Postado em
Entrevista
Fernanda Zaborowsky
Antonio Nóbrega é um típico exemplo do ditado “ninguém nasce sabendo”. Aos 55 anos, o músico e dançarino é um dos mais conhecidos porta-vozes das manifestações culturais regionais do Brasil. Mas, até os 18 anos, Antonio Carlos Nóbrega não sabia nem o que era um passista de frevo – mesmo tendo nascido em Pernambuco, o berço do gênero. “Sou filho de médico, que é um profissional liberal presente dentro do território da classe média brasileira”, afirmou durante entrevista à Revista E. “E, por conseguinte, fui educado em colégios da classe média brasileira. Havia um muro muito grande que separava o povo brasileiro da classe média. Isso mesmo em Recife [capital do estado]”.
O envolvimento com o universo cultural por onde hoje transita com desenvoltura começou quando o escritor Ariano Suassuna o convidou para integrar o Quinteto Armorial – surgido em Recife, em 1970, braço musical do movimento de mesmo nome, cuja proposta artística, também na literatura e nas artes visuais, era criar uma arte erudita a partir de elementos da cultura popular do Nordeste. Desde então, Nóbrega encampou uma pesquisa que, segundo ele, se tornou o foco principal de seu trabalho. “É onde eu procuro apresentar uma língua brasileira de dança”, explica. “Uma codificação a partir das matrizes populares.” Durante a conversa, o artista falou ainda sobre o Carnaval em Recife hoje, sobre a postura da mídia com relação à cultura popular brasileira e sobre o crescente interesse da classe média pelos ritmos regionais. A seguir, alguns trechos da conversa.
A dança é uma arte que, ao que parece, não se faz entender tanto pelo intelecto, mas sim por meio de outros níveis de percepção. Seria uma expressão puramente visual e não intelectual? Como você faz para trazer outros elementos dinâmicos a esse meio de expressão?
É aí que eu entro. A dança popular tem elementos que fazem com que a gente possa devolver a ela esse caráter de uma expressão em que o sensorial e o visual se comunicam conosco de um modo mais intenso. O repertório da dança popular é muito rico. O caráter de festa – que a dança popular também tem – é outro elemento que pode ser aprendido. E, no caso específico da dança popular brasileira, a gente tem um elemento, ainda não muito bem compreendido, que é o nosso temperamento de dançar. Isso se traduz pelo movimento, e ainda não foi compreendido como um material que faz com que a dança se dissolva desse universo cerebral. Por exemplo, estou usando um remédio fitoterápico [aquele feito com plantas medicinais] para um problema na coluna, que está me fazendo um bem danado. É melhor do que usar o anti-inflamatório tradicional, que me traria, inclusive, efeitos colaterais. Na arte existe uma coisa semelhante. A gente tem, nessa arte popular, algumas qualidades que podem trazer uma “saudabilidade” humana que a arte moderna não está sendo, absolutamente, capaz de trazer.
Você falou da arte contemporânea, moderna, enfim. Às vezes, uma sessão de improvisação de músicos pode ser menos acessível para a maioria do que, por exemplo, músicos que tocam com poucos recursos técnicos. Você acha que, de certa forma, a técnica subalternizou a imaginação criadora?
Eu não poderia dizer que o jazz é um estilo de música melhor do que o choro, ou que o rock é melhor do que o samba e o baião. São formas com características específicas, e que, todas elas, atendem muito bem a necessidades específicas. Agora o que ocorre, e que está ocorrendo muito no Carnaval do Recife, é que o rock, por exemplo, para ganhar o mundo e a aderência das pessoas, teve que ser divulgado. Então, qualquer rádio toca rock, qualquer programa de tevê mostra rock. A iconografia do rock está aí presente em todos os momentos. O rock, o pop, o hip hop etc. – estou falando da grande família de expressões musicais que são midiatizadas com muita força. Isso já abriu um canal de comunicação muito grande. Já quando eu toco frevo, mesmo em Recife, o pessoal não está sabendo mais. O frevo passou a ser uma forma que está envelhecendo antes do tempo porque não existe aquela força que impulsiona como a rádio. Agora, pegue o hip hop, por exemplo: é um gênero hegemônico da música e da dança do povo brasileiro, mas eu posso dizer que é o melhor gênero para o povo brasileiro se expressar? Não! Não posso dizer porque nós não tivemos oportunidade de fazer com que a embolada e outros ritmos pudessem ter o mesmo desenvolvimento que ele teve por estar atrelado a uma indústria cultural – por um processo histórico crônico no Brasil.
“A dança popular tem elementos que fazem com que a gente possa devolver a ela esse caráter de uma expressão em que o sensorial e o visual se comunicam conosco de um modo mais intenso” |
Mas, hoje, estamos vendo a classe média se aproximando dos ritmos regionais brasileiros, não?
