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Duplo crime
LEONARDO SAKAMOTO
Nas adjacências do Parque Nacional da Serra da Capivara, no interior do Piauí, parte de um dos mais importantes sítios arqueológicos do mundo está sendo definitivamente comprometida. Rochas calcárias de cavernas com pinturas rupestres que podem ter 40 mil anos e representam elementos de valor inestimável para explicar a ocupação pré-histórica do continente são dinamitadas ou destroçadas impiedosamente a golpes de picareta, para ser transformadas em cal. Pior, muito pior: essa destruição, promovida pelas caieiras (produtoras de cal) é realizada com mão-de-obra em regime de "semi-escravidão", segundo laudo do Ministério do Trabalho (ver texto abaixo).
A exploração de trabalhadores em condições desumanas e a destruição do patrimônio histórico, no entanto, parecem não ser tão importantes. Até agora, ironicamente, a única punição que os responsáveis pelas caieiras da região receberam foi por extrair recursos minerais sem autorização oficial e por comercializar o produto desse ato irregular. Em 28 de abril de 1999, o juiz federal substituto Márcio Braga Magalhães, da 1a Vara Federal do Piauí, determinou que as caieiras fossem destruídas, que fosse enviada força policial para garantir o cumprimento da decisão e instaurado inquérito para apurar responsabilidades "por parte de proprietários de terra, trabalhadores e comerciantes".
Mas foi só a poeira assentar e as caieiras voltaram a operar como antes. E os trabalhadores, a sofrer como sempre. Apesar das freqüentes denúncias e do alarde que ocasionam nos meios de comunicação, condições de trabalho como essas ainda são vergonhosamente comuns no país (ver texto abaixo). No Piauí, é bom que se diga, não ocorrem apenas nas caieiras, e, mesmo entre elas, estendem-se além dos domínios do parque nacional. Ganham evidência apenas quando são flagradas por pessoas com capacidade de indignação e coragem suficiente para denunciá-las, sob risco de perder a vida por isso.
No caso da serra da Capivara, além desses ingredientes, conta também – e muito – a obstinação da arqueóloga Niède Guidon, diretora do parque nacional, em defender os frágeis sítios arqueológicos da região contra as eternas ameaças que pairam sobre eles.
Há, de fato, muito a perder. No parque nacional, localizado no município de São Raimundo Nonato, está a maior concentração de pinturas rupestres das Américas, com mais de 30 mil desenhos em 417 sítios arqueológicos catalogados – dos quais apenas 11 foram efetivamente explorados. Foi lá que Niède encontrou vestígios de ocupação humana que remontariam a 500 séculos. Isso colocou em séria dúvida as teorias norte-americanas de que os primeiros Homo sapiens teriam vindo a pé pelo estreito de Bering e, a partir de lá, se espalhado pelo continente. Pois, para que isso seja verdade, os mais antigos vestígios estariam lá e não aqui – ao contrário do que os achados na serra da Capivara indicam (ver texto abaixo).
Guerra acadêmica à parte, é inegável a importância da região para ajudar a revelar como era a pré-história americana. A ponto de, em 1991, a Unesco ter elevado o parque à categoria de patrimônio cultural da humanidade.
Apesar de teoricamente estar sob responsabilidade do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), quem de fato toma conta da serra da Capivara é a Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), criada por uma missão franco-brasileira, que, além de substituir as atribuições do Ibama (que seriam a vigilância e a manutenção do local, basicamente), acrescenta as de pesquisa científica interdisciplinar e desenvolvimento sustentável da economia da região.
Devido à fiscalização constante nos 130 mil hectares do parque nacional, conseguiu-se, por exemplo, inibir a caça de animais silvestres como onças e tatus. Para garantir a sobrevivência das famílias que dependiam dessa atividade, criou-se um programa de apicultura. Famílias do Sítio Mocó, povoado próximo à entrada principal do parque, foram treinadas para esse trabalho. Hoje, a comercialização do mel garante uma renda equivalente a um salário mínimo mensal por família.
Além da área do parque, uma faixa que abrange as terras a 10 quilômetros do perímetro está sob proteção ambiental, ou seja, nada pode ser derrubado ou destruído sem a prévia autorização da administração.
