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O exemplo de Gilberto
Em 15 de março de 2000, o país celebrou o centenário de nascimento do sociólogo Gilberto Freyre. No dia seguinte à efeméride, Freyre foi homenageado também pelo Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (FCESP), Sesc e Senac. O conselho, que se reúne periodicamente para palestras e debates com nomes relevantes do pensamento nacional, destinou uma sessão especial à escolha de um nome para a atribuição do Prêmio Gilberto Freyre de Brasilidade. Iniciativa do conselho e da revista "Problemas Brasileiros", com o apoio da Fundação Gilberto Freyre, que representa o legado do sociólogo pernambucano, a distinção visa o reconhecimento da personalidade cuja obra melhor contribua atualmente para a compreensão e a valorização do povo brasileiro, a exemplo do que fez o autor de "Casa-grande & senzala".
Dentre os vários nomes apresentados, em processo aberto inclusive a sugestões pela Internet, o conselho decidiu, por maioria de votos, pelo do geógrafo Milton Santos (ver perfil abaixo). A entrega do prêmio, representado por um busto de Freyre produzido especialmente para essa finalidade pelo escultor Domenico Calabrone, foi realizada na sessão do dia 13 de abril, na qual Santos proferiu também uma palestra que será publicada na próxima edição.
A seguir, reproduzimos algumas manifestações dos conselheiros e convidados, como o historiador Frederico Pernambucano de Mello, primo de Gilberto Freyre, sobre a obra do sociólogo.
FREDERICO PERNAMBUCANO DE MELLO – Convivi com Gilberto Freyre, que foi meu chefe de pesquisas e motivador para o estudo, por longos 15 anos.
Sobre Gilberto gostaria de deixar algumas reflexões. Em primeiro lugar lembro que ele nos mostrou que a colonização do Brasil, ao contrário do que se passou em vários outros países, não foi feita pelo Estado ou pela Igreja. Foi feita pela família patriarcal, que muitas vezes se levantou contra a Igreja e contra o Estado. A verdadeira força motriz de formação da nacionalidade brasileira é a família.
Outra coisa que devemos a Gilberto é que ele, ao estudar o negro e ao cotejar essas pesquisas com o que dizia então a literatura científica, na qual o negro era identificado com as condições piores de desfavor racial que se possa imaginar, afirmava: "Todos os defeitos que nossa ciência atribui ao negro, eu verifico que são devidos não ao negro em si, mas ao negro escravo". A condição social, econômica e cultural da escravidão deformava o negro e, em lugar de se procurar o adjetivo, que era "escravo", se mirava o substantivo, que era "negro". Isso Gilberto nos mostrou, e nos explicou também a condição brasileira da mestiçagem, que muitos autores diziam dever-se à infeliz mistura de três raças tristes. Ele demonstrou que todos os possíveis aspectos negativos que pudessem ser identificados nesse produto se deviam na verdade às más condições sociais, econômicas e políticas que nos deformavam. E que teríamos inteira igualdade com povos de outros países no momento em que desfrutássemos das mesmas condições materiais e possibilidades desses países.
Todo o estudo de Gilberto se baseia na demonstração de que a formação social do Brasil se fez a partir de uma profunda confraternização de valores e de afetividades. Isso fazia com que as angulosidades de raças e os conflitos de classes fossem extremamente atenuados. A confraternização existiu inclusive entre pólos aparentemente opostos, como seriam a casa-grande e a senzala. Gilberto arrosta o conhecimento de um Oliveira Viana, de um Nina Rodrigues, que no Brasil manifestavam todos os conceitos racistas que indicavam um futuro melancólico para o nosso país. Gilberto demonstra que nada disso existiria e que, pelo contrário, a união dessas três raças apontava para a primeira vitória de formação de uma economia autônoma e de uma civilização no trópico, conseguida pela engenhosidade do português e pela contribuição do negro e do índio. Mostrando ao Brasil e aos brasileiros que não tínhamos nas nossas mãos um país doente, Gilberto abriu os rumos possíveis do nosso futuro, sem nenhuma vergonha, sem nenhuma inveja de raças puras ou superiores que existissem em outro canto do mundo.
VAMIREH CHACON – Tenho visto em jornais e em livros referências à influência da historiografia francesa dos Annales sobre Gilberto Freyre. Ora, Peter Burke, professor da Universidade de Cambridge, casado aliás com uma brasileira, escreveu um livro sobre o assunto, mostrando exatamente o contrário, a influência de Gilberto Freyre na história dos Annales. Se alguém pode pensar que isso seja exagero de um professor inglês brasilianista, eu me reportaria, nada mais, nada menos, que a Fernand Braudel em pessoa. Braudel, no prefácio à tradução italiana de Casa-grande & senzala (Padroni e schiavi), diz literalmente: "Não ensinei nada a Gilberto Freyre, aprendi com ele". Então esse conceito de civilização material de Fernand Braudel é basicamente o conceito gilbertiano.