Ela tem absorvido mais isso. Sem dúvida, reconheço que há uma melhor e maior compreensão do segmento da nossa cultura na área popular. Não na medida em que acho que ela deveria ter. Nem na medida nem no papel que ela poderia ter na própria dinâmica não só cultural, mas social do nosso país. Acho muito aquém. Iniciei a minha trajetória artística, subsidiada e referenciada pela cultura popular, no comecinho da década de 1970, quando Ariano me convidou para integrar o Quinteto Armorial. Eu morava em Recife na época, tinha 18 anos. Não conhecia nem sabia o que era o passista de frevo. Não sabia o que era cavalo-marinho, bumba meu boi, nada disso. Sou filho de médico, um profissional liberal presente dentro do território da classe média brasileira. E, por conseguinte, fui educado em colégios da classe média brasileira. Havia um muro muito grande que separava o povo brasileiro da classe média. Isso mesmo em Recife. Esse apartheid sempre existiu. Quando eu brincava o Carnaval em Recife, já com 20 anos, era nos clubes de classe média. No Português, no Internacional ou no Náutico. Com marchinhas carnavalescas compostas por Capiba, Nélson Ferreira. Isso era o nosso Carnaval, que começava às 23 horas e ia até as 5 da manhã, nesse recinto fechado, cantando frevos, canções, e dançando ao som de frevos de rua. Durante o dia, eu ia para o corso, no centro da cidade. Nós, que tínhamos carro, tirávamos as capotas ou abríamos as portas, e ficávamos rodando pelo centro e jogando talco um no outro, buzinando e gastando gasolina. Esse era o nosso Carnaval. Quando nós saíamos do corso, umas 17 horas, para descansar um pouquinho e se preparar para a noitada no clube, o povo se preparava para ir para as ruas, com suas troças. Nisso a classe média deixava a cidade livre para o povão. E era o povão que ia para lá. Isso há mais ou menos 30, 35 anos. Hoje o panorama é completamente diferente. Acabou o corso. Os clubes não têm mais aquele poder de atração – nem funcionam mais.
E o que existe hoje em dia no Carnaval de Recife?
Uma grande festa onde permaneceram as troças, os caboclinhos, maracatus, nas ruas, e nós, da classe média, vamos entrar na dança deles. Com mais uma característica: foram colocados, em vários pontos da cidade e dos subúrbios, palanques, onde nós, artistas pernambucanos, e alguns cantores e intérpretes brasileiros vamos lá cantar e nos apresentar. Mas, como eu contava, naquela época em que eu estava conhecendo a cultura popular, nem sabia o que era uma rabeca [instrumento medieval precursor do violino, de três ou quatro cordas, o corpo em forma de pera, usado pelos menestréis para acompanhar o canto e a dança]. Você pega uma pessoa hoje em dia medianamente informada e ela sabe responder o que é maracatu, rabeca, Mestre Salu etc. Esses termos já começam a viajar mais, embora a gente ainda não tenha compreendido o papel dessa cultura popular. O Brasil historicamente sempre foi preconceituoso em relação a suas classes populares, mesmo tendo se miscigenado com ela. Mas nunca deu muita trela a ela. Certos gêneros da música brasileira, como o samba, foram cooptados pelo Brasil inteiro. Hoje em dia existe o samba da Velha Guarda da Portela, como o da Mangueira, como o samba do Paulinho da Viola, do Chico [Buarque] etc. Uma forma improvisada dentro do samba, como o baião também é. Tinha o baião de Luiz Gonzaga, o de Jackson do Pandeiro, tem o de Dominguinhos. Esses gêneros já mostraram que é possível o interfluxo entre segmentos fortes da cultura popular e esse outro Brasil. Mas, a meu ver, isso ainda é pouco. Por exemplo, as formas e os gêneros populares não estão nas ruas, nas rádios nem nas TVs do Brasil. Veja a trajetória de um Michael Jackson, um artista globalizado que todos nós ouvimos muito. Um artista formado nas ruas. Nas ruas americanas, num sentido simbólico. Há também toda uma tradição que vem de Fred Astaire, de vários dançadores e compositores aos quais a obra de Michael Jackson está visceralmente ligada.
E a qual Brasil você diria que a sua obra está “visceralmente ligada”?
