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Mudança de sistema

Juristas discutem a implantação do parlamentarismo no Brasil

O Conselho de Estudos Jurídicos (CEJ) da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (FCESP), presidido por Ives Gandra da Silva Martins, em reunião realizada em 15 de março de 2000, discutiu a reforma política e a tese defendida pelo presidente Fernando Henrique Cardoso de voltar a debater a implantação do parlamentarismo no país.

IVES GANDRA MARTINS – O presidente Fernando Henrique afirmou, em recente entrevista, que as reformas estruturais já haviam sido feitas e que faltava apenas a reforma política. Foi uma surpresa, uma vez que a reforma tributária ainda não foi feita e a previdenciária resultou amputada de seus principais aspectos, tanto que se fala em nova reforma desse setor. Na área administrativa, só a discussão dos subsídios vai exigir nova revisão constitucional. Tudo isso me leva a crer que o Brasil é governado ordinariamente pelo Poder Executivo, que tem o veículo das medidas provisórias, e o Congresso tem a função exclusiva de legislar constitucionalmente, pois só discute revisões.

Se analisarmos o mundo atual, vamos verificar que um único país presidencialista funciona entre as grandes nações. Um cientista político de larga envergadura nos Estados Unidos, Arend Lijphart, escreveu na década de 80 Democracias, na minha opinião o melhor livro sobre o assunto, em que ele analisa quais foram os regimes democráticos estáveis no mundo, de 1945 a 1985. Encontrou apenas 21, já que os demais países que tiveram esse tipo de regime viveram períodos de exceção, inclusive todos os da América Latina. E entre essas 21 democracias (a rigor eram 20, porque ele considerou duas Franças, pré e pós-De Gaulle), com exceção dos Estados Unidos, todas eram parlamentaristas. O que vale dizer que esse sistema estava presente em toda a Europa e nos países desenvolvidos da Ásia que não tiveram solução de continuidade na democracia. Ao lado deles figurava um país presidencialista, os Estados Unidos, onde há um presidencialismo criado pela Constituição, mas extremamente manietado pelo Congresso.

É interessante observar que mesmo o Brasil, quando teve um sistema parlamentar de governo, apresentou estabilidade muito maior do que em todos os períodos presidencialistas. Se analisarmos que o país, a partir de dom Pedro II, adota um sistema parlamentar que resiste sem solução de continuidade até a Proclamação da República, vamos verificar que foram 49 anos de estabilidade, sem esquecer que durante esse período ocorreram três guerras e movimentos como o abolicionista, o republicano e o federalista. E se observarmos o período de 1889 a 1930, veremos que não havia uma república no Brasil, mas sim uma ditadura de dois estados, São Paulo e Minas Gerais, que elegiam os presidentes através de farsas eleitorais. De 1930 a 1945, o país viveu sob uma ditadura. De 1945 a 1964, tivemos uma democracia com certa instabilidade, com a ocorrência de dois golpes. De 1964 a 1985, o Brasil passou por um período efetivamente de exceção. E, de 1985 a 2000, foram 15 anos em que tivemos representantes políticos que não estariam relacionados entre os dez mais éticos que o Brasil já produziu em sua história.

O parlamentarismo, com todas as suas insuficiências, é um regime de controle pelo povo. Os países parlamentaristas apresentam uma transparência muito maior, porque os governos têm responsabilidade a prazo incerto. Em todos os sistemas parlamentares, só se mantêm no governo aqueles que efetivamente se mostrem responsáveis no exercício do poder, enquanto no presidencialismo o que existe é a irresponsabilidade a prazo certo, e a única forma de atalhá-la é através do trauma do impeachment. Não existem as soluções naturais e democráticas de que o parlamentarismo dispõe para superar impasses, como a queda do gabinete. Por outro lado, as sucessivas quedas de gabinete ou a defesa de interesses duvidosos permitem que o chefe de Estado parta para a dissolução incondicionada do Congresso. Porque quando o chefe de Estado, separado do chefe de governo, percebe que o Congresso não está representando adequadamente a população, pode convocar novas eleições, o que obriga a uma responsabilidade dos representantes.

