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Norte, nordeste e sul na formação brasileira
Mais um pouco do pensamento de Gilberto Freyre, em texto publicado por "Problemas Brasileiros" em maio de 1976
A seguir, reprodução de palestra realizada pelo sociólogo pernambucano em reunião do então chamado Conselho Técnico de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, em 1º de Abril de 1976
GILBERTO FREYRE – Muito agradeço a oportunidade, que me é oferecida hoje, graças ao meu ilustre colega, professor Freitas Marcondes, de um contato com este já famoso grupo de estudiosos, observadores, analistas de problemas brasileiros.
Existem problemas brasileiros que são problemas comuns a outras sociedades nacionais situadas em diferentes partes do mundo. Alguns de modo particularmente comuns ao Brasil e a sociedades que, como o Brasil, juntam à sua formação, principalmente européia, a presença de outras culturas não-européias, no seu desenvolvimento. São sociedades, essas, e culturas as que as envolvem, particularmente afins da sociedade e da cultura brasileira.
Mas há ao lado e dentro desses problemas comuns ao Brasil e a essas outras sociedades humanas em geral, problemas socioculturais, socioeconômicos, psicossociais especialmente brasileiros. São problemas que, por essa sua singularidade, têm de ser considerados através de perspectivas também brasileiras.
Vivemos numa época em que não são poucos os chamados brasilistas, filhos de vários países, que estão a tratar de problemas brasileiros, e alguns a fazerem contribuições notáveis para o estudo e a análise de coisas brasileiras, quer do passado, quer do presente, se é que podemos separar passado de presente.
Perspectivas brasileiras para os problemas brasileiros
Mas há problemas, daqueles que chamei especificamente brasileiros, que exigem perspectivas – repito – também especificamente brasileiras. Não digo que só de brasileiros natos, mas também de brasileiros por adoção, ou de brasileiros que tenham se integrado profundamente em situações brasileiras. Um deles eu gostaria de citar neste momento. Seu exemplo é magnífico. Foi ele um francês ligadíssimo a São Paulo: Roger Bastide. Entre os trabalhos de Roger Bastide se encontra uma perspectiva brasileira de problemas brasileiros, que dá à sua obra uma profundidade realmente rara em obras sociológicas sobre o Brasil. Poucos brasileiros poderão dizer que tiveram, ou que têm, como Roger Bastide, uma tão grande percepção, uma tão funda penetração, um tão íntimo conhecimento do que é brasileiro em problemas sociais brasileiros.
O mesmo diria eu de um professor italiano, que aqui esteve por algum tempo, e nos deixou um livro, já traduzido ao português, por Carlos Pinto Alves, infelizmente pouco conhecido: o professor Tullio Ascarelli. Outro desses estrangeiros que adquiriram uma perspectiva brasileira para o estudo de problemas brasileiros. Ainda outro, o norte-americano Roy Nash.
Creio que sem essa perspectiva o estudo de problemas brasileiros relativos a sociedades nacionais – e estamos ainda e estaremos por algum tempo num mundo dividido em sociedades nacionais –, creio, repito, que sem essa perspectiva própria de cada uma dessas sociedades nacionais, o trabalho que for escrito sobre qualquer tema socioeconômico, ou psicossocial, ou sociocultural será deficiente. Deficiente por uma falta de conhecimento do assunto, que só se adquire vivendo o assunto, ou, como diria o clássico português, o grande Camões, "vendo, tratando e pelejando". Porque no estudo de problemas sociais cada pesquisador, ou cada estudioso, que pretenda interpretar uma situação, seja passado, seja presente, seja futuro, seja uma combinação dos três tempos – passado, presente e futuro –, tem de travar uma batalha, uma verdadeira batalha. E aquilo que dizia Camões, que a arte da guerra "só se aprende, senhor, não na fantasia, mas vendo, tratando, pelejando", aplica-se a esse trato com problemas humanos, com problemas sociais, com problemas culturais, com problemas psicossociais. Matéria – a psicossocial – de que o professor Pacheco e Silva, aqui presente, é mestre. E grande mestre.
Tornou-se lugar-comum dizer-se do Brasil que vem sendo cada vez mais um vasto laboratório antropossocial. E é verdade. Em que espaço do mundo, hoje, coexistem tantas etnias? Coexistem, mesclam-se, misturam-se, interpenetram-se, resultam em novas sínteses, novos tipos de homens e novas expressões de beleza feminina. E onde há tamanha combinação, como no Brasil, do que é particular, do que é regional, do que é próprio até de certas sub-regiões, do que é nacional, e do que é, na concepção dos brasileiros, universal? Porque o brasileiro é o herdeiro dos povos ibéricos, nessa combinação do que é próprio de uma nação, do que é de uma região, com o que é universal.
