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Em Pauta
Roteiro de cinema no Brasil
Desde 1995, quando teve início a chamada retomada do cinema brasileiro, a cinematografia nacional vem garantindo presença constante nas telonas de todo o país. O fato reacendeu as discussões acerca das características e qualidades da nossa produção, bem como de nossos diretores, atores, editores e também dos roteiristas – figuras que nem sempre recebem atenção do público. Por esse motivo, a Revista E convidou o crítico de cinema Luciano Ramos e o professor de história do cinema brasileiro Wagner Pinheiro Pereira para escreverem sobre um dos primeiros estágios de uma produção: o roteiro
O poder do roteiro de audiovisual
por Wagner Pinheiro Pereira
A grande maioria das pessoas nunca teve a oportunidade de folhear um roteiro, mas, certamente, se indagadas sobre o que seria isso, poucas não arriscariam um palpite. Provavelmente, o maior equívoco nas respostas seria considerá-lo a história de um filme. O roteiro conta a história de um filme, mas não é a própria história. Esta é a definição de argumento, que, desenvolvido na etapa inicial da pré-produção (pitching), apresenta a ideia aos produtores, executivos de um estúdio de cinema ou emissora de televisão, ou outras pessoas influentes, que, com o roteirista, passam a discutir o conceito sobre o qual se desenvolverá uma série de personagens e de acontecimentos – que constituirão, futuramente, o roteiro.
O roteiro de audiovisual é, portanto, um documento escrito que desenvolve uma história e indica como deve realizar-se uma obra para um meio – como o cinema e a televisão – que transmite mensagens por meio de sons e imagens, expressas no contexto da estrutura dramática. Luiz Carlos Maciel, em O Poder do Clímax, lembra que os norte-americanos o chamam de screenplay e os franceses de scenario – respectivamente “peça para a tela” e “conjunto de cenas”. Na língua portuguesa a palavra roteiro designa uma via em rota a ser seguida até o seu objetivo final.
Em linhas gerais, o roteiro esboça uma pré-visualização da futura obra audiovisual e define o enredo, dando uma perspectiva ao diretor do que e como pode ser filmado, assim como aponta soluções para todos os problemas técnicos e artísticos que possam surgir. Por meio do roteiro escrito há a possibilidade de calcular quantos atores, cenários, equipamentos e estúdios serão necessários e o financiamento para todos estes elementos, o que permite minimizar os riscos de investimentos. Ele não se assemelha a uma obra literária, exceto quando se trata de um roteiro literário, onde o roteirista apenas desenvolve as ações e as falas. Já as indicações técnicas – posicionamento de câmeras, luzes, cortes, efeitos audiovisuais – são descritas no roteiro técnico, numa fase conduzida pelo cineasta, que tenta fundir esses dois tipos de roteiros.
De acordo com Syd Field, roteirista, consultor de Hollywood e autor do Manual do Roteiro, um bom roteiro apresenta três partes essenciais que precisam estar bem delineadas: personagens, estrutura e enredo. Sendo este dividido em: parte um, dedicada à introdução da obra, delimitação das personagens e suas ações, assim como a preparação para o primeiro “ponto de virada” (turning point), de onde se passa para a parte dois: o desenvolvimento do filme, a confrontação e a manutenção do suspense da trama. Por fim, a parte três, o desfecho da história, que define o significado e mensagem da obra. Lembramos, contudo, que se trata de um modelo de “roteiro clássico”, sobre o qual são feitas inúmeras variações, mas que segue essa regra básica com certa regularidade.
A figura do roteirista de audiovisual e o futuro dos roteiros – As origens da figura do roteirista remontam aos dramaturgos do teatro clássico grego, ou ainda aos primeiros contadores de história, criadores de mitos de tempos imemoriais. No entanto, foi no final do século 19, com o nascimento do cinema, que uma fascinante forma de contar histórias foi inventada e uma nova profissão começou a se configurar.
Durante o período do cinema mudo não havia propriamente roteiristas de cinema, apenas escritores de gags cômicas, adaptadores literários, continuístas e letreiristas. Este cenário mudou com o advento do cinema falado e sonoro, em 1927. Os filmes realizados a partir de O Cantor de Jazz demandaram a criação de diálogos para os seus atores e ênfase nas motivações psicológicas das personagens nos enredos. Para tal tarefa, Hollywood contou com o trabalho de uma série de escritores vindos dos espetáculos da Broadway e dos campos da literatura e do jornalismo, tais como William Faulkner, F. Scott Fitzgerald, Bertolt Brecht e Thomas Mann.