Parece-me que o parlamentarismo é algo que precisaria ser estudado no Brasil, onde, no sistema atual, os deputados são donos de um mandato com a mesma duração que o do Poder Executivo e não têm responsabilidade nenhuma perante o eleitorado, porque estão garantidos por esse mandato. É o contrário do parlamentarismo, em que nem os parlamentares nem o chefe de governo estão garantidos pelo mandato, só o chefe de Estado. É evidente que, se parece que funciona em outros países mais ou menos civilizados, poderia funcionar no Brasil, desde que tivéssemos alguns mecanismos paralelos: fidelidade partidária, voto distrital, burocracia profissionalizada, e maior autonomia do Banco Central, para que haja o controle da estabilidade da moeda.

NEY PRADO – Quero colocar algumas questões preliminares. A primeira é a dimensão de espaço. Não adianta discutir parlamentarismo sem tomar como referência a realidade brasileira, porque cairíamos numa discussão do direito comparado. A outra dimensão é de tempo, para saber se o parlamentarismo no Brasil é um fato histórico ou um produto da história. Em outras palavras, se é oportuno que o Brasil mude de sistema de governo, se é apenas e tão-somente um expediente para resolver uma crise política ou se é algo embasado na cultura – daí por que também levanto o problema da dimensão cultural. Está na índole do povo brasileiro o parlamentarismo? Um país que sempre oscilou entre autoritarismo e populismo estaria culturalmente preparado para aceitar esse sistema de governo? Há uma outra dimensão, que é a jurídica, e aí me refiro à tipologia. Qual é a natureza da forma de governo no Brasil? Afinal, vivemos realmente num presidencialismo ou num parlamentarismo disfarçado? O professor Roberto Campos, tentando responder a essa pergunta, disse o seguinte: "Nos Estados Unidos se tem nitidamente o princípio da separação dos poderes. Na Inglaterra o princípio é o da integração dos poderes. No Brasil o que temos é o princípio da confusão dos poderes". Então é importante saber realmente qual é a forma de governo que temos no Brasil. Há uma outra dimensão ainda, que é a política: é viável a implementação do parlamentarismo com esse sistema partidário difuso, inautêntico e personalista? Com esse sistema eleitoral que não legitima os candidatos, todo ele viciado, com essa forma federativa, toda ela centralizada, é possível que se tenha o parlamentarismo?

Antes mesmo de analisar o sistema de governo, há três grandes indagações que precisam ser respondidas. Primeira: a crise é do presidencialismo ou do Estado em geral? Segunda: será que a crise não é da democracia representativa, em relação à qual o mundo moderno já levanta dúvidas? E finalmente a terceira: a rigor, estamos preocupados com a representatividade política ou com a funcionalidade do poder? Se for com a representatividade política, o enfoque será um; se for com a funcionalidade do poder, será outro.

WAGNER MAR – Penso que por mais que se enxerguem defeitos ou virtudes no presidencialismo e no parlamentarismo, temos o exemplo do mundo, e pecamos sempre em compararmos nosso presidencialismo ao dos Estados Unidos, onde esse sistema deu certo. Nossa história de presidencialismo é muito ruim, e um comparativo acaba mostrando que há uma desigualdade de história entre Estados Unidos e Brasil. Por isso acho que a experiência do parlamentarismo deve ser encampada. Na minha opinião, precisamos tentar, de forma objetiva, motivar o país para que se engaje numa campanha para mudar o sistema, apesar do desequilíbrio de representação que existe na Câmara, que é algo que me assusta e tem levado sempre a decisões inadequadas para o país.

NEY PRADO – O êxito do presidencialismo norte-americano, segundo alguns autores, se deve a três fatores. Primeiro, ao pouco apelo da população ao governo central. Segundo, ao federalismo autêntico e equilibrado que lá existe. E, terceiro, à existência de uma poderosa estrutura administrativa. Esses três fatores embasaram o êxito do presidencialismo norte-americano, que também está sujeito a críticas. Alguns autores apontam o militarismo como aspecto negativo.

IVES GANDRA – Dez por cento do PIB americano é destinado às forças armadas.

MARCO AURÉLIO GRECO – Não se pode deixar de considerar as ponderações do conselheiro Ney Prado quanto aos referenciais de espaço, tempo, perfil sociocultural, imagem que o povo tem de seus governantes e assim por diante. Além desse aspecto sociocultural, acredito que também se deva pensar muito bem nas questões funcionais, seja quanto à existência de partidos com linhas filosóficas e programas bem definidos que permitam uma opção consciente em relação a objetivos e diretrizes a ser atendidos no governo, seja quanto (e aí não vou falar apenas do presidencialismo norte-americano, mas também de um dos elementos do parlamentarismo europeu) à existência de uma burocracia estável muito bem preparada para dar continuidade à administração nas flutuações dos gabinetes. Esses são pressupostos dos quais o debate sobre parlamentarismo ou presidencialismo fica dependente. Enquanto não existir uma burocracia estável e altamente qualificada, a mudança de sistema não me parece a melhor opção.