No suplemento Mais da "Folha de S. Paulo" publicado em 12 de março, Peter Burke repete a mesma coisa. Esse conceito de Fernand Braudel, Gilberto não aprendeu na Sorbonne. Foi Braudel quem aprendeu quando, aliás, era professor da USP. Considero uma autodesestima crônica, profunda, às vezes avassaladora, que não digo todos mas uma grande parte dos brasileiros têm, a mania sistêmica ou até sistemática de achar que o estrangeiro tem sempre razão, que o produto importado é melhor do que o nacional, a idéia estrangeira é melhor do que a brasileira e outras coisas mais. Gilberto gostava sempre de repetir isto: "Não gosto de quem não gosta do Brasil, não só estrangeiros como brasileiros".
JOSUÉ MUSSALÉM – Gilberto Freyre é um nome universal, dada inclusive a constatação das inúmeras edições em língua estrangeira que seus livros tiveram, em inglês, francês, polonês, japonês também, e assim por diante. O mundo inteiro respeita esse pernambucano que praticamente nunca saiu de Pernambuco. Ele levantou, como a gente diz na modernidade, o astral do povo brasileiro.
Além de universal, Freyre é atual. Em 1948, sob o impacto do genocídio dos judeus pelo nazismo, a Unesco reuniu em Paris oito intelectuais de diversas nacionalidades para discutir as relações inter-raciais, e entre eles estava Gilberto. É interessante também notar que esse tema continua atualíssimo, porque estamos tendo no mundo brigas raciais na Bósnia, na ex-União Soviética e em outros locais. E há um livro de Gilberto Freyre, Insurgências e ressurgências, em que há muito tempo, com aquela visão antecipadora, ele previu o avanço islâmico, muito antes de os americanos, os ingleses e os soviéticos se preocuparem com essa questão.
MOACYR VAZ GUIMARÃES – Tenho a impressão de que ninguém como Freyre conceituou direta e indiretamente a cidadania, uma coisa de que hoje estamos muito carentes. Gilberto Freyre, em toda a sua obra, situou muito bem o valor do Brasil e do brasileiro, quebrando uma série de tabus e modismos. Se lermos com atenção tudo o que ele escreveu, teremos ali um roteiro precioso para entender e exercer conscientemente nossa cidadania. Quero referir-me ao que disse Chacon, aquele velho defeito nosso de dizer que tudo o que vem de fora é melhor. Passeando pelas ruas de São Paulo e nos shoppings, em vários estabelecimentos, sinto-me tomado às vezes de um sentimento de revolta. A entrega em domicílio é delivery, a liquidação é sale, o desconto nos preços é off. Em que país estamos que precisamos usar esses termos quando temos uma língua tão rica, tão precisa que para tudo tem a palavra certa? Então essa brasilidade de Gilberto Freyre, que era autêntica exatamente porque não era filiada a nenhum pressuposto ideológico, é que nos estimula a continuar lutando para mudar esse vezo e dar a Gilberto o grande valor que tem.
MÁRIO AMATO – Fiquei profundamente impressionado quando, em uma palestra na Escola Superior de Guerra em 1972, Gilberto Freyre fez uma distinção entre ser nacionalista e ser patriota. Durante o resto da minha vida trouxe comigo essa diferença.
ROBERT APPY – Como o mais antigo membro deste conselho, quero lembrar que Gilberto Freyre participou de uma reunião nossa (PB no 153, maio de 1976; texto disponível na versão eletrônica desta edição).
JANICE TEODORA – Para nós da Universidade de São Paulo, a obra de Gilberto Freyre teve uma importância extraordinária. Freyre, ao longo de todos esses anos, foi vencendo dificuldades, e sua própria obra enfrentou uma crítica muito grande nos anos 60 e 70. E o que é bonito comprovar agora é que, apesar de todo esse trajeto difícil, ela sobreviveu. Ao longo da história, ela enfrentou regimes políticos diferentes, pensamentos de intelectuais de vertentes diversas e hoje ela renasce. No momento em que os conflitos interétnicos ressurgem, a obra de Gilberto Freyre retorna com outro vigor. Mestiçagem, pluriculturalismo, transculturação são conceitos que na raiz Gilberto Freyre pensou, e com muita propriedade.
