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Guardados na Memória
“Conceda-me o céu que, quando do meu retorno, também as consequências morais resultantes desta minha vida num mundo mais amplo se façam sentir, pois, juntamente com a percepção para a arte, também o meu senso moral vem passando por grande renovação.” Assim descreve o escritor alemão J.W. Goethe a experiência de conhecer outros países, outros povos e outras culturas. O relato aparece no diário Viagem à Itália (editado em português pela Companhia das Letras em 1999), e o trecho acima abre o livro Turismo e Patrimônio Cultural – Interpretação e Qualificação (Edições Sesc SP, 2009), de Flávia Roberta Costa, mestre em ciências da comunicação e coordenadora de turismo social do Sesc São Paulo, programa ligado à Gerência de Programas Socioeducativos (GPSE). “Em dezembro de 1786, apenas quatro meses após ter iniciado sua viagem de dois anos pela Itália, o pensador e escritor alemão J.W. Goethe defendia, em seu diário, que uma viagem contemplativa a terras estranhas acarreta fundamentais mudanças aos viajantes”, escreve Flávia.
E é esse aspecto do ato de viajar, o da transformação e do acúmulo de conhecimento e memórias, que dá a tônica da exposição De Mala Pronta – O Viajante do Sesc Conta Sua História, em cartaz de 1º de novembro de 2009 a 31 de janeiro de 2010, na Unidade Provisória Avenida Paulista. A mostra transforma anotações, cartas, cartões-postais e lembranças de 17 assíduos viajantes do programa de turismo social do Sesc São Paulo em material expositivo, abrindo ao visitante um mapa de experiências vividas longe de casa.
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A vida como cenário
Estão expostos painéis com fotos ampliadas, listas de lugares visitados ou a visitar – feitas pelos próprios participantes –, correspondências e objetos levados na mala tanto nas idas, como roupas e artigos de toalete, quanto nos retornos, como a curiosa coleção de seu Sydnei Carvalho Roveri, composta de recipientes com água do mar, areia e pedras de diferentes lugares. A mostra traz também vídeos com relatos dos viajantes e, numa sala especial, o visitante pode dar o seu depoimento de viagens.
A pesquisa e as entrevistas foram feitas pela antropóloga Renata Delduque, as fotos tiradas durante as conversas são de Michele Mifano, e a cenografia é da diretora de arte e cenógrafa Vera Hamburger. “Os entrevistados amam viajar”, diz Renata. “As conversas fluíram facilmente porque eles falavam sobre algo que está integrado de forma importante à vida deles.”
Sobre a análise dos objetos pessoais, a antropóloga revela que o trabalho foi feito com muita “delicadeza”. “Para qualquer pessoa, mesmo jovem, não é tão fácil levar gente que mal conhece para a parte íntima da casa, abrir guarda-roupa, gavetas, caixas.” Porém, segundo Renata, alguns aspectos favoreceram o trabalho. “A ligação importante com o turismo social – levando à vontade de colaborar – e a imagem do Sesc.”
A pesquisadora ressalta a solicitude dos entrevistados, a maioria da terceira idade e cheios de histórias para contar. “Eles foram muito bacanas, subiram em escada para alcançar os maleiros, despencaram camisetas turísticas dos guarda-roupas. Acho que provocamos alguma bagunça”, brinca. “Mas a maioria gostou de participar porque, de fato, tinha muito a dizer e a mostrar.”
Para Vera Hamburger, o trabalho foi mais do que incorporar os objetos e documentos a uma cenografia. Segundo Vera, eles são a própria cenografia”, afirma. “Desde as reproduções gráficas nos grandes painéis expositivos – onde brincamos com a escala e proporções – até as vitrines onde as peças ganham status de joia ou objetos de arte”, explica. “A ideia foi também brincar com a reprodução fotográfica e a exposição do objeto, em si, em sua escala real.” A cenógrafa ressalta que quando diz “joias ou objetos de arte” refere-se ao “respeito ao significado que eles representam na vida das pessoas”. “São marcos de uma experiência, são troféus de um momento que a pessoa se propôs a viver, a experimentar. Um simples folheto guardado, uma pedra, uma concha recolhida, representa uma infinitude de coisas para cada um deles, compõe suas memórias, ajudando-os a reviver e compartilhar momentos especiais da vida.”
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Experiências reveladas
Da ideia inicial ao resultado que pode ser visto até janeiro houve um processo que muitos visitantes nem sequer imaginam. “O ponto inicial foi considerar que o programa de turismo social do Sesc São Paulo, em especial do Sesc Avenida Paulista, tem, entre os seus participantes, pessoas que viajam frequentemente”, explica Ana Cristina de Souza, programadora de turismo social da unidade. “Entre estas pessoas, algumas se tornaram difusoras do programa e líderes de opinião.” Foram selecionados 42 viajantes. Desses, 17 compõem a mostra – “em virtude de suas disponibilidades e interesse em participar de todo o processo de pesquisa e criação”, conta Ana Cristina.
