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Um dia, todos os dias
Chove tanta flor
Que, sem refletir
Um ardoroso espectador
Vira colibri
O Circo Místico - Chico Buarque/ Edu Lobo
por Sérgio Seabra
Sobrevoando desatento alguns números que alicerçam o Circuito Sesc de Artes 2010 – mais de 200 artistas e outros 200 profissionais percorrendo 88 cidades em 20 dias – pode-se pensar no lugar comum o show não pode parar. No entanto, o que se pretende é justamente uma interrupção. De expectativas. Mesmo com a divulgação que o precede, boa parte da audiência do circuito é tomada de surpresa pelo início e pela sequência de atividades ao longo de um dia, único para cada cidade.
A memória, algo reconstruída, da passagem do Grupo Movasse pela cidade de Mogi das Cruzes em 2008, integrando o Circuito daquele ano, está ainda presente: por segundos, um, dois minutos talvez, o Largo do Rosário parou no final de tarde. Moviam-se apenas os bailarinos da companhia mineira de dança e um popular, todo ele distraído e alheio, cruzando em diagonal o espaço, deixando às costas o jogo entre Fábio Dornas e Carlos Arão. Para mim, e quem mais?, o anônimo fez parte da intervenção.
Dias depois, um grupo familiar, entre outros, acompanhou o deslocamento da dupla pela orla de São Sebastião. Acompanhei o grupo, a pequena distância, para tomar-lhe a impressão. “Coisa de doido!”, ouvi, em tom de ligeira repreensão. Seguiram, porém, a coisa doida até que fossem entregues à roda já preparada para a atração seguinte, Espiral Brinquedo Meu, solo de outro doido que brincava com música e os limites cênicos do teatro e da dança. Pouco antes, ali, os atores do Grupo Pulso literalmente fizeram chover água e folhas secas.
De lá, os cinco membros da família saíram com expressões que reconheço cotidianamente durante as ações que realizamos. Expressões que me recuso a nomear, porque são distintas para cada um dos sujeitos que as expressam. Para o correto adjetivo, convido a cada um, também, e a todos: escolha uma cidade do Circuito, ou uma unidade do Sesc, vá e nomeie a sua.
Não vi se o quinteto permaneceu para o show do Funk Como Le Gusta, que encerrava as atrações do dia. Dispensado do trabalho, aproveitei eu mesmo a quinta apresentação da banda ?naquele circuito. Fui o cara de camisa mostarda que correu, brincou e dançou com a filha de 4 anos durante todo o show, ali à esquerda do palco.
TODO DIA – Já que se trata de cair na estrada, é combustível necessário vivenciar o que propomos, ter um certo engajamento, um alinhamento de desejos, a ciência do que queremos, a empatia. Imagino a minha própria expressão, ao ver os jovens parando com o futebol na Quadra Externa da unidade de São José dos Campos para acompanhar uma intervenção artística no Solário, ao lado. Ou quando me viro para a plateia de um espetáculo como Escuro, das companhias Hiato e Simples, e viajo cem anos, pensando ver o encantamento dos primeiros públicos com o cinema, então parente da magia. Acontece em nossas unidades todos os dias, uns mais, outros menos, ora com uns, ora com outros.
Aquele não-te-entendo com a montagem e as bases da linguagem cinematográfica em 1920 tem paralelo com o que desejamos para a apresentação de performances de Live Cinema no Circuito de 2010? E o apelo aos bailes na praça, de graça, depois de tudo o mais e da poesia, que rastro deixarão?
Encantar-se. Estranhar-se diante da expectativa frustrada de um dia que seria igual a ontem ou amanhã. Talvez só isso. Talvez mais. Lembro da costureira que de início se recusa a receber a entrega de Cláudia Müller no videodança Fora de Campo (http://vai.la/1cBL). A intérprete insiste. E dança a dança que não vemos. No fim do vídeo, Claudia recebe o abraço emocionado e agradecido, “pela forte emoção, que pra mim nunca tinha acontecido antes”.
Propiciar esses acontecimentos é parte do que fazemos todos os dias. Ainda assim, é grande a expectativa de acompanhar o próximo Circuito, a partir do dia 19. Pela concentração de esforços, será também concentrada a recompensa, colhida em sorrisos, interrogações e emoções inéditas.