Fora do parque, mas dentro da área de proteção, estão os serrotes, formações calcárias ricas em grutas e cavernas. Neles já foram encontrados ossos de espécies da megafauna (como já diz o nome, animais de grande porte, como tigres-de-dente-de-sabre e mastodontes, que viveram na região há mais de 10 mil anos). No serrote da Bastiana estão as primeiras pinturas rupestres de que se tem notícia em todo o planeta que retratam um desses animais – mais exatamente, uma preguiça gigante.
Segundo Niède, estudos realizados no Instituto de Física da Universidade de São Paulo estimam a idade da camada de cálcio que se depositou sobre a tinta dos desenhos de Bastiana entre 32 mil e 40 mil anos, equivalente à dos sítios arqueológicos mais antigos do mundo, localizados na França e na Austrália. Mas a descoberta pode ser ainda mais importante. Afinal, qualquer que seja a data de sua formação, essa camada calcária, resultante de uma lenta acumulação, é obviamente posterior às pinturas que ela cobriu. Amostras do pigmento foram enviadas aos EUA para que se conheça a idade real das figuras. Com base nos resultados preliminares sobre a data dos depósitos calcários, projeta-se para elas uma data em torno dos 40 mil anos. Caso essa hipótese se confirme, essas pinturas rupestres serão não apenas as únicas que registram a megafauna, mas também as mais antigas descobertas até hoje no mundo.
Em outros países essas informações já seriam motivo para desapropriar as terras, ressarcir os antigos proprietários e iniciar um trabalho de pesquisa e conservação. Em Portugal, descobriu-se que uma área que seria inundada pela construção de uma barragem na região de Foz Coa, centro-norte do país, possuía dezenas de sítios arqueológicos. Isso foi o suficiente para o governo embargar a obra, cobrir os prejuízos dos empreiteiros (mais de US$ 150 milhões) e construir infra-estrutura para visitação e pesquisa. Outro exemplo é o caso do lago Nasser, no Egito. Na época da construção da Barragem de Assuã constatou-se que um dos mais belos monumentos da humanidade, o templo de Ramsés II, iria ser coberto pelas águas em pouco tempo. A solução encontrada foi gastar centenas de milhões de dólares para retirar estátua por estátua de seu lugar original e transportá-las para um local dezenas de metros acima.
Porém, o governo brasileiro não tem mostrado muito interesse na questão, apesar dos apelos de Niède Guidon e da Fumdham. E, assim como foi em Portugal e no Egito, corre-se contra o relógio. Aqui o problema não são as águas, mas talvez a falta delas.
Escravidão branca
A região de caatinga do sertão do Piauí está inserida no semi-árido nordestino, ou seja, é seca em boa parte do ano. As chuvas que costumam cair de outubro a abril desaparecem nos outros meses. Sem grandes rios perenes, a população fica à mercê do que conseguiu plantar e colher quando havia água. Sem trabalho e precisando colocar comida na mesa, pais, mães e filhos acabam caindo nas mãos dos contratadores das caieiras.
A prática de fabricação de cal na região é antiga, anterior à instituição do parque, em 1979. Grandes fornos são construídos para queimar os blocos de calcário até que se transformem em pó. O processo leva geralmente dois dias e, enquanto isso, toneladas de madeira viram cinzas. As famílias que dependem desse serviço acabam se submetendo ao que se convencionou chamar de "escravidão branca". Os contratadores – que não costumam ser os proprietários dessas terras, e sim atravessadores que arrendam do dono o direito de explorar a cal – fornecem lenha para a queima do calcário e vendem aos trabalhadores óleo, arroz e feijão. Como estes nunca têm dinheiro, vão colocando as compras na "conta" ao longo dos meses. Na hora do acerto final, o preço da cal vendida aos contratadores é sempre menor que o valor total da lenha somado ao dos mantimentos consumidos no período. As famílias terminam sempre endividadas e obrigadas a trabalhar mais para quitar o saldo – o que nunca acontece.
