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Antropofagia Musical


Envolto em histórias excêntricas, Heitor Villa-Lobos ganhou o mundo com uma obra riquíssima marcada pela mistura de ritmos e temas da cultura popular brasileira

Imagem de 1955
 


O charuto pendendo da boca, o piano, a polêmica. Heitor Villa-Lobos, o homem imortalizado por obras como Trenzinho Caipira, não pretendia ser unanimidade. Cinquenta anos depois de sua morte, ocorrida em 17 de novembro de 1959, perduram excentricidades e causos que acompanharam a vida e as composições do maestro.
Em 1923, quando foi para Paris pela primeira vez, Villa-Lobos tratou de deixar claro que não estava ali para rapapés à cultura europeia. “Eu não vim aqui para estudar. Vim para mostrar o que fiz”, foi sua declaração ao pisar em território francês. O pequeno discurso entrou para a história.

Foi também o maestro o responsável por levar ao exterior várias essências sonoras brasileiras: da viola caipira aos ritmos indígenas. Era a primeira vez que temas da nossa cultura ganhavam o mundo em trajes de gala, com espaço reservado no restrito campo da música erudita.

Outro famoso comentário, registrado no site do Museu Villa-Lobos (www.museuvillalobos.org.br), foi em relação à possibilidade de tocar nos Estados Unidos: “Irei aos Estados Unidos somente quando os americanos quiserem me receber como eles recebem a um artista europeu, isto é, em razão das minhas próprias qualidades e não por considerações políticas”. Assim foi. A primeira vez em solo norte-americano se deu apenas em 1944, a convite do maestro e compositor Werner Janssen para uma turnê pelo país.

Mitologias à parte, a música de Villa-Lobos alcançou um reconhecimento antes impensável para a produção nacional. “Sem dúvida ele é o maior de nossos compositores, com notável divulgação mundial que nenhum outro conseguiu até agora”, avalia o historiador Vasco Mariz, autor de Villa-Lobos, o Homem e a Obra (5ª edição, Francisco Alves, 2005). “Quando fez 70 anos, o jornal The New York Times fez um editorial louvando sua obra.

Nenhum outro brasileiro teve essa distinção.” Mariz também afirma que, no centenário do maestro, a cidade de Leipzig, na Alemanha –  terra natal de Johann Sebastian Bach –, homenageou o criador das Bachianas Brasileiras com dois concertos. Nessa mesma época, o Conselho Internacional da Música, em Paris, consagrou o ano de 1987 como Ano Villa-Lobos, rememora o historiador.

Pé de chinelo


Mas de onde veio esse brasileiro que adentrou círculos musicais europeus e norte-americanos pela porta da frente? Onde havia estudado para chegar a Paris interessado não em conservatórios de música, mas em plateias? Teria origem em algum berço de ouro? Estudara na infância com os melhores tutores, oriundos das mais importantes escolas de música do Velho Mundo? Nada disso. Villa-Lobos nasceu em 5 de março de 1887, no Rio de Janeiro, no bairro de Laranjeiras. Não cresceu em família de elite e, se começou cedo – aos seis anos – a tocar a clarineta e o violoncelo, foi por empenho do pai, Raul Villa-Lobos.

Filho de imigrantes espanhóis, o pai do maestro foi apadrinhado por um importante político fluminense quando criança. Isso lhe permitiu, mesmo sem recursos, ter uma boa formação e acesso à alta cultura. O que aprendeu, passou ao filho, o pequeno Tuhú – apelido de Heitor quando criança. Ao morrer, ainda jovem, aos 37 anos, em 1899, Raul deixou ao filho o gosto pela música erudita e uma biblioteca. Foi a venda de parte dos livros herdados que subsidiou, em 1906, a viagem de Villa-Lobos pelo Nordeste Brasileiro, durante a qual recolheu temas e canções populares depois publicadas no Guia Prático – 1º Volume, em 1932.

Das viagens de Villa-Lobos, entretanto, a mais famosa talvez seja justamente a que nunca existiu e que narra as aventuras do compositor pela floresta amazônica, entre índios canibais e canoas cortando igarapés. A versão foi sustentada pelo próprio Villa-Lobos, que nunca desmentiu o caso. Mas as peripécias amazônicas não passaram de invenção da escritora e jornalista francesa ?Lucie Delarue-Mardrus, que antes dos concertos de Villa-Lobos em Paris, em 1924, publicou a história no periódico Intransigeant.  A história acabou servindo como chamariz ao público, que correu a ver quem era tão exótica figura, na cidade-luz para mostrar a música de sua terra. “Todos os gênios são um pouco excêntricos”, defende Mariz, que interpreta os atos exibicionistas de Villa-Lobos como um modo peculiar por ele encontrado para instigar as pessoas a ouvir sua música.

Paulo Guérios, também estudioso da obra do maestro e autor de Heitor Villa-Lobos: O Caminho Sinuoso da Predestinação (Reedição do autor, 2009), acrescenta: “Villa-Lobos queria ser ouvido, e para isso ele sabia exatamente o que esperavam de um compositor brasileiro em Paris”.