Dom Quixote podia ser um homem, e o era muito, da sua região, embora fosse um cavaleiro errante e, portanto, percorresse várias regiões. Mas todos sabemos que a grande, a lúcida, a magnífica loucura de dom Quixote voltava-se para o mundo em geral, ao mesmo tempo que não desprezava a sua aldeia. Essa é uma herança histórica viva no Brasil. Nós somos como que predispostos a ser, cada brasileiro, muito da sua aldeia, muito da sua província, muito da sua região e, ao mesmo tempo, muito do Brasil. E à proporção que o Brasil cresce, e já de uma eminência do valor do professor Kissinger, cuja política me parece discutível, mas cuja erudição respeito – sobretudo em assuntos históricos –, acabamos de ouvir que o Brasil é uma potência emergente. O Brasil emerge como potência.
Muitas são as evidências de que o professor Kissinger não está interessado em nos fazer uma cortesia – interessada ou desinteressada. Ele está a falar no caso, menos como político – político a meu ver cheio de defeitos: realmente não compreendo o político Kissinger, quem quiser que o compreenda, eu não – do que como autor de importantes livros de história e repito que respeito, nesse hoje homem de estado, um erudito, um sábio, um homem de estudos, de grande valor, e atribuo grande importância às suas palavras de consagração do Brasil como potência emergente. Não já grande nação, mas uma já quase supernação.
As democracias
E o fato de estarmos desenvolvendo – queiram ou não alguns críticos das situações brasileiras – não digo que uma perfeita democracia racial, porque a meu ver não há democracia perfeita, de qualquer tipo, mas uma democracia racial é expressivo da grandeza brasileira. Uma vez, estava eu a falar na Universidade de Zurique, na Suíça, isso já há alguns anos.
Depois de minha palestra, levantou-se um estudante e perguntou: "O senhor acha que o seu país é uma democracia?" Ele queria dizer democracia política. Eu disse: "Não, é uma aproximação de democracia política bastante apreciável". E ele então reparou: "Não pode ser democracia política, com tanta gente analfabeta, gente que não pode votar". Foi minha vez de dizer-lhe: "Meu amigo, onde está, no mundo, a democracia política perfeita? Onde? Talvez a maior aproximação da democracia perfeita seja a Suíça. Mas acontece que na Suíça as mulheres não podem votar e eu creio que as mulheres merecem mais votar, quando são alfabetizadas, do que os analfabetos". Devo dizer que a casa quase veio abaixo, pois o auditório era composto, em grande parte, de estudantes do sexo feminino. Fiz sem querer minha demagogiazinha.
Isso mostra que toquei num ponto evidentemente certo. Não há democracia perfeita. Talvez não seja até possível democracia perfeita. Talvez seja um ideal, para o qual devemos estar sempre caminhando e, às vezes, no mundo é muito melhor caminhar. É a lição de dom Quixote. É melhor ser cavaleiro andante do que parar: parar e ficar um confortável burguês, instalado numa boa poltrona de hotel ou de hospedaria. É melhor caminhar sempre, procurar sempre, estar sempre à procura de alguma coisa. Inclusive à procura da democracia perfeita. A democracia perfeita que a meu ver não existe, mas merece que seja procurada, merece que seja buscada, merece que seja desejada. Bem, dito isto, insisto no ponto de que, no mundo de hoje – e eu conheço um bocado do mundo de hoje, tenho sido um bocado cavaleiro andante, tenho sido um bocado peregrino – não, absolutamente, em parte alguma, existe um vasto espaço físico ou social em que haja uma tão grande aproximação de democracia racial como no Brasil.
Há preconceito de raça no Brasil? Há! Sem dúvida que há. Há uma democracia racial perfeita? Não, não há! Mas digo que não há, em parte alguma, maior aproximação disso que se pode denominar democracia racial. Essa é uma das grandes conquistas do Brasil e está ligada ao futuro do Brasil. Em nenhum país das dimensões brasileiras – os EUA, o Canadá, a Rússia e a China –, em nenhuma dessas grandes extensões os conflitos inter-raciais são tão insignificantes como no Brasil. Nós sabemos que há dois Canadás, um francês e um inglês, que estão longe de se amar: tenho visto canadenses franceses que se julgam tão oprimidos pelos canadenses de origem inglesa como os negros pelos brancos nos EUA. Conheço os EUA. Há uma nação unificada nos EUA, como se pode dizer que há hoje uma nação unificada no Brasil?
De maneira alguma. Há um poder preto, poder negro, dentro do poder branco, com o poder preto cada vez adquirindo maior força, maior vigor. Até num pequeno país como a Bélgica há conflitos raciais. Da última vez que fui convidado para falar na Universidade de Louvain, mesmo antes de chegar a essa grande universidade que admiro como um dos maiores centros de cultura do mundo, fui advertido: "Não vá; não vá porque estão apedrejando, os estudantes flamengos, quem falar em francês". Ora, eu não falo flamengo e não desejava ser apedrejado numa cidade que amo tanto.