Sangue cozinhando
Com o sol queimando a cabeça, arrebentam a rocha, carregam os pedaços com o carrinho de mão, constroem fornos e queimam a cal. Muitos morrem de doenças cardíacas, outros devido às conseqüências do que chamam de "sangue cozinhando" – uma maneira de denominar os danos que a longa exposição a altas temperaturas causa ao organismo.
Para cada 48 horas de queima ininterrupta de um forno são necessários sete caminhões de madeira, de acordo com o depoimento de Juscelino Vieira da Silva, trabalhador das caieiras, aos fiscais do Ministério do Trabalho que visitaram a região e constataram a situação inumana em que vivem essas pessoas. Juscelino perdeu a mão esquerda ao tentar utilizar um explosivo caseiro feito com pólvora negra e bucha de tecido numa pedreira no serrote do Artur. Teve que se dedicar apenas ao roçado como forma de sustentar a família. Recentemente, o governo cortou a aposentadoria que ele havia adquirido por incapacidade.
Outro desses trabalhadores afirma que o responsável pelo fornecimento do explosivo que levou os dedos e os movimentos de sua mão direita foi um dos atravessadores, Valmir Silva Costa, considerado o maior comprador e revendedor de cal da região.
Dinamite não é algo que se compre na esquina. O negócio do comércio de cal movimenta essa prática ilegal. Há muito dinheiro envolvido e, junto com ele, políticos dos municípios da região e de todo o estado. De acordo com Niède Guidon, alguns desses políticos chegaram a recorrer ao ministro do Meio Ambiente José Sarney Filho para obter a liberação da exploração na área de preservação permanente que abrange o entorno do parque. Disseram que sem a extração da cal os trabalhadores morreriam de fome. O ministro não cedeu.
Já há furos no serrote da Bastiana para a colocação de dinamite. Rochas que protegiam a gruta como um telhado foram retiradas e, agora, a chuva escorre pelas pinturas, que já estão riscadas e danificadas. A Fumdham apresentou um projeto à Sudene e ao Ministério da Cultura em que sugere uma alternativa à exploração de cal, garantindo ao mesmo tempo o fim do trabalho escravo na região e a conservação do patrimônio cultural. Com o nome "Educação: ferramenta para a mudança social e econômica", o projeto quer mudar a cara daquela parte do sertão.
A idéia é adquirir as terras dos serrotes e construir infra-estrutura para a proteção das pinturas. O local seria aberto à visitação pública – gerando, assim, fundos para tornar o projeto auto-sustentável no futuro. O projeto prevê também a criação de uma barragem no local, com capacidade para 6 milhões de litros de água, a ser utilizada pela população no período da seca. Numa escola da prefeitura abandonada, seriam ministrados cursos de alfabetização e conscientização da cidadania, além de aulas para a formação profissionalizante em apicultura, cultura hidropônica de legumes, plantas ornamentais e medicinais. E, por fim, planeja-se a construção de apiários e de canteiros de hidroponia utilizando a água da barragem para o cultivo.
O projeto estava orçado em aproximadamente R$ 700 mil, irrisórios se comparados às centenas de milhões de dólares de projetos similares em outros países. Mas a resposta foi "não", devido à insuficiência de verba.
Enquanto não se viabilizam alternativas econômicas para a população e não se coíbe a produção de cal nesses moldes degradantes e predatórios, tudo segue como antes. Fornos no meio do sertão nordestino vão pouco a pouco pulverizando o passado e consumindo o futuro da humanidade, incapaz de zelar por si.
Emprego ou inferno?
Após receber denúncia de exploração de trabalho escravo nas caieiras próximas ao Parque Nacional da Serra da Capivara, a Delegacia Regional do Trabalho do Piauí, que representa no estado o Ministério do Trabalho, enviou fiscalização à região. O resultado da visita foi um laudo que constata a existência de trabalhadores "explorados em condições desumanas de semi-escravidão", que ignoram até mesmo quem são seus empregadores e o valor de sua remuneração. O documento, assinado pelos fiscais Rubervam Nascimento e Marcos Antônio Mendes e pela engenheira Neomésia Morais, diz ainda que, "a título de remuneração, recebem apenas gêneros alimentícios; cumprem jornada de trabalho que às vezes atinge 24 horas diárias; passam fome e sede no local de trabalho; muitos trabalham junto a fornos, suportando temperaturas de até 150 graus, queimando os dedos por manusear pedras em altas temperaturas, perdendo até mesmo as impressões digitais; trabalham com explosivo, o que já tem causado mutilação ou a morte de dezenas de trabalhadores; e na sua atividade o ar que respiram contém o pó proveniente da cal, ocasionando-lhes sérias doenças pulmonares".