Além disso, também deve ser sublinhada a observação do conselheiro Ney Prado, que eu não chamaria de crise da representatividade, mas de desafio da própria soberania, que é a dificuldade, hoje, de identificar uma entidade estatal nítida. E, por fim, além da variável sociológica e cultural, além dos pressupostos funcionais, eu diria que há uma variável jurídica, pois acho interessante que se debata parlamentarismo ou presidencialismo, o que supõe que isso não seja cláusula pétrea. E essa premissa não me parece suficientemente nítida, porque o sistema parlamentar ou presidencial não constou do parágrafo 4o do artigo 60 da Constituição porque era objeto de matéria transitória, pois dependia de uma decisão que nem a Assembléia Nacional Constituinte se julgou habilitada a tomar, a de optar por um ou outro sistema. Tanto que deferiu a decisão diretamente ao povo, através do plebiscito.

IVES GANDRA – A objeção que se levantou sobre se seria ou não cláusula pétrea decorreu do fato de que é cláusula pétrea a separação dos poderes. E muitos entendiam que no parlamentarismo não haveria essa separação, na medida em que o Executivo seria um órgão delegado do Legislativo. Foi essa falta de nitidez que levou Roberto Campos a brincar, dizendo que há uma promiscuidade, porque o Judiciário pode interferir nas decisões do Legislativo e do Executivo, o Legislativo pode decidir e interferir nas decisões do Judiciário, naquilo em que sua competência for atingida, e o Executivo legisla em nome do Legislativo.

HÉLIO DE BURGOS-CABAL – Acho que antes de cogitarmos de uma mudança de sistema, deveríamos refletir acerca da substância. Inicialmente quero lembrar a resposta de Sólon, após ter sido aprovada sua Constituição, quando lhe perguntaram: "Sólon, qual é o melhor governo e qual é a melhor Constituição?" Ele dizia: "Para que povo e para que lugar?"

Com o processo de globalização, o Brasil ficou exposto à concorrência mundial, e para enfrentá-la terá de livrar-se do estado de pobreza, da desordem e da marginalidade em relação ao sistema político internacional. Como fazer isso? Através de reformas. Reformas que visarão não somente ao sistema, mas também ao aumento de competitividade, da ordem e do bem-estar.

Mas como fazer isso se nos defrontamos com um impasse no atual sistema institucional? Temos um hipermultipartidarismo, com 44 partidos registrados no Superior Tribunal Eleitoral e 19 deles presentes na Câmara. Nenhum regime democrático representativo pode funcionar com tantos partidos. O modelo federativo brasileiro é distorcido. Rui Barbosa vivia repetindo para os membros da comissão que elaborava o projeto da Constituição de 1891: "Não se esqueçam do federalismo". Mas ele estava pensando no federalismo americano, que não tinha nada a ver com o federalismo que se pretendia instaurar no Brasil. Como conseqüência, houve uma distorção em virtude das disputas de poder que não estão reguladas ou previstas na legislação brasileira: a política. Os governadores têm influência sobre os deputados e senadores, que deles dependem para ser reeleitos. Os governadores, por sua vez, contando com essa dose de poder factual, entram em conflito com o Executivo na disputa dos fatores de progresso e desenvolvimento. Em torno dessas distorções formou-se uma coalizão de clientelismo, patrimonialismo, corporativismo, cartorialismo e corrupção que bloqueia completamente as reformas. E esse quadro só pode ser modificado com reformas, mas os beneficiários dessas distorções não as querem.

EDVALDO BRITO – Quero dizer que me impressionou a questão cultural, levantada pelo conselheiro Ney Prado, e é nessa linha que eu gostaria de fazer uma reflexão. Considerando o modelo federativo brasileiro, teríamos de adotar o parlamentarismo também nos estados e municípios?

FERNANDO PASSOS – O sucesso do sistema parlamentar demonstra que, independentemente da tradição brasileira, esse é o modelo mais aceitável de democratização do poder, na atual circunstância, em todo o mundo. E se é em todo o mundo, por que não adotá-lo no Brasil? O problema é que todas as vezes na história em que se discutiu essa questão, o debate foi motivado pela circunstância política.

