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Roteiro do silêncio

Foto reproduzida do volume 8 dos Cadernos de Literatura do Instituto Moreira Salles

Apesar de sua grandeza, Hilda Hilst ainda é desconhecida

CECÍLIA PRADA

No momento em que seu aniversário de 70 anos é notado, o primeiro, numa existência até agora ignorada pela quase totalidade de críticos, professores e editores deste país, ressurge Hilda Hilst em força total na homenagem que lhe é prestada no número 8 dos Cadernos de Literatura publicados pelo Instituto Moreira Salles. Autora de 33 livros (entre prosa e poesia), que de 1950 até hoje só foram publicados por editoras pequenas, e de oito peças teatrais, a trajetória dessa escritora paulista ilustra as circunstâncias peculiarmente frustrantes daqueles que se dedicam, entre nós, ao grande ofício de escrever.

Um de nossos maiores e mais conscienciosos críticos, Leo Gilson Ribeiro, não hesita em definir Hilda como "a maior escritora em língua portuguesa", inserida naquela categoria de "náufragos eruditos", a casta de connaisseurs que, à margem de marketings e badalações, vão criando a obra mais duradoura. Indo direto ao ponto, lembra que "ninguém extrai auto-ajuda edificante de seus livros" e que "há mais de 40 anos ela não pára de escrever, ignorada pela chamada ‘grande crítica’ brasileira, não difundida em Portugal nem em países de língua espanhola da América Latina, nem mesmo na Alemanha, que elevou aos mais altos píncaros de elogios as obras de Guimarães Rosa e de Euclides da Cunha".

O fato essencial na biografia de Hilda, o turning point que amarraria toda a sua coerência intelectual/espiritual deu-se em 1963 – aos 33 anos abandonou para sempre a vida social intensa para retirar-se primeiro para a fazenda São José, em Campinas, propriedade da sua mãe. Pouco mais tarde, em 1966, se instalaria num sítio próprio, a Casa do Sol, onde até hoje vive, totalmente absorta em sua criação literária, com seus livros, seus 90 cães, suas pesquisas de caráter metafísico.

Essa inflexão existencial rumo à introspecção e à criação literária foi motivada pela leitura de Carta a El Greco, do escritor grego Nikos Kazantzakis, que preconiza o isolamento do mundo como condição para o conhecimento do ser. No seu retiro, Hilda pôde prosseguir a caminhada pelo roteiro que se propusera, imersa nos grandes temas filosóficos da humanidade, aprimorando seus conhecimentos, realizando inclusive experiências de caráter metafísico – tentando comunicar-se com os espíritos dos mortos – que chocaram profundamente o meio intelectual. Diz a escritora que sua intenção é que, após sua morte, a Casa do Sol se transforme numa fundação especializada em estudos psíquicos e sobre a imortalidade.

O que mais surpreende na literatura de Hilda é a sua versatilidade, a capacidade de transitar facilmente entre gêneros tão diversos como a poesia, a ficção, o teatro e a crônica, e a constância da linguagem poética neles mantida. O roteiro de silêncio ("silêncio estrondoso", diz o poeta e jornalista Álvaro Alves de Faria), a que se propusera em 1959, em 40 anos de produção poética veste-se de roupagens várias e vai do lirismo introspectivo dos poetas de sua geração – que, diz a crítica Nelly Novaes Coelho, "falaram sobre o não-falar ou sobre a inutilidade da fala" – à dimensão épica com que mede e descreve um García Lorca, "Companheiro, morto desassombrado, rosácea ensolarada/ Quem senão eu te cantará primeiro?" E ao mergulho metafísico no ininterrupto e exacerbado diálogo com Deus.

O primeiro livro de prosa, Fluxo-Floema (1970), marcaria uma virada literária. Convivendo diariamente com os grandes filósofos, de Plotino a Wittgenstein ("o louco deslumbrante", como diz), guardando traços de intertextualidade com os últimos textos de Clarice Lispector e com a obra de Guimarães Rosa, Hilda vai retomar com segurança a trilha da ficção metafísica de Samuel Beckett e outros escritores "difíceis", como James Joyce e Virginia Woolf, Georges Bataille e Franz Kafka. É este o seu momento de maturidade, pois, como diz a crítica Eliane Robert Moraes, "ao confrontar o metafísico do puro e do imaterial com o reino do perecível e do contingente que constitui a vida de todos nós, a escritora excede a sua própria medida" e sua prosa "ganha inusitada violência poética, sem paralelos na literatura brasileira".

Apesar do retraimento em que vive, Hilda não é uma "alienada". Pelo contrário, consegue atuar de maneira bastante concreta sobre a conturbada realidade social do país. As oito peças que escreveu de 1967 a 1969, embora inseridas sempre na sua alta poética, visavam passar de forma mais direta ao público a consciência da injustiça social e da opressão política que enfrentávamos. De lá para cá, de vez em quando a autora vem a público expressar seu descontentamento com o precário conhecimento de sua obra, e o faz de maneira franca, em linguagem sem rebuços nem embuços. No início da década de 90 criou grande comoção entre a crítica, finalmente, ao anunciar que passaria a escrever "pornografia". O resultado: três livros em que conseguiu levar a extremos sua violência poética e integrar o cósmico e o cômico, o sublime e o ridículo – condição suprema da vida humana.

Dessa vez, Hilda atingiu o grande público. Em Paris e Roma, é claro. Editoras importantes, como a Gallimard, estão lançando grandes tiragens de alguns livros seus. Aqui, o seu momento de maior aproximação do público situou-se nos anos de 1992 a 1995, em que escrevia crônicas semanais para o "Correio Popular" de Campinas. Ferozes protestos de leitores atingidos pelo desabrido de sua linguagem, mas também grande sucesso. O volume Cascos & carícias (Nankin, 1998) reúne essas crônicas e vale como iniciação segura para o leitor que queira entender esse fenômeno literário chamado Hilda Hilst, uma vez que nelas a escritora consegue se mostrar simultaneamente em seus vários aspectos – das citações de seus próprios poemas e textos em prosa e do desinibido display de sua grande erudição à interpelação direta ao leitor e ao tratamento, em linguagem espontânea e até vulgar, das mazelas sociais e políticas de que é tecido nosso cotidiano.

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