O primeiro homem das Américas
Escavações feitas no boqueirão da Pedra Furada, no Parque Nacional da Serra da Capivara, pela equipe da arqueóloga Niède Guidon encontraram o que eles acreditam ser restos de uma fogueira e pedras lascadas, datadas em mais de 50 mil anos. A comunidade científica internacional se dividiu sobre o tema. Alguns rechaçam essas pesquisas, ponderando que a suposta fogueira pode ter sido na verdade madeira incinerada por um raio e que nada garante que as rochas não foram lascadas durante a queda de um bloco.
A questão por trás dessa briga é a elucidação de qual teria sido a porta de entrada do homem na América. De um lado estão os que acreditam que a travessia do estreito de Bering, entre 15 mil e 12 mil anos atrás – quando o nível do mar chegou a descer 100 metros em relação ao atual –, tenha sido o único caminho adotado. Para quem não aceita essa exclusividade, outra porta de entrada do continente americano poderia ser a costa do Pacífico na América Latina, com viajantes vindos do sudeste asiático e das ilhas oceânicas. Ou seja, a colonização teria acontecido por povos diferentes em épocas diferentes.
A situação começou a tomar novos rumos com uma descoberta no ano passado na toca do Garrincho. Dentes com 15 mil anos foram desenterrados e apresentados ao público. Com essa idade, são os fósseis humanos mais antigos do continente. Se confirmada, a presumida datação em 40 mil anos das pinturas do serrote da Bastiana também será um grande indício de que o homem pode ter vivido aqui bem antes do que na América do Norte.
Se aceitos pela comunidade internacional, os dentes e desenhos – que não podem ser causados por raios ou quedas de blocos – representarão uma nova fase nos estudos sobre a ocupação do continente.
Escravidão, ainda
Há lugares do Brasil em que a resolução do dia 13 de maio de 1888 ainda é desconhecida. Apesar de qualquer tipo de trabalho escravo estar banido de nosso território e de o país assinar tratados e convenções internacionais contra essa prática, infelizmente ela ainda é uma realidade entre nossos trabalhadores.
A servidão que aparece com maior freqüência é aquela imposta por uma dívida crescente e impagável, como acontece com as famílias que extraem a cal no Piauí. Os empregados têm de comprar comida, objetos e ferramentas de trabalho no armazém de seus próprios chefes, a preços exorbitantes. Em alguns casos, quando os peões são transportados de uma localidade distante para a lavoura, o valor da condução também é abatido do montante que o trabalhador tem o direito de receber. Os contratos, quase sempre verbais ou que simplesmente "desaparecem" quando chega a fiscalização, impõem severas multas se o empregado decidir abandonar o serviço antes do prazo.
De qualquer modo, no final das contas os trabalhadores estão endividados até o pescoço com seus próprios patrões ou com capatazes. Dessa forma são obrigados a continuar trabalhando para quitar a dívida.
Se isso já não fosse suficiente, há casos em que pistoleiros ou seguranças armados impedem a fuga ou mesmo a saída de pessoas das fazendas ou estabelecimentos. E na maioria dos casos não existem condições mínimas de higiene, assistência médica, alimentação ou moradia.
Essa prática deplorável está espalhada por todo o país, nos campos e cidades. No norte de Minas Gerais e nos estados da região centro-oeste, carvoarias funcionam a todo o vapor, utilizando mão-de-obra escrava em verdadeiros campos de concentração. Como o trabalho do chefe da família é insuficiente para quitar a dívida, as crianças pegam no batente fazendo uma jornada tão longa quanto a de seus pais, às vezes com 18 horas de trabalho por dia. Esquema parecido funciona nos canaviais e nas plantações de laranja no estado de São Paulo.
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