A etapa das conversas com os viajantes, segundo Renata Delduque, teve início com base nas linhas gerais transmitidas pela equipe de programação aos profissionais envolvidos. “Por meio das entrevistas queríamos conhecer um pouco da história de vida, do elo [dos entrevistados] com o turismo social do Sesc, os significados de viajar e das lembranças de viagem”, comenta Renata. “Mas esses momentos tinham também o objetivo de estabelecer um elo com os entrevistados, de forma que ficassem à vontade para a segunda parte, a de ‘intervenção’ nos seus espaços, quando eram fotografadas lembranças de viagem, objetos da casa e pessoais.”
As imagens resultaram em material riquíssimo, de acordo com Vera Hamburger. “A partir das entrevistas e das fotos de Michele Mifano, pude me aproximar, de longe, desses personagens”, declara. “Digo ‘de longe’ pois fiz questão de me manter distante, física e pessoalmente, de nossos personagens, para que minhas impressões e sensações viessem realmente por meio da visualização de seus pertences e ?guardados.” Vera afirma que cada um desses elementos foi compondo o cenário em sua cabeça. “Quando vi, estava íntima de pessoas que nem me conheciam”, revela. “Eu sabia histórias das famílias, da vida, de seus movimentos e opções. Sabia suas risadas, preferências e gostos sem nunca ter trocado uma palavra com elas.”
Lembranças da estrada
Segundo a cenógrafa, por meio das fotos e das entrevistas foi possível perceber um pouco da personalidade dos viajantes. “Sydnei Carvalho Roveri e o ímpeto de catalogação e organização presente em seus álbuns de viagem, mapas desenhados detalhadamente, em sua coleção de vidros com areias de várias partes do mundo, águas, pedras, sua paixão pela fotografia”, diz. “Dona Carolina [Carolina Margarida Rittmeyer Schlick] e sua primeira viagem, aos 13 anos de idade, por um Brasil dos anos de 1930 e 1940, documentada por uma carta que escreveu, em alemão, para sua mãe.” Verra destaca ainda outros exemplos: “Dona Elza Maria Piller e cada fase de sua vida (seus pais, sua primeira comunhão e formatura) emolduradas pelos cravos vermelhos; Dona Maria Eulália Ferro, acompanhada pelo querido avô, seu leque, perfumes, caixa de joias e folheto de um cabaré argentino; a praiazinha cenográfica formada pelos suvenires de dona Ana Rosa Duarte, que tem uma coleção de bruxinhas; a nécessaire de dona Sílvia de Aquino Gaeta, uma mulher prática, que fotografa muito bem e lidera uma turma de animados viajantes.”
As atividades de turismo social desenvolvidas pelo Sesc São Paulo tiveram início em 1948, com a inauguração da Colônia de Férias Ruy Fonseca, atual Centro de Férias Sesc Bertioga, no litoral norte do estado de São Paulo. Flávia Roberta Costa, coordenadora de turismo social do Sesc São Paulo, explica que embora as colônias de férias sejam uma das mais antigas realizações em turismo social, não existiam no Brasil colônias de férias dotadas de instalações próprias na época. “O Sesc Bertioga seria, assim, a primeira colônia de férias com instalações próprias do Brasil”, relata. “E serviria, a partir de então, como modelo para a criação de centenas de equipamentos similares em todo o país e na América Latina.”
Segundo Flávia, ao longo desses 60 anos de atuação na área, o Sesc São Paulo construiu um conceito diferenciado dos demais enfoques dados ao turismo social em outros lugares do mundo, uma abordagem “tão inovadora quanto desafiadora”, define. “Para o Sesc São Paulo, o turismo social é entendido como uma atividade inclusiva, pressuposto como plural, democrático e transformador”, assegura. “É formado por um conjunto de vivências (com ou sem deslocamento físico) destinado a tornar o movimento turístico acessível ao maior número de pessoas possível.”
Flávia destaca ainda algumas particularidades: a democratização de acesso, que busca permitir a participação daqueles indivíduos que não poderiam viajar por intermédio do turismo convencional; o protagonismo dos participantes, que valoriza a busca da proatividade dos viajantes, sua cogestão no processo decisório, a interdependência e a solidariedade; a educação pelo turismo, verificada nos momentos de desenvolvimento de conteúdos e aquisição de conhecimentos; a educação para o turismo, uma vez que, para o Sesc São Paulo, o turismo social desempenha um papel-chave ao elevar a consciência acerca do respeito ao ambiente e às comunidades locais, por exemplo; e, por fim, a ética e a sustentabilidade das operações, que se traduzem nos cuidados especiais com relação aos recursos naturais das regiões visitadas, no respeito às comunidades locais e às suas tradições materiais e imateriais.