Ao mesmo Brasil, ao mesmo interior do Brasil. Não o Brasil da frequência um. Mas esse Brasil ao qual eu me conecto você não escuta nas ruas, e sim na periferia da periferia da periferia do Brasil. O Brasil ainda não criou condições de fazer e valorizar suficientemente ritmos populares, assim como o samba ou o baião. O samba não é um ritmo carioca. Essa é uma questão interessante: se você for assistir, na Zona da Mata, a uma brincadeira de maracatu rural, parece que está indo para uma sambada. O que é uma sambada? Tem um samba de maracatu. A gente faz uma sambada. Esse ritmo que a gente conhece como samba é oriundo de um dos vários ritmos que há 80 anos eram denominados de samba. Veja o pagode. O pagode é um gênero de música brasileira que continua sendo supervalorizado pela indústria, culturalmente etc. Há músicos e compositores excelentes, como tem também bastante porcaria – como no baião também, tem muita coisa boa e muita porcaria. Agora, as forças do mercado parecem se render no sentido daquilo que é mais fácil de divulgar. A questão que penso ser uma das principais do Brasil é a seguinte: como a gente entende que essas formas são matrizes? O que se esperaria é que os ritmos fossem matrizes fecundadoras, para criar uma coisa que fosse compreensível tanto para aqueles que lhes deram origem quanto para a gente. O samba de Nelson Cavaquinho e o de Paulinho da Viola são tão compreensíveis para uma pessoa mais simples como para uma pessoa de grande sofisticação intelectual. Essa é a grande característica da obra de arte.
Gostaria que você falasse um pouco mais sobre o Movimento Armorial.
O Movimento Armorial teve um momento de muita riqueza, nas décadas de 1970 e 1980, quando havia uma confraternização entre compositores e artistas plásticos, que criavam dentro da perspectiva de uma arte brasileira nutrida de matrizes populares. Foi o caso do Quinteto Armorial, da Orquestra de Câmara, de artistas plásticos como Miguel dos Santos, Francisco Brennand, de escritores como o próprio Ariano Suassuna, entre outros. Muitos de nós, depois, continuaram com os seus trabalhos associados a essas matrizes. Eu, por exemplo, continuo, como outras pessoas. Provavelmente sou o artista ligado àquele movimento de maior reconhecimento nacional. Dentro do que era naquela época, o Movimento Armorial é associado a características muito ligadas a Ariano, um homem do sertão e que incentivava o trabalho da gente, ainda que não diretamente. Ele dava ao nosso trabalho o viés sertanejo, bem mais que o viés litorâneo. Algumas músicas que compus para o Quinteto Armorial têm como referência os ritmos do sertão, do meio rural. O Ariano colocou questões que, às vezes, o pessoal do manguebeat [movimento musical surgido no Brasil na década de 1990, em Recife, e que mistura ritmos regionais, como o maracatu, com rock, hip hop e música eletrônica], uma década depois, apresentou dentro de uma espécie de dicotomia.
“A globalização começou quando os colonizadores chegaram aqui. Eles estavam procurando um novo mundo aqui, mas na verdade o velho mundo se impôs. Depois de 500 anos, a gente está reencontrando esse novo mundo agora” |
O que você acha da relação que muitos estabelecem entre o Movimento Armorial e a música do pessoal do manguebeat?
Sempre digo que são músicas com características diferentes. A música armorial, que Ariano idealizava e incentivava ?os compositores a fazerem, era uma música de câmara, de escuta. A música do manguebeat tem outras características, é para dançar, dentro do universo da canção. São coisas que nem dá para comparar. Mas, em relação à postura estética, acho positivo o aspecto de o manguebeat trazer uma compreensão de que existe outro Brasil, que pode ser valorizado culturalmente e que tem valores para serem agregados à nossa cultura, à cena cultural contemporânea. Diria mesmo que muito do que se fala hoje da cultura popular está lá. Quando eu vinha me apresentar com o Quinteto Armorial, aqui em São Paulo, no Teatro Tuca, ninguém conhecia absolutamente nada das referências culturais do Nordeste. Éramos nós e o Quinteto Violado, e depois a Banda de Pau e Corda. Hoje, São Paulo tem grupos de maracatu. E é claro que o Brincante trouxe muitos mestres de maracatu, que começaram a criar um pessoal mais jovem para isso. Então, muita coisa ficou, sem dúvida. O que prevaleceu, no viés da valorização da cultura popular, foi uma espécie de sinergia da cultura popular com as formas mais contemporâneas – ou mais midiáticas da música pop, no caso da música, em relação aos ritmos populares. Então, por exemplo, a ligação que difere duas maneiras convergentes e divergentes de utilizar as matrizes populares é que na cultura mangue há uma coalizão com as formas mais atuais e ligadas à própria?mídia. A globalização começou quando os colonizadores chegaram aqui. Eles estavam procurando um novo mundo aqui, mas na verdade o velho mundo se impôs. Depois de 500 anos, a gente está reencontrando esse novo mundo agora. A meu ver, o novo mundo é a presença africana.
O que você quer dizer com isso?