De modo que rejeitei o convite. Mas veja-se que num pequeno país, de tão profunda cultura como a Bélgica, há esse ódio, dentro do país, entre duas etnias. Na Holanda, por incrível que pareça, o holandês católico é tratado de resto pelo holandês protestante, como se fosse de outra espécie humana. Há lojas onde não pode entrar o holandês católico, lojas que só são abertas ao holandês protestante. No entanto, é a grande Holanda que todos nós admiramos como país liberal, como grande nação democrática. Veja-se o que está acontecendo na Irlanda. A guerra entre protestantes e católicos, irlandeses do mesmo sangue a se digladiarem, a se matarem, a se esfolarem da maneira mais cruel. Isso sem falar da África do Sul: todos sabemos o que se passa na África do Sul. No Brasil, realmente, encontramos alguma coisa de raro, que está acontecendo e que talvez venha a ser a melhor parte do futuro humano generalizado: uma capacidade de mistura de raças e culturas que era já o sonho do inglês das grandes fantasias, do Júlio Verne inglês, Júlio Verne no plano sociológico, que foi Wells. Wells pensava que a harmonia do futuro humano só podia existir com a mistura de raças.
Uma constelação de Brasis
E, há pouco, visitando o Brasil, e tendo me dado a honra de uma visita pessoal em nossa casa, num subúrbio do Recife, dizia-me o grande Toynbee que o exemplo que o Brasil estava dando ao mundo, de mistura de raças e de mistura de culturas, era qualquer coisa que devia ser conhecida. O Brasil devia divulgar mais essa mistura de raças do que divulgava a sua música, que, aliás, é uma expressão sonora da mistura de raças e de culturas que aqui se verifica.
Nós, entretanto, sofremos com relação a umas tantas coisas de algo que não sei – que o diga o meu caro mestre psicólogo, mestre de psicologia Pacheco e Silva –, que não sei se é extrema modéstia. O brasileiro se encolhe na revelação de uns tantos dos seus valores e um desses valores é este, de sabermos desenvolver uma nação dentro de bom entendimento inter-racial e através de um sistema inter-regional de convivência nacional. O Brasil é uma constelação de Brasis. E houve um tempo em que o "Times" de Londres, quando publicava notícias do Brasil, isto ainda no século 19, dizia "Notícias dos Brasis", reconhecia que havia vários Brasis. Mas talvez o redator do "Times" daquela época não adivinhasse que esses Brasis formavam, realmente, um esplêndido Brasil uno. Essa, a grande combinação Brasil de norte a sul, de leste a oeste, conforme o tema que me foi dado para comentar esta tarde, nesta casa tão ilustre: é um Brasil que reúne, combina, harmoniza não só gentes de várias etnias como gentes de várias regiões. Somos uma constelação de regiões e esta é uma das nossas riquezas culturais – e sou até muito a favor dos sotaques regionais, achando que não há vergonha nenhuma em que um brasileiro de tal região tenha o seu sotaque, fale com o seu sotaque, tenha a sua cozinha, tenha as suas especialidades culinárias, sem se envergonhar delas, tenha os brinquedos e jogos próprios de cada região e também não se envergonhe deles; tenha o seu tipo físico regional predominantemente desta ou daquela espécie, conforme as predominâncias de combinações étnicas, sem nenhuma região se envergonhar dessas predominâncias. Porque o fato de um brasileiro ser brasileiro não depende, de modo algum, de sua procedência étnica. Nós desenvolvemos uma concepção – é a tese que defendo num livro, que a grande editora Espasa Calpe está agora a publicar em espanhol, que já foi publicado em português, chamado Além do apenas moderno – de que o brasileiro é um ente nacional que existe à revelia de preocupação com as suas origens étnicas.
O brasileiro se define por um modo que já é seu, socialmente seu, tão psicossocialmente seu, biossocialmente seu de andar, de sorrir, de chorar, de lastimar-se, de gritar, de amar, de namorar – tudo isso já como definição de brasileiro, quer do norte, quer do sul, quer do leste, quer do oeste, quer desta região, quer daquela região. O andar do brasileiro existe: você pode apontar em Paris – "ali vai um brasileiro". Você pode apontar o brasileiro pelo gesticular. Há o sorrir, que é tão característico como o sorrir japonês. Nós todos sabemos que há o sorriso japonês, mas há também o sorriso brasileiro. Os brasileiros sorriem de uma maneira brasileira, que independe inteiramente da sua condição étnica. Pode ser brasileiro de origem mais africana, pode ser brasileiro de origem mais ameríndia, pode ser brasileiro de origem mais germânica, ou, em São Paulo, de origem mais italiana, já há um sorriso brasileiro, que se sobrepõe a qualquer herança de caráter étnico-cultural. Há um sorriso brasileiro, um andar brasileiro, um amar brasileiro. Há um tipo de beleza feminina brasileira, que também se sobrepõe a todas as diferenças étnico-regionais ou étnico-culturais para ser brasileiro.
