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Tempo de brincar

Brincar, sem ter a pressa de se tornar adulto. Esse deveria ser o ciclo natural, inerente à fase infantil. Porém, de acordo com o desenho da sociedade contemporânea, especialistas alertam sobre questões importantes, como o desaparecimento da infância, a eliminação da inocência, a perda dos valores e direitos nessa fase tão singular da vida.

A seguir, a coordenadora do curso de Pedagogia e do Núcleo de Trabalhos Comunitários (NTC) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Maria Stela Santos Graciani, e a psicóloga do Projeto Criança e Consumo do Instituto Alana, Maria Helena Masquetti, discorrem sobre as ameaças a que estão expostas as crianças e adolescentes de hoje.


O “fim” da infância?
por Maria Stela Santos Graciani

A atual configuração das sociedades contemporâneas tem, desde o final do século 20, contribuído para o desaparecimento da infância, com o fortalecimento de um fator denominado “adultização precoce” (entendendo “adultização precoce” como condição cotidiana, trazida pelas transformações sociais, econômicas, políticas e, principalmente, culturais das sociedades).

Os próprios rearranjos da organização familiar, a convivência escolar desde o nascimento, a falta de perspectivas relacionais, de um lado, e, de outro, os valores morais, sociais, dentre outros, são lacunas comportamentais socializadoras para viver em grupo, que não mais fazem parte do convívio ou rotina primária das crianças e dos adolescentes, de maneira geral. “... o homem, ser de relações e não só de contatos, não apenas está no mundo, mas com o mundo. Estar com o mundo resulta de sua abertura à realidade, que faz ser o ente das relações que é...” (Paulo Freire. Pedagogia do Oprimido. Editora Paz e Terra, 1980).

A “adultização precoce”, além de ser profundamente influenciada por esses fatores determinantes, é acrescida pelo desenvolvimento tecnológico da sociedade do conhecimento, que, apesar de se definir pela comunicação, reafirma cada vez mais a individualização dos seres humanos e influencia a infância para o uso estático da TV, da Internet, da moda, das máquinas de modo geral, do medo da violência, da droga etc., propiciando o déficit relacional ligado à socialização e integração social, por exemplo, na ausência do brinquedo, do brincar e da brincadeira, no estilo da antiga amizade convencional, no bairro, na rua, na vizinhança e na comunidade, dentre outros espaços convencionais.

“É no brincar e talvez apenas no brincar que a criança ou o adulto fluem sua liberdade de criação e podem utilizar sua personalidade integral e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu” (D. W. Winnicott. O Brincar e a Realidade. Imago Editora, 1975).

Outras raízes e razões que geram o processo de “adultização precoce” merecem ser mencionadas, como a desigualdade social, econômica e cultural, imbricada no desenvolvimento antecipado da maioria das crianças e adolescentes?brasileiros. O prejuízo do desenvolvimento natural do ser humano é cerceado, do ponto de vista físico, psicológico, social e cultural, em sua condição de existência integral, quando, pela exigência da sobrevivência e subsistência, as crianças são obrigadas a adentrar no trabalho infantil, rural ou urbano, lesando significativamente seu crescimento, desenvolvimento e maturidade na fase adulta, apesar de o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) prescrever normas e legislações para protegê-las.

Temos percebido essa realidade no corte de cana, em carvoarias e zonas ribeirinhas, dentre outros exemplos realísticos que lesam: pelos acidentes, pela exclusão social e escolar das crianças e adolescentes, pelas lesões de doenças e enfermidades internas ou externas do corpo humano, por queimaduras, fraturas, causando inclusive deficiências físicas, intelectuais, revoltas etc.

Dentro desse cenário, podemos citar o “abuso e exploração sexual”, por exemplo, por parte de caminhoneiros nas estradas. Nas zonas dos rios, os barqueiros aliciam meninas entre 7 e 14 anos, aproximadamente, a praticar sexo como se fossem adultas, desencadeando a violência sexual infantojuvenil, adultizando as meninas. A violência sexual contra crianças e adolescentes caracteriza-se como fenômeno complexo, de difícil enfrentamento, uma vez que se encontra inserido num contexto histórico-social de violência endêmica com profundas raízes culturais.