Quando os portugueses chegaram aqui, existiam índios. Nesse território, ao longo desses 500 anos, foram sendo depositadas heranças culturais que foram trazendo um mundo novo, que é diferente do mundo europeu. E esse mundo agora está no melhor de sua maturidade. O que é música americana sem a música negra? Seria uma Europa de segunda classe. A colonização protestante acelerou, a meu ver, dentro dos EUA, os ritmos negros, porque pragmaticamente eles viram também que aquilo trazia dinheiro. Isso foi absorvido rapidamente. A gente não tem essa fundamentação tão pragmática. No Rio de Janeiro, por que o samba é conhecido? Porque teve a rádio, o Carnaval, ou seja, colocaram o samba na festa. Houve um processo econômico lá. O fator econômico tem um papel muito grande. Se não tivesse, talvez o samba não tivesse essa relevância. A gente tem uma música instrumental, com a mesma grandeza do jazz, que é o choro, mas a gente não conseguiu colocar no dínamo, no nível da dinâmica em que o jazz foi colocado. Uma música que já deu um patrimônio, como Pixinguinha e companhia, gente que tem um patrimônio maravilhoso, mas que não tem a representatividade cultural no Brasil oficial que o jazz conseguiu ter. O choro era para estar presente em todas as escolas de música do Brasil. A gente não tem um conjunto de choro subsidiado.
Como se daria essa presença do choro dentro das instituições de ensino?
Eu me refiro a colocar dentro dos nossos mecanismos oficiais, de ensino da música e da cultura, pessoas que dominam esse saber e que passem para outras. Veja a Escola Portátil [que ensina o choro], do Rio de Janeiro, a Escola de Choro, em Brasília. Mas é muito pouco em relação à riqueza que foi construída. Tem muito garoto jovem que está tocando bandolim muito bem por aí, que toca flauta muito bem. Mas não na proporção de um país de quase 200 milhões de pessoas, que poderia ter milhares de pessoas tocando. Sobretudo, entrando na corrente da composição, na exploração da pesquisa, do desenvolvimento da forma. É isso que as escolas de música fazem nos EUA. Você sai daqui para estudar em Berklee por quê? Onde é que eu estudo música brasileira aqui? Se eu quiser aprender uma linguagem de dança brasileira aqui no Brasil não tem onde. A gente tem nas academias dança clássica, jazz, flamenco etc. A dança brasileira é comparada à folclórica. Ou então é sair para uma gafieira ou um forró. Daí, chega um louco como eu e diz para as pessoas que nós temos, potencialmente, riqueza material em termos de imaginário corporal para ter um código de dança brasileira – como na Espanha, que tem o flamenco. Não é possível que um país que tenha maracatu, samba, caboclinho, enfim, “n” formas de dançar, não consiga codificar isso numa linguagem de dança para a gente se expressar.
Essa é uma das preocupações do seu trabalho?
É minha matéria principal de reflexão, é onde eu procuro apresentar uma língua brasileira de dança. Uma codificação a partir das matrizes populares. Essa pesquisa começa quando Ariano me chama [para tocar no Quinteto Armorial, no começo dos anos de 1970]. Foi quando pulei fora do meu muro de dez metros de altura para encontrar outro universo, que não chegava desse muro para cá. As rádios não tocavam, nos colégios não tinha uma matéria que falasse sobre isso, ou sobre um compositor. Esse lado do Brasil era negado, cortado do mapa, não existia. Então, comecei a ter contato com tudo isso. Por razões que até hoje, para mim, são desconhecidas, fui assimilando com o meu corpo. Os passos de frevo, os passos de maracatu, e fui, ao longo dos meus espetáculos, recriando esse universo, ao mesmo tempo em que foi nascendo a reflexão. Fui começando a estudar também, no sentido maior da palavra, as outras línguas de dança. Se eu fosse uma pessoa ligada apenas àquilo que a rádio mostrava, à cultura pop da dança, teria tomado conhecimento apenas do rock, de Elvis Presley, de Michael Jackson, ou então de lambada, axé etc. E a dança é uma coisa muito maior que lambada e hip hop, sem querer desmerecer essas formas. Veja, por exemplo, a dança hindu, ela tem mais de mil anos de existência, a dança europeia nasceu na corte dos reis franceses de 1600. Então, tem história por aí, e eu tenho que compreendê-la, pois se existem essas danças, é porque existem valores patrimoniais muito fortes. Tive que compreender o que se passou aí, e essa compreensão trouxe um farol para me ajudar a entender como eu iria recriar essa dança.
“O Movimento Armorial teve um momento de muita riqueza, nas décadas de 1970 e 1980, quando havia uma confraternização entre compositores e artistas plásticos, que criavam dentro da perspectiva de uma arte brasileira nutrida de matrizes populares”