Na minha maneira de enxergar a realidade brasileira, o parlamentarismo deve ser adotado da forma que for possível, como tudo no Brasil é feito. Porque, na verdade, que sistema de governo temos? Presidencialismo, não é verdade. O presidente já cumpre a função de presidente da República como chefe de Estado e de chefe de governo via Parlamento, porque legisla o tempo todo por meio de medidas provisórias.

Os debates no Congresso Nacional são absolutamente inexistentes. Somente tem andamento aquilo que a maioria parlamentar do governo aprova. Não há discussão, não há tema a ser proposto no Congresso que não venha com a aquiescência do Executivo. Portanto, já temos essa não separação de poderes no Brasil.

NEY PRADO – Oitenta e quatro por cento das medidas aprovadas no Congresso Nacional, nos últimos dez anos, foram colocadas por iniciativa do presidente.

PAULO PLANET BUARQUE – Em resposta à pergunta do conselheiro Edvaldo Brito, eu diria que basta adotar o parlamentarismo pleno, porque não se compreenderia um parlamentarismo no nível federal e regime presidencialista no estadual ou municipal, até para que se tivesse a escola adequada de gerenciamento do poder. Porém, existe um aspecto prático que não induz a crer que teremos sucesso nas idéias do senhor presidente da República e de muitos políticos que entendem que o regime parlamentarista seja solução para os problemas de governo no Brasil. E por quê? Porque neste país, infelizmente, ainda temos um quarto poder, que não pode ser esquecido, que é a mídia. Basta recordar o plebiscito e quem liderou a mídia quando se escolhia o sistema de governo. Em função disso, a campanha plebiscitária, se chegarmos ao plebiscito – que eu acredito que seja necessário –, será manifestamente conduzida, e por aqueles que têm interesse na manutenção do poder. Infelizmente, essa é a prática.

Gostaria de ressaltar que é evidente que o regime parlamentarista depende, sim, de uma burocracia efetiva e competente. Mas, usando o sistema francês como exemplo, quero lembrar que na França não é possível exercer nem diretoria nem chefia de qualquer tipo de departamento sem ter cursado uma escola de política e administração, o que não existe neste país. Aqui não se forma o profissional para o exercício de um cargo público. Há concursos, em que em geral o candidato faz cruzinhas para mostrar sua eventual capacidade intelectual. Sinceramente, acho que precisaríamos primeiro escolher bem nossos representantes, prepará-los, educá-los, exigir também deles certa escolaridade para então podermos chegar ao regime parlamentarista, que é o meu preferido.

ANTONIO CARLOS RODRIGUES DO AMARAL – Todos sabemos que Rui Barbosa tinha uma paixão muito grande pelo federalismo norte-americano. Os Estados Unidos tinham saído da guerra civil com o país praticamente dizimado, e 30 anos depois já eram uma das grandes potências mundiais. Ele quis trazer isso para o Brasil, mas sabemos que trouxe de uma forma tropicalizada. Em vez do federalismo por agregação, como o norte-americano, em que as 13 colônias queriam ser independentes, adotamos um federalismo por segregação, pois tínhamos um país com governo central unitário e simplesmente o recortamos e chamamos as províncias de estados, mas nunca perdemos o viés de governo central.

Mas a questão relevante seria analisar o parlamentarismo e o presidencialismo à luz de 200, 300, 400 anos de experiência política mundial e diante do fenômeno de integração econômica, que é absolutamente novo e se estabelece de modo mais nítido nos últimos 20 anos. Estamos falando de uma experiência recentíssima, em que se vão modificando todas as formas de apreensão da realidade. Então minha dúvida é se essas categorias se inserem no mundo globalizado.

Parece-me que hoje, no ano 2000, é inútil analisarmos pura e simplesmente os conceitos de presidencialismo e parlamentarismo sem confrontá-los com a realidade atual. Acho que podemos manter princípios que sejam bons em qualquer sistema, como a burocracia estável, por exemplo.

DAMÁSIO DE JESUS – De fato, no Brasil, o corpo administrativo desaparece quando muda o governo. Existe um exemplo na minha área, que é o direito penal. Há hoje uma comissão, presidida pelo professor Miguel Reale Júnior, encarregada de alterar a parte especial do Código Penal, que está na nona tentativa. E por quê? Porque normalmente o ministro da Justiça designa uma comissão, que faz um trabalho e o entrega ao ministro, que o envia para o Congresso. Muda o ministro, e o que chega faz de conta que não existe aquele trabalho, nomeia uma nova comissão, que inicia um novo trabalho. Isso ocorre em todos os setores da administração pública, infelizmente.

