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Imagens eloqüentes

Bonde São Januário, no Rio de Janeiro. Foto reproduzida do livro The Brazilian photographs of Genevieve Naylor, 1940-1942

Genevieve Naylor fez registro valioso do Brasil dos anos 40

RODRIGO ARCO E FLEXA

Graças à megaexposição comemorativa Brasil 500 Anos – Artes Visuais, inaugurada no final de abril em São Paulo, uma injustiça pode ser corrigida. Finalmente, um número significativo de brasileiros terá acesso ao importante trabalho que a fotógrafa americana Genevieve Naylor produziu no país, onde residiu no início dos anos 40.

Na mostra, as fotos de Genevieve – um dos mais importantes registros visuais já realizados sobre o Brasil do tempo do Estado Novo – integrarão o módulo "O olhar distante", destinado a visões do país a partir do ponto de vista do não-brasileiro. Ao lado de imagens de autoria de Pierre Verger, Orson Welles, Claude Lévi-Strauss e outros, seis chapas de Genevieve convidam o visitante a conhecer o restante de sua obra "brasileira". No total, são mais de 1,5 mil fotos, uma centena delas presente no livro The Brazilian photographs of Genevieve Naylor, 1940-1942, do historiador Robert Levine, lançado em 1998 e estranhamente ainda não publicado no Brasil.

Especialista em assuntos brasileiros e diretor do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Miami, Levine tomou contato com o acervo ao conhecer o filho de Genevieve, Peter Reznikoff, em Nova York. "Assim que vi as fotos, percebi que eram maravilhosas. Tínhamos que produzir um livro sobre elas", conta Levine, autor de diversos livros sobre a América Latina.

O impacto das imagens de Genevieve em Levine e no curador do módulo "O olhar distante", Pedro Corrêa do Lago, deve-se basicamente ao mesmo motivo: a feliz conjugação entre qualidade artística e valor documental. Além da inegável beleza das fotos – muitas delas já foram comparadas a trabalhos de mestres mundialmente reconhecidos, como Robert Cappa e Henri Cartier-Bresson –, destaca-se sua importância histórica. "Elas foram realizadas durante o Estado Novo, quando a grande maioria das imagens publicadas no Brasil eram objeto de censura. Esse não foi o caso das fotos de Genevieve", diz o historiador.

"Outro motivo de interesse é que a fotógrafa, sendo estrangeira, tinha um ‘olhar’ diferente dos fotógrafos brasileiros, especialmente os que trabalhavam para o Ministério da Propaganda", aponta. E foi justamente esse olhar diferenciado que permitiu que Genevieve realizasse um registro muito além do convencional. "Ela era uma espécie de rebelde. Não se satisfazia em retratar a elite em suas residências. Naylor amava sair pelas ruas e fotografar tudo aquilo que lhe despertasse a atenção", afirma Levine.

Uma vida em imagens

Genevieve Naylor nasceu em Springfield, Massachusetts, em 1915. Antes de se dedicar à fotografia, estudou pintura na Arts Student League de Nova York. Foi uma das primeiras repórteres fotográficas da agência de notícias Associated Press e também trabalhou nas revistas "Time", "Fortune" e "Life". Nessa época, ela já revelava seu talento para registros da vida urbana, ao produzir uma série de fotografias sobre Nova York.

Depois da quebra da Bolsa de Valores de 1929, que mergulhou a economia dos EUA (e conseqüentemente, do mundo) numa enorme crise, Genevieve trabalhou para a Works Progress Administration – agência criada na década de 1930 com o objetivo de ajudar os artistas norte-americanos durante a chamada Grande Depressão.

Dessa experiência, resultou o convite para que Genevieve (junto com seu marido, o pintor de origem russa Misha Reznikoff) integrasse o corpo artístico da divisão brasileira do Office of Inter-American Affairs (OIAA) – órgão do governo dos EUA responsável pela "política da boa vizinhança", de aproximação dos EUA com a América Latina, durante os anos da 2a Guerra Mundial. Aliás, foi por meio desse escritório que vieram ao Brasil nomes importantes da cultura dos EUA, como o cineasta Orson Welles (diretor de Cidadão Kane), Walt Disney e o ator hollywoodiano Errol Flynn.

Em 1940, o casal desembarcou no Brasil, vindo a residir no Rio de Janeiro até 1943. Graças à grande simpatia e ao francês fluente de Reznikoff – poucos no Brasil falavam inglês àquela época –, o casal não tardou a estabelecer vínculos com a nata da intelectualidade brasileira. Entre as amizades cultivadas por eles, estavam nomes como Vinícius de Morais, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Di Cavalcanti, Villa-Lobos, Rubem Braga e Aníbal Machado, em cuja casa aconteciam animadas reuniões todos os domingos.

Outras célebres amizades foram com os arquitetos Oscar Niemeyer e Carlos Leão, que chegaram a visitar o casal posteriormente em Nova York. "Eram pessoas muito agradáveis e ela era uma fotógrafa excepcional", elogia Niemeyer.

Segundo o jornalista Moacir Werneck de Castro, que também os conheceu, os contatos com esse grupo de intelectuais foram determinantes para viabilizar as viagens que empreenderiam a outras regiões do Brasil, e que resultaram em parte importante do trabalho da fotógrafa.