O exemplo dessa monstruosidade também se encontra, inclusive, no seio das famílias, via violência doméstica, quando pais, padrastos, parentes ou amigos abusam das meninas e meninos, no interior da própria habitação. Podemos incluir também o papel que pedófilos vêm desencadeando ao longo dos séculos, sendo desvelado em inúmeras instituições sociais, que antes eram consideradas sagradas. Neste momento histórico, estamos vivendo a ruptura desses padrões societários, como avanço civilizatório, o dos direitos humanos.

Vale ressaltar, no entanto, que o atual período está sendo marcado por um forte processo de articulação, mobilização da sociedade civil organizada para enfrentamento da violência sexual (movimentos sociais, fóruns, ONGs, conselhos, dentre outros, são exemplos). A mídia, em seu papel contraditório, tem pautado o tema e dado uma contribuição restrita, porém pode influir no contexto, estimulando a implantação das políticas públicas definidas pelos Conselhos de Direitos e as iniciativas da Sociedade Civil, bem como a implantação do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil, definido em 2001.

A mídia também influencia as crianças e os adolescentes, que assistem a seus programas diários, como novelas, seriados, filmes, que incitam cenas de violência, de sexo, de agressividade, mesmo fora de horários e da definição de idades para suas apresentações.

Hoje em dia, outra dimensão vem adentrando o cenário da “adultização precoce”, quando as crianças têm acesso à Internet, podendo acessar a qualquer tipo de situação social perigosa para sua idade, que influenciam diretamente o seu desenvolvimento, sem que seus pais tenham condições de controle, uma vez que grande parte dos pais necessita sair de casa para trabalhar.

Inclusive os hábitos das famílias, nestes últimos tempos, têm sido completamente modificados. Há certo distanciamento da convivência familiar e comunitária, em que se socializavam valores, regras, normas e limites societários. Hoje o tempo está restrito para esse tipo de relação, pela ausência sistemática dos pais devido à necessidade já mencionada. Essa ausência de convivência social tem também consequências na vida escolar, na qual as crianças e os jovens estão vivenciando formas de “bulling” (preconceitos, chacotas, abusos, desrespeito etc.).

Esse fenômeno não tem se constituído apenas na realidade nacional, mas é muito mais amplo, inclusive com trágicas situações entre alunos, professores e gestores das instituições escolares, que perdem o controle da disciplina no local onde se passa o maior tempo da vida, com brigas, problemas de relacionamento, drogas, entre outros.

Os processos de “drogadição”, hoje bastante comuns na infância e adolescência, trazem alterações significativas para o comportamento, pelo uso de álcool, cigarro, maconha, ?cola de sapateiro, benzina ou medicamentos psicotrópicos. Cabe à sociedade civil tomar providências e encaminhar para os órgãos competentes, para resolver em tempo esses problemas de saúde.

As observações desses riscos estão em curso e se implantando com velocidade rápida e devastadora, apesar de sua complexidade. É papel, pois, dos educadores, das instituições educativas e das políticas públicas enfrentá-los e revertê-los, superando esses riscos, que consolidam comportamentos individuais e coletivos em identidades, personalidades e caráter, que comprometem a evolução normal do processo formativo da cidadania ativa, das potencialidades dos sujeitos e da condição humana de modo geral.

Conscientes do perigo que a “adultização precoce” representa e do que pode, no futuro, provocar nas pessoas, é necessário refletirmos sobre esses fatores de risco, enquanto estamos percebendo seus efeitos perversos nas vidas das crianças, para que, no futuro próximo, não necessitemos conter ou reparar seus danos e efeitos na vida adulta desses sujeitos.