A partir da década de 1930, a profissão de roteirista passou a ganhar forma e o roteiro tornou-se a peça-chave da indústria de cinema, sendo nas palavras de Giba Assis Brasil, “uma utopia criativa a serviço de um objeto fundamentalmente econômico”. Afinal, embora os aspectos artísticos possam ser decisivos a priori, as possibilidades econômicas se impõem na hora da aprovação de um projeto. Neste sentido, os estúdios de Hollywood sentiram necessidade de elaborar uma pesquisa de mercado que assegurasse ao filme uma boa recepção de público, ou seja, na concepção de seus produtores, o filme é pensado como um produto comercial rentável e não como uma obra de arte.
Apesar da gradual relevância do trabalho do roteirista, este era ainda marginalizado. A criação do Screen Writers Guild, em 1933, possibilitou-lhes reivindicar melhores condições de trabalho e uma parcela maior sobre os lucros obtidos por Hollywood, que somente foi alcançada em 1941, quando, por meio de um acordo com os estúdios, garantiu-se um piso salarial e a concessão de créditos passou para a jurisdição da associação.
No cenário da Guerra Fria, o clima de histeria contra o “perigo comunista”, estimulado pelo senador Joseph McCarthy, dominou Hollywood. O House Un-American Activities Committee (HUAC) começou a investigar a vida e as atividades de uma série de pessoas, passando a acusar roteiristas, como John Howard Lawson, Dalton Trumbo, Sam Ornitz, Lester Cole, Ring Lardner, Alvah Bessie e Albert Maltz, de serem comunistas. Muitos profissionais tiveram de regressar aos seus países, trabalhar com nomes falsos ou fazer parcerias com roteiristas de fachada. Em 1954, o Screen Writers Guild fundiu-se ao Radio Writers Guild e ao Television Writers Guild. A nova associação passou a se chamar Writers Guild of America e os roteiristas tornaram-se uma classe profissional respeitada em Hollywood.
Já no Brasil, a profissão de roteirista foi regulamentada em 1978, com a publicação da Lei nº 6.533 e do Decreto nº 82.385, que dispõe sobre a regulamentação das profissões de artista e de técnico em espetáculos de diversões, e define a profissão do roteirista cinematográfico. Em 1979, a Lei 6.615 e seu Decreto 84.134/79 regulamentam a profissão do roteirista de televisão e de rádio. A nova CBO – Classificação Brasileira de Ocupações –, publicada em 1994, tem como família 2615 os profissionais da escrita e há, como subdivisão, o item “2615-05 – autor-roteirista”.
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No entanto, trabalhar como roteirista de cinema foi, até pouco tempo, uma espécie de profissão de fé no Brasil. A geração de diretores filiados aos princípios do Cinema Novo, por priorizarem as ideias e alegorias em detrimento da história, criaram mais “peças literárias e intelectuais” do que propriamente “roteiros cinematográficos”. Como os próprios diretores punham suas ideias no papel, em parte pela falta de dinheiro para os filmes, em parte para se sentirem mais autorais, pouca gente se sustentava com este ofício. Escrevia-se por bico, amizade ou crença em ideais.
A partir do movimento da retomada do cinema brasileiro, na década de 1990, os cineastas buscaram recuperar a atenção do público, realizando um cinema menos ousado, intelectual e autoral. A fórmula encontrada foi desenvolver o estilo e a linguagem dos filmes nacionais a partir de uma estrutura mais convencional, aproximando-os dos filmes hollywoodianos consagrados, da teledramaturgia e das demais produções televisivas de sucesso.
Nos últimos anos, é possível encontrar uma geração de novos roteiristas que, sem abrir mão de suas outras atividades, seja como escritores ou cineastas, vivem de seus roteiros: Marcos Bernstein (Central do Brasil e Zuzu Angel), Fernando Bonassi (Carandiru e Cazuza), Paulo Halm (Guerra de Canudos e Pequeno Dicionário Amoroso), Rita Buzzar (Olga) e Bráulio Mantovani (Cidade de Deus e Tropa de Elite) são alguns exemplos de roteiristas consagrados.
Os prognósticos para o futuro indicam o seguinte: no caso brasileiro, os roteiristas poderiam investir mais em vender suas histórias para os produtores, em vez de serem apenas contratados para escrever sobre argumentos alheios. Seus roteiros precisam deixar de desenvolver filmes que mais se parecem uma extensão dos programas televisivos e buscar novamente a especificidade do cinema. No caso mundial, temos acompanhado um processo de massificação das produções cinematográficas, onde o roteiro e a trama ficam ofuscados pelos espetáculos dos efeitos especiais, possibilitados pela tecnologia digital, e por uma série de histórias que reciclam as obras-primas do passado, dando-lhes uma roupagem pop, kitsch e “moderna”.