FREDERICO – Mesmo vindo de uma mentalidade brasileira na sua época um tanto bacharelesca, um tanto barroca, um tanto formalista, Gilberto aprendeu a se expressar inicialmente pelo desenho, antes de aprender a escrever. Ele foi um caso até de preocupação para sua família, porque aprendeu a ler e a escrever apenas aos oito anos de idade. Chegou a ser considerado disléxico. Mas até então ele se comunicava muito bem por desenhos, por pinturas, e o pintor sobreviveria nele depois, numa época madura. Por conta disso, ele é autor de artigos de 1948 e 1949, publicados na revista "O Cruzeiro" e em jornais do Rio de Janeiro, em que defendia taxativa e expressamente o uso dos quadrinhos, não para substituir a literatura mais importante, mas como uma ponte para o conhecimento.
Lembro também os laços de Gilberto com dois grandes e extraordinários paulistas que nunca o abandonaram, mesmo nos momentos de maior patrulhamento ideológico, em que ele só recebia críticas da parte das fontes do marxismo prêt-à-porter que havia se apropriado do país. Foram Prudente de Morais Neto e o grande Flávio de Carvalho. Já quando Flávio foi apedrejado por conta do saiote, Gilberto se manifestou em seu favor, dizendo: "Este é um brilhante paulista, defende o conceito ecológico com uma coragem singular". Por fim, lembro que em 1938, quando morreu Lampião (é quase uma anedota, mas é real), Oswald de Andrade disse : "Mataram Lampião, só falta Gilberto Freyre". Eram inimigos, mas em 1946, no final de uma conferência que Gilberto fez em São Paulo, Oswald, que era um passional, abraçou Gilberto e lhe pediu desculpas. E reataram a amizade.
Longa trajetória
Geógrafo alcançou amplo reconhecimento internacional
Considerado um dos maiores geógrafos vivos do mundo, o professor titular da cadeira de geografia humana da Universidade de São Paulo Milton Almeida dos Santos tem revelado na sua longa carreira universitária, na sua extensa obra escrita – mais de 40 livros e 300 artigos científicos –, na sua atividade como professor visitante ou residente em universidades estrangeiras, na sua participação em congressos internacionais, um pensamento original, vigoroso e articulado.
Além de ter recebido mais de uma dezena de títulos de doutor honoris causa de diversas instituições estrangeiras, o intelectual baiano foi até hoje o único estudioso fora do mundo anglo-saxão ao qual foi conferido, pelo conjunto da sua obra, o Prêmio Internacional de Geografia Vautrin Lud, em 1994 – uma espécie de Nobel da sua área.
Exerceu, tanto no Brasil como no exterior, as mais importantes funções, como consultor das Nações Unidas e de vários governos estrangeiros e membro de comissões de altos estudos, seja em assuntos específicos seja em outros mais gerais, como o ensino público.
Uma longa e bela trajetória para aquele menino negro, de família humilde, nascido em 1926 em Brotas de Macaúbas, lugarejo do sertão baiano onde seus pais, que eram professores primários, primavam em transmitir aos filhos o desejo de aprender. Até os dez anos a formação de Milton foi feita inteiramente em casa, com estudos inclusive de álgebra, francês e boas maneiras. Como ele próprio conta, "uma educação para mandar, para ser um homem que pudesse, dentro da sociedade existente na Bahia, conversar com todo mundo". A educação, de fato, deu frutos importantes: toda a vida do professor tem sido um grande e profícuo diálogo com a sociedade. Nem sempre fácil. Basta ver o que esse homem de reputação internacional tão elevada disse numa entrevista ao "Jornal do Brasil", em 1997, sobre o que foi ter de fazer carreira vencendo os preconceitos impostos pela sua condição racial: "Mantenho com a sociedade uma relação de negro. No Brasil, ela não é das mais confortáveis".
Seguindo a tradição da época, formou-se em direito pela Universidade Federal da Bahia em 1948, mas foi ser professor de geografia. No mesmo ano lançou um primeiro livro, em que estudava as causas econômicas do povoamento de seu estado. Dez anos mais tarde, ao doutorar-se em geografia pela Universidade de Estrasburgo (França), já produzira seis obras. Em 1961 tornou-se professor catedrático de geografia humana na Universidade da Bahia. Após o golpe de 1964, obrigado a deixar o Brasil, foi lecionar na Sorbonne (de 1968 a 1971), em Paris. Durante vários anos foi também professor visitante de várias faculdades estrangeiras, nos EUA, no Canadá, na Tanzânia e em vários países da América do Sul. Anos profícuos, pois aproveitou para enriquecer sua reflexão sobre os problemas brasileiros e a inserção das nações subdesenvolvidas no mundo contemporâneo.