Realmente, uma das grandes conquistas brasileiras é ter produzido, vir produzindo ou continuar a produzir um tipo de beleza feminina, em geral mestiça, caracteristicamente brasileiro, um tipo brasileiro de mulher que se impõe à admiração mundial. Agora mesmo vê-se um rei sueco escolhendo uma brasileira para rainha da Suécia. Porque esse rei sueco reconheceu que nessa brasileira há alguma coisa de graça feminina que lá não se encontra, como não se encontrou nunca na beleza feminina apenas européia ou apenas norte-americana ou apenas escandinava ou apenas nórdica, ou apenas caucásia. Porque é uma graça que se sobrepõe à européia e corresponde à definição que procuro dar no livro chamado Além do apenas moderno.
Nós somos uma nação criadora, já, de uma concepção, de um tipo nacional de homem, de mulher, que vai além da classificação racial. O brasileiro não é uma raça qualquer. O brasileiro é a expressão de uma convivência, de uma vivência, de uma cultura, de uma herança nacional e ao mesmo tempo de outra, regional. Porque essa expressão nacional de cultura brasileira é enriquecida e não prejudicada pelo fato de ser uma constelação de regiões, de haver um norte, de haver um nordeste, de haver um centro-sul, de haver um extremo-sul, de haver um leste e um oeste. Todas essas regiões vêm contribuindo para formar esse tipo pan-brasileiro. Um tipo pan-nacional brasileiro. E aí está uma das nossas grandes vitórias dentro do desenvolvimento histórico. Creio que se pode dizer que nenhuma das nações, nenhum dos continentes, nenhuma parte do mundo pode apresentar a mesma harmonização de regional com o nacional. Ou de pluralidade com unidade. O Brasil pode ser caracterizado como uma nação – é um paradoxo – ao mesmo tempo plural e una.
Há, realmente, vários Brasis, mas região alguma brasileira pensa em separar-se do Brasil, porque já existe uma mística brasileira de orgulho de ser uma das mais extensas nações do mundo. Um absolutamente esdrúxulo separatismo viria quebrar essa grandeza que o Brasil já, hoje, representa, como expressão territorial, como expressão física e, ao mesmo tempo, como expressão sob várias formas de uma cultura nacional, toda ela brasileira, quer se exprima no sotaque gaúcho, quer se exprima no sotaque cantado do nordeste, pois não sei se eu próprio falo cantando à maneira nordestina; mas se não falo é uma deficiência minha.
O nacionalismo brasileiro
É o Brasil, em sua herança européia, um país do qual se deva dizer que já não é Europa? Haverá um Brasil antieuropeu? De modo algum. Nós já não temos a preocupação, que eu ainda alcancei nos meus áureos tempos de criança, de sermos europeus, de parecermos europeus, de comermos à européia, de quando aparecia em casa, pelo menos na minha casa, um visitante estrangeiro, nós lhe oferecermos comidas parecidas com as européias. Não queríamos parecer, na nossa intimidade, um povo subeuropeu. Hoje, porém, o europeu já não é um modelo autêntico.
Preferíamos ser um tanto extra-europeus a ser, de um modo um tanto ridículo, subeuropeus.
Felizmente, o nacionalismo brasileiro, que é, dentro de seus limites, tão saudável, não nos fez passar da condição de subeuropeus, que era uma condição das mais humilhantes – colonialismo da pior espécie –, para a de antieuropeus. Que motivos nós temos para ser antieuropeus, como estão sendo violentamente antieuropeus, agora, alguns dos novos cidadãos, algumas das novas repúblicas africanas e asiáticas?
Vou assumir, agora, atitude herética. Vou fazer uma pequena defesa – fazer não mas sugerir –, uma pequena defesa do imperialismo. Meus amigos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, o que há de melhor na civilização moderna não haveria se não fosse o imperialismo europeu. Ainda na Índia se enterrariam as viúvas dos marajás que morressem deixando viúvas jovens. Ainda em várias partes do mundo se matariam aqueles homens que chegassem à minha idade, por serem velhos demais e não haver lugar nas tribos para os velhos demais. Ainda toda essa série de horrores se praticaria se não fosse o imperialismo europeu.