Werneck recorda que Reznikoff apresentou à intelectualidade brasileira algumas obras que aqui ainda eram desconhecidas, como o livro O castelo, de Franz Kafka. Cosmopolita, boêmio e agitado, Misha encantava a todos. Enquanto isso, Genevieve, mais quieta no seu canto, observava tudo e acionava obstinadamente sua câmera, maravilhada com a doce sociabilidade que encontrara no país. "Ela sempre me dizia que, sem o espírito dado, acessível dos brasileiros, suas fotos nunca seriam tão boas", revela seu filho Peter, 45 anos, que cuida dos direitos autorais da obra de Genevieve.

Transgredindo as regras

O convite oficial para que fotografasse o Brasil, no entanto, não tinha relação nenhuma com aspectos afetivos. Seus patrocinadores queriam um registro que mostrasse o desenvolvimento brasileiro de acordo com as aspirações da sociedade norte-americana. Num momento em que a ameaça nazi-fascista se espalhava por todo o mundo, interessava mostrar os brasileiros "como ‘bons aliados’, trabalhadores dedicados e otimistas em relação ao desfecho da guerra", lembra Levine.

Essa idéia também agradava ao governo brasileiro. "O DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda de Getúlio Vargas) desejava que ela registrasse trabalhos de caridade, prédios modernos e luxo", diz o historiador. Ciente do contexto político no qual estava inserida, Genevieve, no entanto, não fez de sua missão uma camisa-de-força. Muito pelo contrário.

"Ela quebrou essa proposta com o risco de perder o emprego", afirma Levine. "Suas fotos se voltaram para o dia-a-dia, retratando vendedores de rua, gente simples. Já no interior do país, registrou cenas raras do cotidiano de trabalhadores rurais." A seleção de fotos do livro permite uma viagem pelas diferenças sociais e culturais do Brasil da época. As primeiras imagens do álbum destacam o cotidiano do Rio de Janeiro. Ricos e pobres, velhos e crianças, todos são alvo das lentes da fotógrafa, surgindo em composições que revelam detalhes da dinâmica social do Brasil.

À medida que avança, o livro desloca seu eixo das cidades para o interior. As inúmeras diferenças da sociedade brasileira tornam-se então evidentes, por meio de imagens que retratam flagelados à espera da distribuição de alimentos e a solidão do trabalho no campo, além da expressão da religiosidade popular em suas mais variadas formas. São cenários muitas vezes miseráveis, os quais, porém, não ferem a integridade dos personagens focalizados. "Genevieve sempre preservou a dignidade das pessoas que fotografou", diz Levine.

O conteúdo político das fotografias também é destacado. Isso pode ser observado até mesmo nas imagens que se voltam para os retratos de família, um dos temas preferidos de Genevieve. São registros que dizem muito sobre a forma como se organiza a sociedade brasileira.

É o que também fica enunciado pela constante aparição de Getúlio Vargas em suas fotos. Mesmo em ambientes onde a presença humana está oculta, como bares e restaurantes vazios, Getúlio Vargas mostra sua onipresença, estampada em retratos pendurados na parede. As fotos falam por si mesmas, revelando o papel controlador de Getúlio Vargas – autonomeado "o pai dos pobres" – no Brasil do Estado Novo.

O resultado é que o Brasil de Genevieve escapa por completo à visão de uma sociedade homogênea, apregoada pelos governos do Brasil e dos EUA. "Suas fotos falam mais sobre o Brasil do que muitos livros de história", afirma Levine.

Moda e guerra

Em 1943, ao retornar aos Estados Unidos, a fotógrafa expôs seus trabalhos no Museum of Modern Art, o que fez dela a segunda mulher a ter uma mostra exclusiva na história da instituição. As fotos sobre o Brasil ainda percorreram os EUA, sendo apresentadas em diversas cidades. "Ironicamente essas fotos documentais, que captaram a vida e a cultura do Brasil, tornaram possível o estágio seguinte de sua carreira, como importante fotógrafa de moda", diz Peter Reznikoff. "Sem as fotografias brasileiras, ela poderia não ter tido sucesso financeiro em sua carreira", completa ele.

Além de se especializar em moda, trabalhando para publicações como "Vogue" e "Harper’s Bazaar", Genevieve se tornou a fotógrafa pessoal de Eleanor Roosevelt (mulher do presidente Franklin Roosevelt). Outros trabalhos que obtiveram grande repercussão foram as fotos que produziu retratando a atuação de enfermeiras na Guerra da Coréia, assim como a série que registra a disputa presidencial entre Kennedy e Nixon em 1960.

Em 1979, ela parou de fotografar para revistas, dedicando-se a partir daí somente à produção de imagens experimentais e abstratas para sua coleção pessoal. Ela morreu em 1989.

Mostras do seu trabalho já foram realizadas em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Agora, com a exposição Brasil 500 Anos – Artes Visuais, a mais importante, abrangente e ambiciosa reunião de obras relacionadas com o Brasil – são 15 mil peças, divididas em 13 módulos, que serão exibidas em várias cidades do Brasil, da Europa e da América do Norte durante mais de um ano – talvez a obra de Genevieve receba o reconhecimento que merece.

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