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Babel às avessas

Quando temos nas mãos um clássico da literatura estrangeira – como A Metamorfose, do tcheco Franz Kafka, ou Madame Bovary, do francês Gustave Flaubert, ou ainda O Aleph, do argentino Jorge Luis Borges – nem sempre nos damos conta de que diante de nós está não o texto original, mas sim uma versão dele. Talvez ainda mais raramente pensemos no trabalho realizado pela figura quase invisível do tradutor – aquele que torna compreensível para os falantes da língua portuguesa as memoráveis narrativas em alemão, francês, italiano, húngaro, e por aí vai.
Não raro interpretamos a interferência sobre o texto apenas como uma espécie de substituição de palavras, de uma língua para a outra – como se essa transição se desse sempre de forma simples e literal: the book is on the table, na terra da rainha; o livro está sobre a mesa, aqui no Brasil. Porém – e aqui estamos falando de um senhor porém –, o trabalho de tradução não tem nada de elementar. E, se falamos de cânones da literatura mundial, aí é que a coisa complica ainda mais. Tradução é coisa séria e arriscada. E exercer esse ofício requer tanto empenho e rigor quanto teve o próprio autor na hora de conceber o título no original. Ou ao menos deveria ser assim.
O escritor e tradutor Thiago Novaes, idealizador do projeto Tertúlia – série de encontros sobre literatura realizados pelo Sesc São Paulo (veja o boxe Letras em debate) –, lança mão do mito bíblico da Torre de Babel para explicar a aproximação dos povos que a tradução permite. Segundo a história na Bíblia, Deus teria “embaralhado” a comunicação entre os hereges que pretendiam construir uma torre para alcançar os céus, isolando os seres humanos de acordo com a língua diferente que cada grupo passou a falar. Para Novaes, estamos hoje percorrendo um caminho inverso. “Hoje, toda tribo, todo vilarejo, carrega consigo – ou terá em breve – seu celular, seu computador ligado à rede mundial. Nunca mantivemos tanto contato cotidiano com o estrangeiro, e este movimento é irreversível e atordoante”, diz. Em meio a isso, segundo o autor, “a tradução é uma atividade intensa, silenciosa e constante no atual quadro mundial”.
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o campo da literatura, o assunto é denso, pois mais que transformar o texto estrangeiro em uma narrativa compreensível em nossa língua é preciso não deixar morrer a essência poética do original. “O desafio da tradução criativa começa no momento em que constatamos que a única língua inteiramente ao nosso alcance é aquela em que de fato pensamos e vivemos”, escreve Modesto Carone no livro Lição de Kafka (Companhia das Letras, 2009). “É esse limite imposto ?à elaboração da experiência profunda que a tradução criativa tende a ignorar, pois o que ela na realidade quer é se apropriar da intimidade objetivada em outras línguas.” ?Carone é o grande tradutor oficial de Franz Kafka no Brasil. Verteu para o português 12 títulos do tcheco, que escrevia em alemão – entre eles A Metamorfose e O Processo. Carone já recebeu três prêmios Jabuti por seu trabalho.
Quando se trata de poesia é possível imaginar que as barreiras aumentem, pela própria essência e estrutura do texto. Afinal, há ainda a métrica, a rima, a disposição dos versos, a abundância de figuras de linguagem e as múltiplas interpretações. No entanto, o poeta Ivan Junqueira, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), explica que não necessariamente a tradução da poesia é mais difícil que a da prosa.
Junqueira tem vasta experiência em verter para o português versos estrangeiros. Já traduziu do inglês (T.S. Eliot e Dylan Thomas), do francês (Baudelaire, Rimbaud e Valéry), do italiano (Leopardi) e do espanhol (Borges, Huidobro e Garcia Lorca). Porém, baseado em seus anos de estrada, o poeta faz uma advertência: “Que a poesia seja traduzida por poetas.” Junqueira também desfaz o mito de que em línguas de mesma origem – como as latinas, por exemplo, da qual fazem parte o francês, o italiano e o próprio português – seria mais fácil a transposição. “É nessa semelhança de sonoridade e de sentido que mora o perigo”, alerta Junqueira. “Pois somos induzidos a cometer um erro imperdoável: o da falta de estranhamento, que toda boa tradução deve manter.”