Não digo que o imperialismo europeu não praticou erros tremendos, pecados, para usar a linguagem teológica, de fazerem tremer troncos de árvores. Praticou. Explorou povos, extorquiu de nativos quase toda a sua seiva, fez violências de várias espécies. Mas, em compensação, o que deu o imperialismo europeu aos povos não-europeus é de um valor imenso. Não fosse o imperialismo, ainda conviveríamos com vários males. O imperialismo cortou pela raiz vários males, o imperialismo implantou vários bens. Se não fosse o imperialismo inglês, não haveria a República Indiana, não haveria o Paquistão. Não haveria novas culturas nacionais.
Quem substituiu os espíritos tribais tacanhos, estreitos, por espíritos nacionais, senão o imperialismo? De modo que me parece uma falta completa de perspectiva sociológica e de justiça histórica negar-se o lado positivo do imperialismo, situando-o no mesmo plano do negativo.
O Brasil foi beneficiado pelo imperialismo europeu. Foi explorado pelo imperialismo europeu; foi roubado pelo imperialismo europeu. Foi furtado pelo imperialismo europeu, mas foi também beneficiado por ele. Não fossem as presenças imperiais de vários povos da Europa no Brasil, como em outras partes do mundo, e o Brasil, como essas partes do mundo, não teria atingido o desenvolvimento sociocultural que tem atingido.
Naturalmente, há um tempo em que o imperialismo precisa parar, como parou. Soube parar, com a sua extraordinária sabedoria, o imperialismo britânico, talvez de todos os imperialismos europeus o de ação mais extensa. O que não quer dizer que o imperialismo francês, como os outros imperialismos, não agia também de forma até certo ponto benéfica a favor de colônias ou protetorados.
As influências imperiais
Lembro de ter conhecido, na minha mocidade de estudante no estrangeiro, esse grande indiano que foi Rabindranath Tagore, o poeta, o humanista, o patriota que tanto contribuiu para a independência da Índia em duas nações, a União Indiana e o Paquistão. Era uma figura extraordinária. Mas como esse homem era marcado pela influência britânica, que fizera dele um novo tipo de homem! Sem destruir nele o indiano, criara nele outra figura de intelectual, graças à influência dessa extraordinária expressão de imperialismo que têm sido as literaturas européias – principalmente a de língua inglesa – na sua influência ou na sua repercussão sobre as nações não-européias. Que têm sido as artes européias, nos seus encontros com artes não-européias, resultando novos surtos estéticos extraordinários, senão sínteses vigorosamente híbridas? Desses encontros vêm resultando novos surtos estéticos extraordinários, como foi o do período negro-africano da pintura de Picasso. Picasso deu à sua arte ibérica, já um pouco tocada de influência francesa, uma nova expressão, acrescentando-lhe o que de verde e de virgem absorveu da África negra e criando um novo tipo de arte. Outros Picassos, na pintura, na música, na própria arquitetura, têm feito o mesmo, juntando influências imperiais européias a influências vindas de gentes não-européias.
Quando se estuda a história íntima do Brasil sente-se que no brasileiro a presença européia foi, sob vários aspectos, uma presença criativa que muito nos deu. O que é exato não só da presença ibérica, como da presença francesa, da presença alemã, da presença britânica, da presença italiana, da presença belga. Várias dessas presenças contribuíram e têm contribuído para desenvolver o Brasil.
Ao reconhecer essas influências européias, isto nos dá autoridade para proclamar o que o Brasil deve à África. O que o bom Brasil nativo, indígena, ameríndio, deve à África.
Sou de uma época, para recordar mais uma vez a minha meninice, em que nós, brasileiros, tínhamos vergonha de confessar, na vida do Brasil, a influência africana. Escondia-se o caruru e o vatapá, como se escondessem ignomínias. Quem era que convidava um estrangeiro ilustre para comer um vatapá, um cuscuz paulista, ou mesmo uma inocente feijoada? Escondia-se tudo isso e davam-se ao estrangeiro imitações, arremedos de suas próprias comidas, dos seus próprios quitutes.
O que principalmente se queria esconder era a influência africana, que nós, felizmente, mesmo com esses resguardos, temos sabido aproveitar, e hoje já não nos envergonhamos de dizer: nós nos orgulhamos do que assimilamos da África, tanto quanto dos indígenas.
Sabemos que a música brasileira tem em grande parte influência africana. E eu diria até que o africano não foi no Brasil simplesmente um escravo passivo às ordens do colonizador europeu; o africano foi um co-colonizador ao lado do colonizador europeu; o africano também colonizou o Brasil. O africano também foi, a seu modo, um imperialista no Brasil. O africano também trouxe africanismos que nos foram impostos suavemente por ele. Impostos pela mãe negra, impostos pela mucama, impostos pela amante de cor, impostos de uma maneira suave por ele próprio, pajem, malungo, negro velho. O imperialismo nem sempre se impõe pela violência. Impõe-se também suavemente pelo amor.