Mas não era só lá fora que Villa-Lobos se fazia notar. A polêmica parecia mesmo rondar sua vida – mesmo quando não era sua intenção. Exemplo foi sua apresentação na Semana de Arte Moderna, em 1922. Como mais tarde descreveu Oswald de Andrade em Branca de Neve, texto de 1944, o compositor entrou no palco do Theatro Municipal de São Paulo “de casaca impecável, mas com um pé de chinelo. Muita gente pensou que aquilo era futurismo. Era apenas um calo arruinado”.

Cartas sem resposta

Na bagagem de volta das viagens à Europa, Villa-Lobos trouxe duas ideias que mais tarde se tornariam marcos na história musical brasileira: a implementação do canto orfeônico para a musicalização das crianças e a criação, em 1945, da Academia Brasileira de Música. A instituição composta pelos acadêmicos do meio musical surgiu no Rio de Janeiro com inspiração na Academia Francesa e sob liderança do maestro. Seu lançamento ajudou o fortalecimento dos estudos em música, assim como o reconhecimento das personalidades da área. 

Os pressupostos do canto orfeônico também tiveram suas raízes em território francês e remetem à obrigatoriedade do canto coletivo nas escolas públicas parisienses, ainda no início do século 19. Villa-Lobos, encantado com a possibilidade de melhorar os “ouvidos” das novas gerações, iniciou um projeto de divulgação da técnica no Brasil. Ainda em 1931, organizou uma apresentação em que reuniu 12 mil vozes. O empenho o levou a ser convidado para o cargo de superintendente de Educação Musical e Artística, trabalhando ao lado do então secretário de Educação do Estado do Rio de Janeiro, Anísio ?Teixeira. Mas, em meados da década de 1940, o artista se afastou da iniciativa, que perdeu força e, no fim da década de 1970, foi extinta. Segundo Guérios, a falta de fôlego vinha da postura centralizadora de Villa-Lobos: “Ele era o dínamo, o centro deste projeto”, diz o autor. “Quando ele se desligou, não tinha formado sucessores que compartilhassem seu dinamismo.”

Após as aventuras pelo canto orfeônico, Villa-Lobos segue produzindo muito e viajando constantemente a convite de outros países interessados em seu trabalho. Seu último concerto foi logo no país onde só pisaria se fosse recebido como “artista europeu”: nos Estados Unidos, no Empire State Music Festival, em Nova York. Morreu quatro meses depois, em 17 de novembro. Na lápide de seu túmulo, um último suspiro da personalidade instigante: “Considero minhas obras como cartas que escrevi à posteridade sem esperar resposta.”


Linha do tempo

1887 Nasce no dia 5 de março, no Rio de Janeiro, na Rua Ipiranga, bairro de Laranjeiras

1900 Compõe sua primeira peça, Panqueca, em homenagem à mãe, Noêmia.

1912 Conhece a pianista Lucília Guimarães, com quem se casa no ano seguinte.

1915 É promovido o primeiro concerto com obras de sua autoria, causando reações de espanto aos críticos.

1922
 Participa, como único compositor, da Semana de Arte Moderna.

1923 Subsidiado pelo Congresso Brasileiro, faz sua primeira viagem à Europa.

1930 Dá início à composição das nove Bachianas Brasileiras e ao projeto de educação musical.

1932 Conhece Arminda Neves d’Almeida, a Mindinha (1912-1985), com quem se casa em 1936 e a quem dedica mais de 50 de suas composições.

1944 Faz sua primeira viagem aos Estados Unidos, onde é convidado a dirigir algumas das mais importantes orquestras norte-americanas.

1948 Descobre um câncer na bexiga.

1954 Recebe o título de Doctor of Music [doutor da música em tradução literal] da Universidade de Miami.

1954-1958 Grava para a EMI da França diversas obras de sua autoria.

1959 Morre, no Rio, aos 72 anos, no dia 17 de novembro, sendo velado no Theatro Municipal carioca e enterrado no Cemitério São João Batista.

Com informações do Museu Villa-Lobos.



Villa-Lobos como jamais se viu
Selo Sesc lança CD que revisita a obra do compositor

Um Villa-lobos versão jazzística é o que o público irá encontrar em A Viagem de Villa-Lobos, do grupo paulistano Projeto B (foto). O CD foi lançado no último mês, pelo Selo Sesc, em show realizado na unidade Consolação, no dia 19 de novembro. A matéria para o trabalho são as peças compostas pelo maestro durante sua primeira viagem a Paris, na década de 1920. Foram escolhidas partituras para instrumento solo cuidadosamente transformadas pelo grupo em arranjos para sexteto. “Quem ouvir o CD vai conhecer Villa-Lobos de um jeito que nunca ouviu”, promete Yvo Ursini, compositor, arranjador e guitarrista do Projeto B. A pegada do ritmo norte-americano para as composições tão brasileiras fazem lembrar que o próprio Villa-Lobos sempre mostrou em suas obras ser um defensor da antropofagia musical.