“A ‘adultização precoce’ é acrescida pelo desenvolvimento ?tecnológico da sociedade do conhecimento, que reafirma ?cada vez mais a individualização dos seres humanos”

Maria Stela Santos Graciani é coordenadora do curso ?de Pedagogia e do Núcleo de Trabalhos Comunitários (NTC) ?da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) ?e membro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança ?e do Adolescente (Conanda).



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Sem magia, a infância desaparece
por Maria Helena Masquetti

Sobre o futuro da infância, permito-me tomar como referência um episódio vivido. Era o aniversário de seis anos de um de meus filhos. Em lugar de contratar um buffet, como de costume, decidi por organizar uma festa mais simples no salão do edifício onde morávamos. Além do corre-corre para evitar que a festa ficasse monótona em comparação com as anteriores, estava também às voltas com o descarte de uma enorme embalagem de uma geladeira que havia comprado e me fora entregue justo na manhã do mesmo dia. Socorrida por uma ideia – fagulha da infância, talvez –, corri até a papelaria e, com alguns papéis laminados de cores vibrantes, envolvi a embalagem, por dentro e por fora. Desci e coloquei-a a esmo no salão.

Para abreviar o relato, foram cerca de quatro horas de muita animação e de uma fila incansável de crianças que se organizavam sozinhas para passar no “grande túnel colorido”. Em lugar de levá-los do nada para lugar nenhum como um adulto pudesse talvez concluir, o túnel levava os pequenos para um mundo infinito de aventuras, construído à base da mais pura capacidade de fantasiar. Apenas duas crianças, ele com sete e a irmã por volta dos cinco anos, permaneciam sentadas a um canto, prestigiando uns quitutes.

Encorajada pela empolgação da garotada, aproximei-me: “Hei e vocês não querem brincar no túnel?”. O garoto se adiantou com uma expressão de irmão bem mais velho do que realmente era: “Isso não é túnel, é uma caixa de geladeira!”. Mais meia dúzia de convidados iguais àqueles e eu não teria ouvido o que as crianças, cada qual a seu modo, explicavam aos pais na saída: “Essa foi a festa mais legal que eu já fui!”. Exausto e feliz, o aniversariante exultava e isso poderia ser o suficiente para mim não fosse a ponta de inquietação com o isolamento daquelas duas crianças. Mal poderia imaginar que, hoje, elas seriam, talvez, maioria em uma festa tal como aquela.

Em lugar de brincar, as crianças estão deslocando prematuramente seu interesse para comportamentos e desejos que não condizem com o sentido de infância. Valendo-se ?do fato de as crianças alternarem entre fantasia e realidade, a publicidade reveste as mensagens com efeitos especiais e promessas que os produtos geralmente não podem cumprir. Atenta ao desejo natural da criança de parecer mais velha em função de sua fragilidade, oferece-lhe ?produtos similares aos dos adultos. E entendendo o quanto é importante para a criança sentir-se incluída em seus grupos, insinua que todo mundo já aderiu ao objeto anunciado: “O que você está esperando?”, “Todo mundo está usando!”.

Por meio do brincar a criança experimenta o mundo, elabora conflitos, desenvolve a criatividade e, sobretudo, diverte-se intensamente. E, geralmente, com muito pouca coisa. E isso, pode-se deduzir, não é lá compatível com os interesses mercadológicos. O estímulo desenfreado ao consumo figura entre as principais razões para o encurtamento da infância. Tanto que hoje, segundo pesquisa da InterScience (2003), as crianças participam do processo ?decisório de 80% das compras da família. Agravando o problema, a televisão e as diferentes mídias igualam a comunicação para adultos e crianças com o mesmo baixo grau de exigência à compreensão. Foi-se o tempo em que era preciso crescer para ter acesso a determinados segredos. Com tudo isso, vai se esvaindo tanto a curiosidade infantil como a força da autoridade adulta, tão fundamental para a educação e segurança das crianças.