Eu diria que na formação brasileira, das várias regiões, mas sobretudo na de certas regiões, há nessa formação um imperialismo africano, que nos trouxe coisas, costumes, valores africanos que se tornaram brasileiros e são hoje parte íntima do Brasil. A grande sabedoria do Brasil está em vir sabendo conciliar o que nos trouxe a Europa com o que nos trouxe a África e com o que nos vem da própria América, da própria gente ameríndia, do Brasil indígena, do Brasil que existia antes de Pedro Álvares Cabral. Brasil indígena que tem sido sabiamente estudado por mestre Egon Schaden, aqui presente.
Essas influências, os toques desses vários, vamos chamar, imperialismos, definindo o imperialismo com um sentido elástico e admitindo que há um lado bom e há um lado mau nos imperialismos, têm tido repercussões diferentes nas várias regiões brasileiras. E daí uma das causas das diferenças regionais do Brasil. São diferenças regionais que existem e que enriquecem, em vez de prejudicarem o todo nacional brasileiro, o todo pan-brasileiro.
Devemos dar graças a Deus – nós, que acreditamos em Deus, é claro – por haver regiões no Brasil e por haver uma unidade que coexiste com uma pluralidade. Um Brasil que tivesse um só tipo de cultura, que fosse somente europeu ou apenas lusitano na sua sobrevivência da época da colonização, seria um Brasil terrivelmente monótono na sua cultura, nas suas formas de convivência, nas suas expressões do tipo humano. Não teria criado aquela expressão de beleza feminina que o Brasil vem criando e que, não nos esqueçamos, insistimos em destacar, é uma das grandes contribuições brasileiras estéticas para a civilização mundial. Quando o Brasil se definir, mesmo, como potência, esse Brasil-potência, que já está tão perto de nós, terá na figura da mulher brasileira um dos símbolos mais expressivos e mais significativos de sua originalidade.
A unidade brasileira e a pluralidade brasileira
James Brice, que escreveu um dos melhores livros que há de autor europeu sobre a América do Sul, e cuja parte brasileira é um primor de observação, conclui que o Brasil era, de todos os países por ele visitados, inclusive a Argentina, o Chile e o Uruguai, a parte dessa América onde mais se sentia uma presença européia ao lado das presenças ameríndias e africanas. Por quê? Naturalmente, tomando só o aspecto da composição étnica, ele teria encontrado na Argentina muito mais Europa do que no Brasil; teria encontrado no Chile ou no Uruguai muito mais Europa do que no Brasil. Por que, então, ele concluiu que havia mais presença européia no Brasil? Simplesmente porque encontrou aqui sobrevivência de uma instituição, que foi única na América – fora um episódio mexicano de efêmera duração –, na sua formação brasileira: a instituição monárquica. Essa instituição monárquica não teve, para nós, apenas um sentido politicamente valioso ou útil. A formação monárquica tornou possível que no Brasil se combinassem de uma maneira permanente, de uma maneira duradoura, de uma maneira, vamos dizer, brasileira unidade e diversidade. E aí entrou o gênio, o gênio que nós não temos sabido até hoje consagrar, glorificar, cultuar, de um paulista de Santos, chamado José Bonifácio de Andrada e Silva.
Quando José Bonifácio preparou a independência do Brasil, mantendo a monarquia como forma de governo, praticou o golpe político-social mais sábio que qualquer estadista praticou no continente americano. E nós, do Brasil – repito –, não temos sabido cultuar a memória do nosso retoricamente chamado Patriarca da Independência: um patriarca tão esquecido, um patriarca tão pouco estudado, um patriarca que as crianças não conhecem, um patriarca que os brasileiros rústicos ignoram, quando todos nós devíamos conhecer José Bonifácio, saber alguma coisa de José Bonifácio, saber que esse homem genial tornou possível a unidade brasileira, ao mesmo tempo que a pluralidade. Diz-se de José Bonifácio – não sei até onde vai o mito ou até onde vai a realidade – que ele se considerava principalmente de Santos, em São Paulo, e de São Paulo, no Brasil, e do Brasil, na América do Sul. Quer dizer, ele combinava o sentimento da unidade nacional e o espírito de região, o espírito de sua província, o espírito, até, da sua aldeia natal. Este é o grande segredo do que é hoje o Brasil pré-potência e, de fato, já quase potência.
José Bonifácio trouxe para o Brasil uma instituição particularmente européia, porque ele conservou não só a monarquia como uma família real européia. Vejam até onde andou o gênio: conservou os Bragança no Brasil, os Bragança atuando como símbolo persistente da unidade. O Brasil uno. Ele foi, no Brasil, o grande paulista, sem prejuízo do enorme brasileiro, que também foi. E aí está o grande rumo brasileiro, seguido, em grande parte, graças a José Bonifácio. O rumo que nós continuamos a seguir. Com a facilidade de comunicação com a televisão, com o avião, já não há o menor perigo de qualquer região do Brasil, por mais remota, se desprender do Brasil.