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Da Grécia à Hungria
Inglês, francês e espanhol são línguas mais “populares” entre o público brasileiro. O que permite a uma parcela de leitores recorrer aos originais. Mas essa facilidade escorre pelo ralo quando nos deparamos com obras – seja da literatura ou de outras áreas do conhecimento, como a filosofia – escritas originalmente em... grego, por exemplo. Quantas pessoas que você conhece falam grego? No entanto, ir direto à fonte é essencial para que a transmissão de conhecimento entre as culturas ocorra da forma mais fiel possível. “Cada geração precisa ter a sua tradução dos clássicos, porque eles dizem coisas novas de acordo com o tempo em que são traduzidos”, defende José Antônio Alves Torrano, que já encarou a tarefa de traduzir autores gregos como Ésquilo, Eurípedes e Hesíodo direto do original.
Para Torrano, seu trabalho é equacionar as necessidades de interpretação em três campos: o da história, o da filosofia e o da poesia. Isso porque, conforme explica, os clássicos demandam uma interpretação além da literária, o que envolve a compreensão de uma concepção de mundo bem diferente da contemporânea. Assim como o ato de revisitar uma cultura que não existe mais, como a grega antiga, impõe dificuldades específicas, o de retratar culturas pouco conhecidas no Brasil tem suas peculiaridades.
É nessa seara que circula Paulo Schiller, tradutor brasileiro que tem se dedicado a verter para o português o escritor húngaro Sándor Márai. Nome festejado na literatura húngara, o primeiro livro de Márai chegou ao Brasil em 1999, dez anos após a sua morte. E, embora vindas de um país distante e pouco comentado por aqui, algumas obras do autor foram sucesso de vendas. “Márai hoje tem um grande número de leitores”, afirma Schiller. “O último volume, De Verdade [Companhia das Letras, 2008], esgotou a primeira edição em um mês. É um prazer divulgar a literatura húngara, riquíssima se levarmos em conta as dimensões do país”, diz o tradutor, que garante serem pouco relevantes as diferenças culturais entre os dois países “se a tradução for boa”. “O leitor intui o sentido do desconhecido. Sou contra qualquer tentativa de adaptação cultural”, sintetiza.
O trabalho do tradutor, ao qual, muitas vezes, o leitor fica insensível, pode, portanto, deixar marcas profundas no produto final – para o bem ou para o mal. Quem mergulha nesse universo, como brinca Novaes, tem como objetivo verter para a língua-mãe o sublime do texto original. “O tradutor é como um sujeito que tenta narrar o sentimento de um sonho inefável que, ao despertar, já esqueceu”, completa.
Tertúlia é o nome dado a assembleias literárias, mas também pode significar encontro entre amigos. Mas não é preciso disputa entre os significados. Ambos podem ser usados para definir o evento realizado desde 2005 pelo Sesc São Paulo em algumas de suas unidades. Este ano, o debate literário ganhou uma rodada especial dedicada aos tradutores, no Sesc Pompeia. O escritor e tradutor Thiago Novaes, responsável pela curadoria dos encontros, explica que a preocupação foi selecionar nomes da literatura mundial com bons tradutores no Brasil, e não reunir os cânones literários. “Caso não houvesse uma boa tradução para o português das obras de Dostoievski, certamente ele não seria apresentado”, exemplifica.
Outra preocupação do festival foi combinar clássicos produzidos em diferentes épocas e idiomas. Assim, as mesas abordaram desde textos em inglês da britânica Virginia Woolf e do sul-africano J.M. Coetzee, ao francês de Baudelaire e o russo de Dostoievski e Tolstói. “Isso permitiu situar o português em relação a algumas das línguas e culturas que o influenciaram”, garante Novaes. O primeiro encontro aconteceu em agosto, com Mamede Mustafa Jarouche, tradutor do Livro das Mil e Uma Noites, de autoria anônima. Desde então, já foram realizadas oito mesas-redondas. O encontro de encerramento está previsto para o dia 13 de dezembro, no Sesc Pompeia, com a presença de Boris Schnaiderman, pioneiro nas traduções diretas do russo no Brasil.