Todos nós sabemos e a Lei determina que crianças não podem praticar os atos da vida civil; no entanto, a publicidade se dirige diretamente a elas como plenas consumidoras. Como questiona o Primeiro Promotor de Justiça de Defesa do Consumidor, do Ministério Público do Estado de São Paulo, João Lopes, em entrevista ao documentário “Criança, a alma do negócio”, de Estela Renner: “Se a criança, pela lei, não pode comprar nada por ser considerada incapaz pela legislação, como se admitir uma mensagem publicitária dirigida a ela, e muito menos uma peça publicitária que seja persuasiva?”.

Como disse William Wordsworth: “A Criança é o pai do homem”. Crianças que são amadas e têm sua vida infantil protegida são muito mais capazes de se tornarem pais amorosos, cidadãos produtivos e, sobretudo, conscientes da importância do outro. A infância é o tempo em que melhor exercitamos a inclusão. Quando um amiguinho se aproxima de uma criança livre da sedução consumista para brincar, esta não lhe pergunta: “Que tênis ou que celular você tem?”, e sim: “Você quer brincar?”. Porque as crianças naturalmente compreendem que, sem a participação do outro, o jogo da vida não tem sentido e nem graça.

“Não é concebível que nossa cultura esqueça que precisa de crianças. Mas está a caminho de esquecer que elas precisam de infância.” Nada tão oportuno, creio, quanto essa citação de Neil Postman em seu livro que leva justamente o título: O Desaparecimento da Infância. No entanto, a comunicação mercadológica prima por seduzir as crianças ao ingresso precoce no mundo adulto de consumo, convencendo meninas pequenas da necessidade de maquiagem e roupas sensuais para serem mais bem-aceitas ou instruindo garotinhos mal saídos das fraldas a posarem de galanteadores.

Longe de imaginar que adultos possam estar se valendo ?de seus pontos frágeis para o êxito de seus negócios, muitas crianças são levadas a se portar como miniadultos. Os dados da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher, segundo os quais, até os 15 anos, em 2006, 33% das entrevistadas já haviam tido relações sexuais, seriam suficientes para que, em lugar de serem seduzidas a abandonar rapidamente a infância, as crianças fossem deixadas livres para brincar.

É desolador constatar que, hoje, profissionais se debruçam sobre minuciosas pesquisas de marketing, esquadrinhando os anseios, hábitos, características e expectativas das crianças, a fim de melhor convencê-las de que ter é muito melhor do que ser. Isto para colocar no lugar dos túneis coloridos de seu mundo imaginário os becos sem saída das relações mediadas pelo consumo, do vazio de afetos e do respeito mútuo baseado em acordos de conveniência.

Quando as crianças se juntam para inventar brincadeiras e viajar pela imaginação, basta-lhes como ingresso a própria magia da infância. Podem embarcar sem tênis de marca, sem mochilas assinadas por personagens, sem maquiagem de apresentadoras e sem celular de atleta nenhum. E, melhor ainda, com a certeza de que nenhuma outra criança que estiver lá a excluirá da aventura. Não há como pensar em um mundo melhor se enviarmos ao futuro crianças tão somente treinadas a consumir e descartar, contribuindo incessantemente para a formação de montanhas de lixo. Não há como construir cidadãos comprometidos com a paz no planeta se hoje as crianças não puderem brincar em paz.

Como diz o ativista Raffi Cavoukian: “Honrar a infância é uma revolução de valores que pede uma profunda reestruturação de todas as esferas da sociedade”. Quanto mais adultos houver comprometidos com a preservação deste capital maior de um país e quanto mais crianças puderem confiar neles, haverá sempre uma luz, desobstruída e em cores, no fim do túnel.

“Em lugar de brincar, as crianças estão deslocando prematuramente seu interesse para comportamentos e desejos que não condizem com o sentido de infância”

Maria Helena Masquetti é psicóloga do Projeto Criança e Consumo do Instituto Alana.