Ainda há pouco estive, com minha mulher, que nunca me deixa só e sempre me acompanha, em Roraima. Naquele fim de mundo. Eu não tinha um convite de Roraima, como gostaria de ter tido. Era um convite da Guiana ex-Inglesa, que me levava àqueles extremos, inaugurando a sua Universidade da República Independente, que para conferencista da solenidade convidou um brasileiro, e esse brasileiro fui eu. Roraima estava no caminho. O avião, por acaso, parou lá. E alguém, por uma indiscrição qualquer de Manaus, soube que nós íamos passar pela capital de Roraima: uma capital no meio da floresta. Não esquecerei, nunca, a impressão de Roraima. Estavam formadas as escolas primárias e as secundárias – toda uma população de origem principalmente indígena. Mocinhas, rapazes, nascidos indígenas, cantando o Hino nacional, falando português, um deles discursando em português, todos sorrindo em brasileiro, abraçando-me como crianças de São Paulo me abraçariam; como crianças da Bahia me beijariam. Grande emoção para um brasileiro ver como existe nessa extensão toda que é o Brasil – porque descendo em Roraima se desce no meio da floresta quase virgem, e, saindo de Roraima, o avião prossegue sobre florestas e mais florestas – uma nação una e ao mesmo tempo plural, pois ali está o Brasil, uma nova região brasileira, crescendo brasileiramente. Com quem? Com europeus? Não. Com africanos? Não. Com indígenas, que já são brasileiros, já não falam tupi ou guarani, ou o que for, pois falam é português, cantam em português e sorriem como brasileiros. Ali não me escapou, como antropólogo que sou, a diferença do sorriso ameríndio e do sorriso já brasileiro daquelas crianças, daqueles jovens, daqueles novos brasileiros. Abrasileiramento forçado? De modo algum. Pais e avós desses jovens continuam indígenas e agrestes.
Como isso é admirável – com todos os defeitos que nós temos!
A mesma língua, um quase milagre
De modo que quando se diz que no Brasil há um norte, há um nordeste, há um centro-sul, há um extremo-sul, há um leste, há um oeste, não se diz que há um desconjunto de partes, mas há um conjunto de regiões que se completam, que se harmonizam, em que falam todos – no que parece um quase milagre sociológico – a mesma língua. Essa mesma língua que é falada, é certo, com diferenças de sotaque, que a meu ver a enriquecem, com pequenas diferenças de vocabulário, mas que é a mesma língua portuguesa, desde Roraima à fronteira do sul, a Uruguaiana, à fronteira com a Argentina e com o Paraguai. Essa mesma língua portuguesa, essa mesma língua européia enriquecida de africanismos e de termos ameríndios, enriquecida dessa continuação de culturas que se interpenetram, como os corpos estão se interpenetrando, formando novos tipos de mulher, como aqui em São Paulo estão aparecendo – sou bastante sensível à beleza feminina e estou notando em São Paulo certo tipo feminino, em que entra o sangue japonês – um lindíssimo tipo mestiço.
Isso é o Brasil regional, isto é o Brasil nacional. Isso é o Brasil formado por Brasis, de que falava o "Times". Isso é o Brasil mais brasileiro. É o Brasil para o qual me orgulho de ter criado a definição: Brasil pan-brasileiro.
Ora, o Brasil, e aqui vou encerrar os meus comentários, nesta tarde para mim inesquecível, perante um público tão inteligente (sempre considero inteligente o público que me ouve com atenção), o Brasil precisa, cada vez mais, de ser estudado nas suas peculiaridades brasileiras. É preciso que nós desenvolvamos, cada vez mais, uma ciência social, seja a antropologia, seja a sociologia, seja a economia, seja a psicologia social, seja a própria psiquiatria, com perspectivas brasileiras. Partindo de perspectivas brasileiras.
Não quer dizer que nós vamos romper com o ecumênico da ciência, com a universal ciência. Quer dizer que vamos procurar acrescentar perspectivas brasileiras, que possam até servir a outros grupos humanos, em situação semelhante à brasileira, para o esclarecimento, para o estudo, para a interpretação de situações sociais diferentes das clássicas.
Essas perspectivas brasileiras são necessárias e é preciso que cada vez mais se desenvolva o estudo de situações brasileiras, com esse rumo brasileirizante nas perspectivas, e até brasileiramente em novas combinações de métodos.
Há métodos válidos para o estudo de ciências sociais na Europa e nos Estados Unidos, que não são métodos adequados ao estudo da situação brasileira. Nós precisamos reconhecer a necessidade de adaptar métodos ao invés de repetir os que nos sejam impostos; em vez de sermos passivos com relação a métodos de outros povos, só porque são povos que se acham mais adiantados em ciências, que são situacionais ou ecologias.