Os grandes estúdios, para escapar da crise financeira e criar sucessos blockbusters, estão investindo em projetos que possam ser vendidos para outros países, onde serão produzidas refilmagens, com elenco nativo, adaptadas ao estilo nacional. Dessa forma, Hollywood consegue manter a sua hegemonia e converte-se numa espécie de matriz do cinema mundial. Assim, no lugar de obras inspiradoras e eternas como O Garoto, Metrópolis, Hiroshima, Meu Amor ou Babel, teremos de assistir muito High School Musical e Hannah Montana.
“(...) no caso brasileiro, os roteiristas poderiam investir mais em vender suas histórias para os produtores, em vez de ser apenas contratados para escrever sobre argumentos alheios”
Brasil: verdade ou ficção?
por Luciano Ramos
Pela quinta vez consecutiva, o filme escolhido para representar o Brasil na corrida pelo Oscar de melhor filme estrangeiro se baseia em fatos verdadeiros. Salve Geral, de Sergio Rezende, reconstitui o ataque do crime organizado que paralisou São Paulo, em maio de 2006. No ano anterior concorria Última Parada 174, de Bruno Barreto, sobre um sequestrador capturando a atenção do Rio e do país inteiro em 2000, no dia dos namorados.
Antes dessa obra de Barreto, as fichas foram para O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias, que retrata o ano de 1970, feliz pelo tricampeonato brasileiro e desastroso pela ditadura, conforme as lembranças do seu diretor Cao Hamburger. Em 2007, Marcelo Gomes evocava o sertão nordestino durante a Segunda Guerra em Cinema, Aspirinas e Urubus e, um ano antes, com Dois Filhos de Francisco, Breno Silveira narrava a bem-sucedida trajetória de uma dupla sertaneja.
Talvez a circunstância de todos esses roteiros terem raízes em fatos documentados não indique uma tendência da cinematografia brasileira como um todo. Aponta, porém, para a ideia de que as peças de ficção ganhem credibilidade com o respaldo da “vida real”, tornando-se tão respeitáveis quanto os documentários − com a vantagem de serem interpretadas por atores profissionais, seguindo roteiros capazes de atribuir dramaticidade à exposição da história. Como se as crenças, as posições ideológicas e até as fantasias dos realizadores pudessem ser referendadas por aqueles acontecimentos situados aquém da imaginação. Em outras palavras, assim como os documentários fazem asserções sobre o mundo, nas entrelinhas de seus roteiros os diretores daqueles “docudramas” veiculam valores, conceitos e interpretações acerca do país. Seu alcance cultural, portanto, seria maior se espectadores dispusessem de mais ferramentas para a análise desses roteiros, como, aliás, já acontece com o documentário. Como exercício nessa direção, tomamos dois lançamentos do gênero, incluídos entre os quatro filmes de maior sucesso de público em 2009.
Lançado em outubro de 2009, Salve Geral atingiu o quarto lugar entre as maiores bilheterias do ano, com quase 265 mil ingressos vendidos. A história é toda narrada a partir do ponto de vista de uma mãe que tem o filho na cadeia. Para diferenciar essa personagem de um tipo popular, ela é desenhada como uma professora de piano, interpretada pela estrela global Andréa Beltrão. O filme se inicia com ela vendendo o instrumento, o que indica uma queda na escala social. Para ajudar o filho preso, quase sem querer, ela acaba se envolvendo com uma advogada ligada ao crime organizado. Este drama corre paralelo com o dos presidiários e autoridades judiciárias ao radicalizarem as suas contradições.
Quem conhece os demais docudramas escritos e dirigidos por Rezende, como Zuzu Angel (2006), concordará que esse é um dos traços de estilo do cineasta: um conflito individual servindo de fio condutor para a exposição de momentos históricos nos quais se insere, bem como para as ideias e visões do autor. Nesse sentido, ele surpreende ao destacar o comportamento ético dos presos, ainda que seja uma ética da violência. Alguns deles até praticam meditação e mantêm bibliotecas nas celas. Já os policiais, quando não são corruptos, mostram-se incompetentes. E ao contrário do que, na vida real, foi declarado à imprensa pelas autoridades, o filme revela que os conflitos só cessaram após uma negociação entre as partes.