Penso que o avanço da humanidade vem acompanhado de uma nova realidade econômica e social. Essa nova realidade traz relações sociais, políticas, econômicas e administrativas diferentes, exigindo que encaremos os problemas de maneira totalmente diversa da anterior. Nessa questão do sistema de governo é de se indagar se as diretrizes habituais dos sistemas parlamentarista e presidencialista são apropriadas ao Brasil neste novo mundo. É claro que podemos insistir nesse presidencialismo que não está dando certo há dezenas de anos, porém, quando pensarmos num parlamentarismo, é preciso que não adotemos simplesmente as idéias que agora existem, mas que formemos novas. Um autor disse há pouco tempo que o analfabeto do ano 2000 não é aquele que não sabe escrever e ler, mas aquele que não souber desaprender e aprender de novo. Fizeram há pouco tempo uma pesquisa via Internet, nos Estados Unidos, indagando qual era a maior invenção dos últimos 2 mil anos. Eu li dezenas de respostas, mas gostei muito de uma, que é a borracha de apagar, porque permite que apaguemos tudo aquilo que existe e escrevamos novamente.

VALDIR DE OLIVEIRA ROCHA – Parece que o grande desafio que se coloca antes da reforma política é a reforma dos políticos. Hoje temos uma classe política que, em regra, é desacreditada pela maioria da população, o que nos remete a indagar por que isso acontece. A população, que em grande parte é analfabeta sob o prisma tradicional e sob esse novo prisma aqui mencionado, de qualquer modo está hoje depauperada sob o ponto de vista cultural.

Essa reforma política deve passar antes por uma mudança no instrumental normativo. Hoje, nosso instrumento de legislação por excelência é a medida provisória, que na realidade tem se mostrado de todo perniciosa. Na verdade, tenho até uma séria dúvida em relação a algumas notícias, que me parecem desencontradas, em relação ao que teria acontecido com a tramitação da emenda constitucional que dispõe sobre as medidas provisórias. Cheguei a ver notícias de que o presidente do Congresso estaria esperando o melhor momento para a promulgação de uma emenda. Se isso realmente procede, mostra de que forma nossa pobreza política campeia.

Além da representatividade dos estados, que é totalmente desequilibrada, me parece que é necessário haver um fortalecimento dos partidos, que não precisam ser muitos, mas que realmente mostrem uma linha ideológica muito firme e apresentem alternativas sérias de exercício do poder.

GASTÃO ALVES DE TOLEDO – No fundo, o grande problema reside na distribuição do poder; o fundamental é saber quem fica com o poder. Que estrutura temos e aonde queremos chegar, num país que é uma república sem jamais ter sido republicano, é uma federação que nunca foi federal e é presidencialista sem ter tido presidencialismo? Porque, na verdade, nosso presidencialismo é totalmente desvirtuado, nossa federação não existe e a res publica nunca foi pública, sempre foi res privata. Realmente, a questão do exercício do poder no Brasil é difícil de ser analisada.

Tenho verificado que existe uma força nos governos estaduais, neste país, que era insuspeitada até dois ou três anos atrás. O poder no Brasil sempre tendeu a ser centralizado no Executivo federal, especialmente a partir de 1930. Mas é verdade que fatos recentes têm demonstrado que os governos estaduais têm muito poder, para não mencionar alguns municípios da nossa federação.

Quinhentos e tantos projetos de emenda constitucional foram apresentados ao Congresso Nacional, a partir de 1988, o que demonstra, em primeiro lugar, o que essa Constituição veio criar em termos de insegurança e inadequação às necessidades do país. Demonstra, também, que não temos suficiente experiência para dizer se devemos marchar nesta ou naquela direção de maneira definitiva. Penso que a experiência presidencialista no Brasil foi sempre mascarada por deformações enormes. Se nunca tivemos um presidencialismo autêntico no país, como é que podemos dizer que devemos ter um parlamentarismo? Não quero dizer que sou contra o parlamentarismo, que talvez fosse uma solução, como foi para muitos países. Mas, ao criticar o presidencialismo, devemos levar em conta que ele nunca foi exercido na sua ideologia fundamental, nunca houve obediência a certos preceitos que deram certo, especialmente nos Estados Unidos. Por quê? Porque nunca fomos uma república nem uma federação.

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