Nós temos o direito e temos o dever de adaptar métodos estrangeiros ao estudo, à qualificação, ao esclarecimento, a interpretação de situações específicas do Brasil. Como nenhum povo tem situações exatamente iguais ao Brasil, é necessário que haja métodos em ciências sociais compatíveis com essas peculiaridades. É preciso haver novas criações metodológicas e novas criações em perspectivas, para o exato conhecimento do Brasil, através de ciências sociais.
Os estrangeiros chamados brasilistas, que vêm ao Brasil para estudar assuntos brasileiros, podem colaborar com os colegas daqui em vários particulares. Mas nós sabemos que há sutilezas, que há intimidades brasileiras, que eles não podem captar, a não ser que se integrem no Brasil. E não apenas que aqui passem dois anos à procura de um chamado Ph.D.
Especialistas e generalistas
Os problemas brasileiros são problemas de convivência humana, são problemas complexos. São problemas que pedem não só especialistas, porém generalistas. São problemas que pedem o uso, por todos os brasileiros, de métodos chamados interdisciplinares. Exigem que várias ciências se unam para o esclarecimento de um só problema, de uma só situação, de um só tema. E isso, nós, brasileiros, somos os únicos capazes de desenvolver. Os mais capazes de desenvolver novas perspectivas, para o estudo dos nossos problemas e novas combinações de métodos para o estudo desses mesmos problemas.
Daí ser tão importante o estudo das ciências sociais no Brasil; daí ser tão importante haver numa casa tão ilustre como esta Federação do Comércio um departamento consagrado a estudos sociais. Às ciências sociais. Realmente, as ciências sociais não são luxo, nunca foram luxo e muito menos são luxo no mundo de hoje, que é um mundo que depende extraordinariamente dessas mesmas ciências sociais. Todas as vezes que elas são desprezadas há erros tremendos.
Onde o cientista social não pode faltar
Um dos erros imensos já praticados no Brasil foi a construção de Brasília sem ciência social: entregando o governo federal a construção de uma cidade, como um faraó o faria, a dois, aliás, ilustres arquitetos.
O já histórico presidente Juscelino Kubitschek, no início da construção de Brasília, não convocou um só cientista social, não convocou um só geógrafo, não convocou um só economista, não convocou um só psicólogo social, não convocou um só sociólogo, não convocou uma só autoridade em assuntos escolares para participar do planejamento da nova capital. Um dos resultados que logo apontei quando fui convidado – já Brasília quase pronta – pelo ex-presidente Kubitschek para dar opinião sobre o assunto é que Brasília estava cheia de erros imensos. Mas o então presidente estava certo de que Brasília era coisa maravilhosa e não podia admitir que estava cheia de erros tremendos e que, aliás, só agora estão sendo corrigidos.
Há falta de áreas para a recreação e o lazer: um problema que esta federação tem considerado. Não se considerou na construção de Brasília. Objetavam os arquitetos: Brasília não é uma cidade operária para precisar de recreação e lazer.
Mas, então, só o operário precisa de lazer, de recreação? Então, só para os operários aumentaram as horas do dia, e não para os funcionários públicos? E não para os servidores públicos mais modestos, cujos filhos ficaram algum tempo sem espaço onde fazer exercícios? Pois só agora, no ano de 1976, o atual prefeito de Brasília está cuidando do problema que se devia ter cuidado há 25 anos. Por que desdenhou-se da presença do cientista social na construção de Brasília, como se esse arrojo fosse apenas problema de arquitetura e de arquitetura escultural?
O mesmo erro está se fazendo na Amazônia, no tocante à ocupação social de espaço, na autocolonização da Amazônia. Não se vêem convocando cientistas sociais, ecologistas, que orientem, que assessorem o Incra (Instituto de Colonização e Reforma Agrária), exclusivamente dirigido por homens públicos sem nenhum conhecimento científico da matéria. E sem esses dirigentes convocarem cientistas sociais para os orientarem na chamada colonização da Amazônia, que, aliás, não é colonização – tive lá ocasião de dizer – mas autocolonização. O brasileiro está autocolonizando heroicamente a Amazônia. A participação do exército nesse esforço está sendo magnífica, mas, de modo geral, está se autocolonizando a Amazônia sem orientação científica de espécie alguma no tocante à ocupação social de espaços tão virgens. E já se atribui a um dos ministros de Estado do governo anterior esta orientação messiânica – introduzir-se na Amazônia um boi em lugar de cada árvore abatida, como se uma árvore não fosse uma fonte tão séria de vida e pudesse ou devesse ser substituída por um boi.
Temos todos um grande respeito pelos bois, mas devemos também ter um grande respeito pelas árvores.
E aqui termino, agradecendo a atenção dos que me ouviram de maneira tão generosa.
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