiam ser despejados, etc. Mas o resultado era que simplesmente não existiam imóveis para alugar e as pessoas tinham que se conformar em morar em cortiços ou pagar aluguéis realmente escorchantes, ou dar garantias absurdas. Parecia que a lei se justificava exatamente porque se observava o absurdo da relação. Quando se deram maiores garantias ao locador, surgiu uma grande oferta de novos imóveis para alugar e a concorrência entre os diferentes proprietários trouxe o aluguel para níveis razoáveis, além de permitir que os locatários tenham a opção de escolher bairro, tamanho, cor, etc. dos imóveis. Se fosse dada liberdade para contratar e demitir e se deixasse de "proteger" o trabalhador, a procura por funcionários cresceria tanto que os trabalhadores escolheriam entre diferentes empregos, e a concorrência entre possíveis patrões iria elevar o salário real consideravelmente.
A legislação trabalhista atual dá incentivos na direção contrária às necessidades e à disponibilidade de recursos na economia. E os resultados dessa legislação são visíveis na análise de qualquer estatística do mercado de trabalho (absorção de mão-de-obra, salário real, desemprego, etc.). Os conflitos da prefeitura de São Paulo com os perueiros clandestinos são apenas uma amostra patética da falta de alternativas oferecidas pelo mercado de trabalho brasileiro ao trabalhador pouco qualificado.
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