Como seu principal objeto de estudo são os problemas urbanos do Terceiro Mundo, sua visão da grande cidade difere bastante dos estereótipos que a querem espaço degenerado, caótico e desumano, contraposto ao que seria o campo idealizado da visão romântica. Ele a vê em toda a sua complexidade mas também na riqueza do inter-relacionamento que ela permite, nas trocas de informação, no processamento econômico, nas conquistas sociais. Enquanto o campo se esvazia, as pessoas vêm para a cidade para ser pobres. Mas, no seu modo de ver, a própria pobreza pode se tornar fator principal de uma "riqueza", visto que são os "pobres que têm a possibilidade de sentir e pensar" e, como tal, tornam-se agentes de mudança.
Denunciando as classes intelectuais pelo seu acovardamento diante dos paradoxos do fim do milênio, particularmente o fenômeno da globalização, no qual "há muito mais espaço para o consumidor, e nada para o cidadão", ele recusa também a epistemologia do iluminismo, que nos teria ensinado a fraqueza dos pobres, porque "quem pensa o novo são os homens do povo e seus filósofos, que são os músicos, cantores, poetas, os grandes artistas e alguns intelectuais".
Desconcertantes são certas colocações que Milton Santos faz a respeito da pobreza. Como esta: "Somos um povo feliz, porque temos pobres". Contrapondo o povo à classe média "vazia e sem graça", Milton Santos mostra o erro cometido por cientistas sociais que começam a estudar a sociedade pela ótica da classe média e depois "colocam o pobre para enfeitar", seguindo uma visão européia. E não hesita em dizer que a Europa agora está melhorando, com as sucessivas levas de migrantes.
Embora veja com simpatia a atuação do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), distingue-se de grande parte de seus companheiros da esquerda ao considerar a reforma agrária "um mito que, tal como vem sendo sustentado até aqui, não tem futuro e tem de ser revisto, porque, como uma herança romântica, corresponde ao mundo que não existe mais", visto que a tendência atual da agricultura é rapidamente se mecanizar, se capitalizar, e o mundo de hoje é o mundo da circulação, não é o da produção. A fixação na terra seria, portanto, uma saída ilusória.
Em 1997 o professor foi o centro das atenções de um comentadíssimo programa "Roda Viva", da TV Cultura, onde decretou que o presidente Fernando Henrique Cardoso não podia mais ser chamado de intelectual, pois poder e rigor crítico seriam "incompatíveis". Sem abdicar da contundência das idéias que lhe rendem a fama de "polêmico", sabe ser engraçado. Tudo o que fala com sua pronúncia saborosa e cadenciada está inscrito na dinâmica de um raciocínio ágil que não teme o paradoxal, o diferente, e que aborda com a mesma vitalidade os mais variados temas, da distribuição da renda à cultura do lazer, da migração à universidade, da reformulação da esquerda à explosão demográfica – que não o assusta, porque "o grande capital do futuro é gente".
Criador inquieto
A arte de um mestre valorizou o Prêmio Gilberto Freyre de Brasilidade. O busto em bronze do sociólogo pernambucano, entregue a Milton Santos, leva a assinatura de Domenico Serio Calabrone (foto). Infelizmente, porém, essa foi uma de suas últimas obras. Respeitado pela crítica e pelo público, esse italiano, nascido em 1928 na cidade de Aieta, na Calábria, no início da década de 50 adotou São Paulo como sua morada, onde viveu até morrer, aos 72 anos, no dia 5 de abril deste ano.
Inquieto, Calabrone dominava com desenvoltura várias técnicas, que o levaram a produzir trabalhos de pintura, escultura, gravação, design de jóias e de objetos. Sua vocação para as artes visuais se manifestou cedo, e ele já desenhava, pintava e esculpia como autodidata quando foi estudar arte em Roma, após o fim da 2a Guerra Mundial.
A relevância de sua obra pode ser avaliada pelas dezenas de mostras individuais que realizou em importantes centros de arte, como Washington, Nova York, Genebra, Nice, Milão, Roma, Tel Aviv, Montevidéu, Rio de Janeiro e São Paulo, entre outros. Há trabalhos seus espalhados ao redor do mundo, em coleções públicas e particulares, além de praças e museus de inúmeros países.
Calabrone, que na opinião de Pietro Maria Bardi "era insaciável na busca pela beleza", executava seus trabalhos em mármore num laboratório em Carrara, na Itália, e nos últimos anos integrou um grupo internacional de artistas do movimento da Arte Fractal. Dessa fase resultou a importante mostra "A poética fractal", realizada em 1995 em São Paulo, no Museu da Arte Brasileira, da FAAP.
Afeito aos desafios que os avanços tecnológicos proporcionam, Calabrone não se intimidou diante da contemporaneidade e trilhou com brilho também os caminhos que ficaram conhecidos como arte cibernética. Nela, o artista imprimiu sua marca, aliando o arcaico e o moderno, e deixou uma herança digna de um grande mestre.
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