Se importantes obras anteriores sobre o tema, como Linha de Passe (2008), de Walter Salles e Daniela Thomas, e Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e Kátia Lund, repisavam no nexo causal entre a pobreza e a criminalidade, esta acrescenta a noção de que todas as camadas da sociedade são responsáveis por ela. E entrega à personagem de Andréa Beltrão a incumbência de garantir uma identificação plena do espectador com a protagonista e, por extensão, com o filho dela e tudo o que ele representa por trás das grades. Por isso, o roteiro tem o cuidado de fazer com que o envolvimento dela com o “partido” tenha sido apenas com uma liderança que fora eliminada semanas antes dos acontecimentos de maio. Enfim, é demasiado peso para uma figura que deveria ser mero “fio condutor”. Em artigo na revista Piauí (2009, #37), Eduardo Escorel afirma que essa estratégia tem a função de “eliminar qualquer ambiguidade”, comparando Salve Geral a Carandiru: “São filmes que procuram causar impacto cuidando, ao mesmo tempo, de apaziguar o espectador”.
Com outra diretriz de roteiro, em 2009 destaca-se Jean Charles − terceiro lugar no ranking brasileiro de bilheteria, com 270 mil espectadores. Conta a história do trabalhador mineiro assassinado por policiais no metrô de Londres, após ser confundido com um terrorista. O filme mostra que o incidente foi resultado de uma pista falsa que a polícia vinha seguindo, em meio à paranoia coletiva provocada pelos atentados que haviam acontecido na cidade. Para atribuir dramaticidade à narrativa, o diretor e roteirista Henrique Goldman se concentrou na luta do brasileiro para se estabelecer profissionalmente como eletricista na capital britânica. Nas semanas que antecederam o seu fim, ele tinha introduzido uma prima no cotidiano londrino, ajudando-a a superar a insegurança. Essa personagem vale como “escada”, ou seja, uma coadjuvante com quem ele pode dialogar e revelar seus pensamentos. E, principalmente, exibir os seus sentimentos altruístas − ainda que não fosse propriamente “um santo”, como a habilidade do ator Selton Mello deixou claro, ampliando assim a sua identificação com a plateia.
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A trama é enriquecida pela figura de um primo com quem o protagonista morava. Funcionando como uma espécie de consciência crítica, esse personagem serve para aproximar a história de um público ainda mais amplo. Mas, ao final, a sua indignação comove de modo irresistível. A direção foi bastante hábil em integrar a atuação de profissionais tarimbados com “não-atores”, mas a impressão de realidade que o filme desperta deve-se ao seu modo de construção, ao desenvolver uma história que não termina nem bem nem mal. Simplesmente não se encerra ali, com a morte de Jean Charles, mas permanece como uma questão aberta aguardando esclarecimento.
Abordamos aqui duas modalidades diferentes de erguer uma construção em que os tijolos são fatos históricos: de um lado Salve Geral e, de outro, Jean Charles. Num deles, como vimos, o drama central serve de pretexto para uma interpretação previamente articulada acerca do tema, recorrendo a uma estratégia tranquilizadora e buscando ser consumido como mera aventura. Noutro, o conflito central abrange o próprio universo temático e não encerra as questões que levanta, lançando as perplexidades e a discussão para o espectador. Assim, instaura uma impressão de realidade mais marcante.
Muitos outros “modos de docudrama” poderiam ser identificados, ou até formulados, tomando como base o repertório possível da produção cinematográfica referente a este gênero, que tende para a variação formal e estilística, com intensa diversificação de abordagem. Sem propor uma taxonomia, ou uma classificação rígida de roteiros − como a tabela periódica de elementos químicos −, pode-se imaginar talvez uma tipificação montada numa linha equivalente aos “modos do filme documentário” (poético, expositivo, participativo, observativo, reflexivo e performático), tal como foram apresentados pelo teórico Bill Nichols, em Introdução ao Documentário: “Os seis são viáveis para proporcionar [esclarecimento sobre] a organização estrutural de um filme, mesmo que esse filme combine livremente os seis modos”.
Se um esforço nessa mesma direção for efetuado, veremos, por exemplo, que o docudrama brasileiro ainda não experimentou formas de roteirizar de acordo com a técnica quase “observacional” de Roberto Rossellini em A Tomada do Poder por Luís XIV (1966) e de Steven Soderbergh em Che (2008). Nem tentou montar um painel de conflitos historicamente plausíveis em torno de um protagonista real, como o que foi desenvolvido por Jean-Claude Carrière para Milos Forman em Sombras de Goya (2006). Apenas para mencionar exemplares notáveis do cinema internacional e sublinhar uma possível utilidade que um estudo dessa natureza poderia oferecer a críticos e roteiristas. A estes e ao público cabe buscar novas e sempre melhores formas de representar e discutir esse passado comum, que é patrimônio de todos.
“Com outra diretriz de roteiro, em 2009 destaca-se Jean Charles − terceiro lugar no ranking brasileiro de bilheteria, com 270 mil espectadores. Conta a história do trabalhador mineiro assassinado por policiais no metrô de Londres (...)”